Ambiente Jurídico

Mudança na legislação ambiental do RS em pauta no Supremo

Autor

  • Andrea Vulcanis

    é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás advogada mestre em Direito Ambiental pela PUC-PR e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

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25 de maio de 2024, 8h00

A recente tragédia climática ocorrida no Rio Grande do Sul nas últimas semanas deixou todo o Brasil consternado. Centenas de vidas perdidas, desencontros de famílias, cidades inteiras que desapareceram no mapa, perdas de casas, comércios e de uma história de vida de milhares de pessoas que hoje se encontram desabrigadas, tentando retomar suas vidas.

Na busca por responsáveis pela tragédia, surgiram acusações direcionadas ao governo do Rio Grande do Sul, apontando a mudança na legislação ambiental estadual como uma das possíveis causas. Entre essas mudanças, destacam-se as regras que autorizam a instalação de reservatórios de água em leitos de rios, exigindo intervenção em áreas de preservação permanente para projetos de irrigação ou outras atividades econômicas.

A legislação estadual em debate veio estabelecer a possibilidade de realização de intervenções em áreas de preservação permanente (APP) para construção de barragens, desde que precedidas de licenciamento ambiental e de compensação ambiental proporcional à vegetação removida.

Ação no STF

Esse assunto foi levado a julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, por meio de uma ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Partido Verde, questionando as alterações na legislação do Rio Grande do Sul, sob relatoria do ministro Edson Fachin.

Na ação, o partido alega que as mudanças introduzidas na Lei estadual nº 16.111/24 flexibilizam as regras ambientais para a construção de reservatórios dentro de áreas de preservação permanente, permitindo a supressão da vegetação nativa.

Spacca
Andrea Vulcanis tarja 2022

A questão ganha contornos constitucionais devido ao disposto no artigo 24 da Constituição Federal, que determina que, em matéria de legislação concorrente, a União edita normas gerais, enquanto os estados têm competência suplementar.

O Código Florestal Brasileiro (Lei 12.651/2012) é a norma geral que rege a ocupação das APP em todo o território nacional, estabelecendo que a intervenção ou supressão da vegetação nessas áreas só pode ser autorizada em casos de utilidade pública, interesse social ou baixo impacto ambiental. A lei federal define as atividades que considera de utilidade pública, dentre elas as obras de infraestrutura para serviços de transporte, saneamento, energia e telecomunicações, mas não inclui a formação de reservatórios para irrigação, uso industrial, controle de cheias ou lazer (artigo 3º, VIII).

Desta feita resta claro que o Código Florestal federal autoriza a implantação de obras de saneamento, entre as quais as barragens de acumulação de água destinadas ao abastecimento público.

Entretanto, a lei federal não previu como de utilidade pública ou interesse social outros tipos de obras, inclusive aqueles para a formação de reservatórios de água para irrigação, uso industrial, controle de cheias, navegação, piscicultura, lazer e outros usos.

Histórico de secas

E nesse ponto vale considerar como as mudanças climáticas têm afetado o Rio Grande do Sul nos últimos anos para que possamos compreender a motivação da mudança na legislação estadual no que diz respeito à autorização para obras de barramentos de cursos da água que exigem as intervenções e supressões de vegetação em áreas de preservação permanente.

A situação climática gaúcha é fato notório disponível em dezenas de reportagens na internet que anunciam secas e escassez hídrica recorrentes no estado. Identifica-se que nos últimos 18 anos foram registrados cerca de oito a dez períodos de estiagem trazendo danos ecológicos, sociais e culturais. Em 2022 mais de 200 municípios declararam situação de emergência em razão das secas.

A Embrapa aponta perdas da ordem de R$ 2 bilhões na safra agrícola gaúcha do ano 2022/2023. As perdas passam pela agricultura familiar, comunidades tradicionais, como os quilombolas, trabalhadores sem-terra e o agro negócio de pequenos, médios e grandes produtores, além das demais atividades econômicas do estado.

Muitos debates foram realizados em todo estado do Rio Grande do Sul ao longo dos últimos anos para que fossem definidas medidas de enfrentamento a escassez hídrica. O pesquisador Carlos Reisser Júnior da área de agrometeorologia da Embrapa Clima Temperado assim se manifestou:

“para diminuir os impactos da seca deve-se ter um olhar diferente sobre o território, com construção de políticas públicas específicas; valorização de tecnologias sociais, incentivos a agroecologia, modelo produtivo que suportaria melhor a estiagem; investimento em armazenagem de água; incentivo e apoio à comercialização, ampliando as compras da agricultura familiar. São formas de diminuir os impactos da estiagem no território, de maneira a garantir renda as famílias” [1].

Barragens de cursos d’água e outras medidas

Como se vê, no enfrentamento da crise hídrica, as barragens de cursos d’água para formação de reservatórios seriam uma alternativa possível e viável para mitigar os efeitos desses extremos climáticos em regiões afetadas por secas.

Por outro lado, no outro extremo climático gaúcho, como o recente evento de excesso de chuvas que ocorreram nos dois últimos anos, ficou demonstrado que o controle de enchentes se faz necessário. E, nesse caso, parece que também as barragens de cursos d’água se mostram como uma alternativa de engenharia para conter e reduzir a velocidade de grandes fluxos hídricos.

Como se sabe, os fenômenos mais comuns associados às enchentes são ligados a alagamentos em terrenos de baixa declividade onde a água não consegue fluir por causa da planície do solo ou deficiência da rede de drenagem; como também na situações de extravasamento do leito do rio para as planícies circunvizinhas, e ainda a questão do escoamento pluvial em regiões com grande declividade, que se mostram de alto poder destrutivo em razão da energia elevada que o volume de água produz, com grande capacidade de arraste e destruição de infraestruturas como casas, edificações, pontes, estradas, lavouras e outras.

Medidas estruturais de prevenção fazem-se necessárias para evitar esses efeitos adversos em regiões onde altos fluxos de água costumam ocorrer. Dentre estas destacam-se medidas extensivas que se realizam por meio de estruturas de infiltração de água no solo, de proteção e conservação da cobertura vegetal e a estruturação de perímetros urbanos mais resilientes, distantes dos leitos dos rios e também por meio da adoção de tecnologias como as cidades esponja, dentre outras que vem sendo idealizadas.

Junto com as medidas extensivas de ordenamento do território, medidas estruturais intensivas também podem e devem ser utilizadas para a prevenção e mitigação de crises. Em geral são definidas obras de engenharia para reduzir o risco de enchentes. Dentre essas destacam-se obras como diques e canalizações que visam acelerar o escoamento da água aumentando a capacidade de descarga de rios; também obras como reservatórios e bacias de contenção que tem como objetivo retardar o escoamento superficial e ainda obras como desvios do curso da água, os chamados canais de desvio, que visam dissipar os volumes extensivos de água em períodos de grandes chuvas.

Como se vê, tanto no caso de medidas de ordenamento do território e tecnologias de adaptação como também no caso de obras civis para mitigar os efeitos climáticos extremos, as intervenções em áreas de preservação permanente são medidas quase que inevitáveis.

Quando caracterizadas como obras de defesa civil, elas estão sob autorização do Código Florestal Brasileiro, caracterizadas como de utilidade pública, o que autoriza o órgão ambiental competente a processar pedidos de licenciamento ambiental dessas atividades.

Entretanto, barramento de leitos de rio necessários à formação de reservatórios de água para o enfrentamento de períodos de seca, quando destinados à produção econômica (irrigação, lazer, dessedentação animal) e que poderiam ter efeito importante nos períodos de grandes chuvas, não estão dentre as hipóteses de utilidade pública que autorizariam as intervenções nas áreas de preservação permanente para a realização das obras.

Como se viu, no caso da recente tragédia gaúcha, as barragens tiveram um papel importante na retenção de grandes volumes de água, diminuindo a velocidade e a energia das águas e, portanto, seu poder destruidor. É certo que sem os barramentos a tragédia poderia ter sido ainda pior.

A vida como ela é

O Supremo Tribunal Federal, neste momento, enfrenta uma situação delicada e importante no confronto da realidade da vida como ela é com os parâmetros constitucionais e legais brasileiros. De fato, a mudança legislativa realizada pelo estado do Rio Grande do sul decorreu de uma necessidade demonstrada pelos eventos recorrentes de secas extremas e que, portanto, respondem a uma necessidade da população gaúcha.

No caso em questão, atinente a intervenção em APP necessária para as obras de barramentos, é importante destacar que depois da obra concluída, deve-se formar, por força de lei, uma nova área de preservação permanente no entorno do reservatório (artigo 4º, III da Lei 12.651/12), o que garantirá a função ambiental das APP de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas (art. 3º, II da Lei 12.651/12). Logo, os prejuízos as APP seriam provisórios desde que as medidas de recuperação ambiental venham a ser efetivamente adotadas.

Sendo assim, a ADI que discute a constitucionalidade desse dispositivo gaúcho necessariamente deverá confrontar o texto frio e rígido da lei e da Constituição da República que impedem que o Estado inove quando há norma geral estabelecida, com a necessidade social, econômica e ambiental que os extremos climáticos têm trazido como desafio para o Estado do Rio Grande do Sul.

Particularmente, quando a questão diz respeito a necessidades humanas que envolvem a sobrevivência, o texto constitucional deve ser lido e interpretado à luz da realidade e das necessidades urgentes e emergentes da sociedade brasileira, sobretudo quando há medidas de mitigação e recuperação ambiental possíveis e viáveis que possam minimizar os efeitos das alterações sobre os ambientais naturais alterados.

Qualquer decisão feita à luz do calor da tragédia que estamos vivenciando e sem considerar todos os aspectos envolvidos e os efeitos que uma decisão do STF produz sobre todo o território brasileiro, notadamente num caso que vai a julgamento pelo plenário da Suprema Corte, pode vir a representar um equívoco.

 


[1] https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/80396746/medidas-para-minimizar-efeitos-da-seca-na-regiao-sul-do-rs-sao-debatidas-pela-agricultura-familiar#:~:text=Seca%20representa%20perdas%20de%201%2C83%20bi%20na%20Regi%C3%A3o%20Sul%20em%202023,-O%20gerente%20regional&text=seca%20na%20regi%C3%A3o.-,Nesses%2018%20anos%2C%20foram%20registrados%20cerca%20de%208%20a%2010,do%20evento%20clim%C3%A1tico%20La%20Ni%C3%B1a.

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  • é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás, advogada, mestre em Direito Ambiental pela PUC-PR e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

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