Opinião

Por que a expressão humana deve ser protegida pelo direito? (parte 5)

Autor

  • Rafael Dilly Patrus

    é advogado sócio do Cremasco Dilly Patrus Peixoto e Leão Advogados consultor legislativo na Assembleia Legislativa de Minas Gerais e mestre em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG

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24 de maio de 2024, 15h22

Parte 1 (aqui), 2 (aqui), 3 (aqui) e 4 (aqui)

Por fim, merece nota o argumento de que a liberdade de expressão enriquece o ambiente social, na medida em que propicia e fomenta o pluralismo.

Quando falamos em pluralismo político, a justificativa para proteger a expressão se aproxima muito dos argumentos do autogoverno e da legitimidade das escolhas coletivas. Ao julgar o caso Texas v. Johnson, em 1989, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que o ato de atear fogo à bandeira norte-americana, durante manifestação em oposição ao governo, está protegido pela liberdade de expressão. Segundo o juiz William Brennan, a bandeira é um símbolo que representa a liberdade e o pluralismo de ideias e visões; punir quem a profana, cerceando sua liberdade e limitando o pluralismo político, é mais desrespeitoso à sua simbologia do que o simples ato de queimar um pedaço de pano.

“Não podemos imaginar resposta mais apropriada à queima de uma bandeira do que agitar a própria bandeira, nem maneira melhor de contrariar a mensagem das chamas do que saudar a bandeira que arde, nem meio mais seguro de preservar a dignidade do símbolo queimado do que enterrar respeitosamente suas cinzas.” [1]

Lendo a argumentação do acórdão, percebe-se que a proteção à expressão política — à ação de queimar a bandeira em protesto — é justificada, no caso, tanto segundo as ideias de autogoverno e legitimidade quanto pela lógica do pluralismo político.

Quanto ao pluralismo social, artístico e cultural, o debate mais recente é farto de situações em que manifestações consideradas “ofensivas” foram postas em questão por grupos conservadores ou religiosos.

Citemos alguns episódios apreciados, nos últimos anos, pela Justiça brasileira: suspensão da peça Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, que ocorreria em Jundiaí, no interior de São Paulo; declaração de inconstitucionalidade de lei do estado do Rio de Janeiro, que regulamentava apresentações artísticas em transportes públicos; proibição da venda, em feira de literatura na capial, de livros em quadrinhos contendo cena de um beijo entre dois homens; proibição de show de cantora gospel no Réveillon de Copacabana; ordem de retirada do Especial de Natal Porta dos Fundos: a primeira tentação de Cristo da programação da plataforma de streaming Netflix; suspensão das atividades do Museu da Diversidade Sexual, em São Paulo. Embora muito diferentes entre si, os contextos relatados evidenciam que a imposição de restrições à liberdade de expressão redunda frequentemente em prejuízo ao pluralismo artístico e cultural. [2]

A perspectiva de que o pluralismo é um valor a ser perseguido pressupõe duas ideias, que são distintas e não necessariamente andam juntas. A primeira é que o pluralismo é em si algo positivo, pois proporciona às diferentes visões de mundo, inclusive quando divergentes, um refinamento que leva ao amadurecimento.

Nesse sentido, um ambiente no qual concepções múltiplas e diversas coexistem é vantajoso a todas elas, uma vez que permite a cada concepção isoladamente considerada alcançar a melhor versão de si mesma, expondo-se à sua melhor luz.

A segunda ideia é que o pluralismo é necessário, não em razão de propiciar um aprimoramento das visões coexistentes — embora tal hipótese não esteja descartada —, mas por conta da impossibilidade moral de se estabelecer uma concepção como prevalente ou prioritária em face das demais. Em não sendo moralmente possível justificar a preferência por uma visão de mundo em detrimento das outras, a única alternativa é possibilitar que as mais diversas visões convivam, o mais harmonicamente possível, em um “mercado de ideias” aberto e plurilateral. [3]

O argumento é interessante, ainda, porque, ao mesmo tempo que serve como justificativa para a proteção jurídica da expressão, ele sinaliza a necessidade de determinadas expressões serem excluídas do campo protetivo. Isso quer dizer que, se a liberdade de expressão existe para promover o pluralismo, ela deve ser limitada nos casos em que a circulação do discurso transforma a esfera de debate público em um lugar menos plural.

Spacca

Sabemos que a discussão atual sobre liberdade de expressão envolve, em graus variados, exatamente o problema do pluralismo político, cultural, étnico, religioso etc. Questões tormentosas e instigantes como a regulação das notícias falsas (as chamadas fake news) ou do discurso de ódio (o chamado hate speech) exigem dos estudiosos e operadores do direito, hoje mais do que nunca, uma atenção específica à liberdade de imprensa e ao uso da internet em geral e das redes sociais em particular, além de um esforço, igualmente específico, no tratamento e na atualização de temáticas complexas como a verdade, a privacidade, a dignidade e, não à toa, o pluralismo. [4]

Constitucionalismo moderno

De acordo com Rosenfeld, sob o constitucionalismo moderno, o direito deve abranger, proteger e plenipotencializar o maior número possível de projetos de vida, visões de mundo e concepções de bem e justiça. Todavia, ao mesmo tempo que pressupõe a abrangência da pluralidade, o pluralismo no constitucionalismo se apresenta ele próprio como uma concepção de bem e justiça. Ou seja, o pluralismo não apenas sinaliza a necessidade de coexistirem tantos projetos, visões e concepções quanto possível, mas também se firma como uma dessas concepções — uma concepção baseada na garantia e na plenipotencialização da pluralidade.

Ao fazer isso, o pluralismo não pode ficar neutro. Ao contrário, ele surge na esfera social como uma concepção superior às demais. Muitos veem nisso um paradoxo, porque, embora o pluralismo não isole sua própria concepção como sendo a única capaz de alcançar a verdade, o bem e a justiça, permitindo (e, mais do que isso, assegurando e estimulando) que outras concepções, muitas vezes conflitantes, coexistam na arena pública, ele impõe sua própria visão como superior — visão essa que, por assumir a premissa de uma variedade autêntica de concepções, não admite a intolerância ou a exclusão. O pluralismo constitucional é “não monista e não relativista, precisamente porque é razoável e abrangente”. [5]

A aparência paradoxal dessa perspectiva é superada por uma leitura dialética da concepção de justiça em que ela se baseia. “O pluralismo abrangente sustenta que o respeito é superior ao desrespeito e que nenhuma concepção de bem além do pluralismo em si é precipuamente superior a qualquer outra”; [6] nesse sentido, ele aspira não apenas à diversidade, mas também à tolerância, já que, “ao mesmo tempo que seriamente busca acomodar a diferença, recusa-se a tratar a singularidade irredutível como absoluta”. [7]

Institucionalizar a ética pluralista reclama realizar duas tarefas. Inicialmente, todas as hierarquias, preconcepções e preferências devem ser negativamente niveladas, de modo a situar as diversas concepções de bem e justiça como igualmente dignas de reconhecimento, consideração e proteção. Em seguida, impõe-se a providência de incluir e acomodar o maior número possível de concepções no espaço público para que coexistam em harmonia e com sustentabilidade.

Nesse segundo momento, uma concepção baseada na recusa ou na eliminação de outras concepções será inevitavelmente excluída, já que não alcança um mínimo de compatibilidade com o postulado do pluralismo. Já quanto a concepções não integralmente abertas à comparticipação comunicativa da sociedade, mas contrárias à eliminação do “outro”, sua introjeção na arena pública dependerá de uma recolocação de seus próprios termos: preservada sua identidade, elas são admitidas, a partir da segunda tarefa, à luz das balizas constitutivas do pluralismo, de modo que suas ideias, manifestações e iniciativas fiquem restritas à esfera privada dos indivíduos que as professam, sem que tal restrição implique um esvaziamento do potencial argumentativo de tais concepções no debate social. [8]

Em outras palavras, a institucionalização do pluralismo ocorre em dois momentos: um negativo, e outro positivo. No momento negativo, eliminam-se as barreiras, as amarras e os obstáculos à inserção das concepções de justiça no espaço público. Isso acontece, como afirmamos, porque a perspectiva pluralista prima pela abrangência do maior número possível de projetos, posições, visões, convicções, preferências, ideias, discursos etc.

Tal qual dissemos, o pluralismo é um valor a ser perseguido, tanto porque se presume que a variedade proporciona um refinamento das unidades, possibilitando que elas sejam relidas à sua melhor luz, quanto em virtude da impossibilidade de se estabelecer a priori determinada visão ou concepção como superior às demais. A única concepção que se fixa, de antemão, como superior a todas as outras é, paradoxalmente, a que indica a impossibilidade de qualquer superioridade: a concepção pluralista. [9]

Não basta, no entanto, que a institucionalização do pluralismo promova a incorporação nivelada de todos os discursos, pois, se todas as possíveis concepções fossem abrangidas, a própria diversidade cairia por terra. Para evitar a autodestruição, o pluralismo deve, portanto, complementar seu momento negativo com um positivo, no qual concepções baseadas em destruição ou exclusão — contrárias, assim, à edificação pluralista — são excluídas da arena pública, podendo ser readmitidas, se cumpridas determinadas condições.

As concepções readmitidas, porém, não poderão ocupar a mesma posição que tinham antes de sua expulsão. Um bom exemplo é o discurso religioso: “As religiões só são readmitidas com a condição de que não representem ameaça a outras religiões ou a concepções não religiosas de justiça. Uma maneira plausível de se efetivar isso é, ao invés de admitir tais religiões no debate público, relegá-las à esfera privada.” [10]

Segundo esclarece Rosenfeld, a lógica que informa a implantação do pluralismo abrangente como concepção superior de justiça é idêntica à dinâmica de formação da identidade do sujeito constitucional. O discurso da Constituição articula uma identidade complexa e multifacetada, que se relaciona com a tradição e com as demais identidades — nacionais, culturais, étnicas etc — a partir de um processo de assimilação contínua, às vezes baseado em negação, outras vezes em reconstrução. Por trás desse discurso, deve haver uma narrativa que dê conta de conectar a institucionalidade constitucional aos princípios que conferem sentido às práticas sociais e políticas. O constitucionalismo depende do pluralismo e pode ser compreendido, em última instância, como o meio necessário à realização da ética pluralista. [11]

Quando usado para explicar a liberdade de expressão, o argumento do pluralismo ajuda a mostrar que a circulação desimpedida de ideias e opiniões não apenas promove a democracia, mas também a transforma. Questões como a regulação de discursos de ódio, o financiamento privado de campanhas eleitorais e o patrocínio de atividades artísticas e culturais por parte do Estado precisam ser debatidas, não no sentido de uma imposição de restrições à liberdade de expressão, mas segundo o prisma de que, para afirmar a liberdade, é preciso preservar e promover o caráter plural do debate público. [12]

 


[1] Estados Unidos da América. Suprema Corte. Acórdão em Texas v. Johnson, 491 U. S. 397. Washington/DC, 1989, § 43, tradução nossa. No original: “We can imagine no more appropriate response to burning a flag than waving one’s own, no better way to counter a flag burner’s message than by saluting the flag that burns, no surer means of preserving the dignity even of the flag that burned than by – as one witness here did – according its remains a respectful burial.”

[2] OLIVEIRA, Bruna Silveira Martins de; CAMELO, Pedro Henrique Bicalho; ORLANDINI, Maiara Garcia. Quem pode ser Jesus?: reflexões sobre o cultural backlash brasileiro a partir de censuras a manifestações artísticas. Rumores, v. 16, n. 32, 2022, pp. 129-148.

[3] POST, Robert. A progressive perspective on freedom of speech. In: BALKIN, Jack; SIEGEL, Reva. The Constitution in 2020. Oxford: Oxford University Press, 2009, pp. 182-183. No mesmo sentido, cf. ROSENFELD, Michel. Law, justice, democracy, and the clash of cultures: a pluralist account. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, pp. 202-213.

[4] Para os desafios da liberdade de expressão na era digital, cf. BARROSO, Luna van Brussel. Liberdade de expressão e democracia na era digital: o impacto das mídias sociais no mundo contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum, 2023.

[5] ROSENFELD, Michel. The identity of the constitutional subject: selfhood, citizenship, culture, and community. New York: Routledge, 2010, pp. 269-279.

[6] ROSENFELD, Michel. Habermas’s call for cosmopolitan constitutional patriotism in an age of global terror: a pluralist appraisal. Constellations, 14, n. 2, 2007, p. 175, tradução nossa. No original: “Comprehensive pluralism holds that tolerance is superior to intolerance, and that no conception of the good beyond pluralism itself is prima facie superior to any other”.

[7] ROSENFELD, Michel. Derrida’s ethical turn and America: looking back from the crossroads of global terrorism and the Enlightenment. Cardozo Law School Review, 27, n. 2, 2005, p. 839, tradução nossa. No original: “The advantage of a pluralist ethics is that whereas it seriously aims to accommodate difference, it refuses to treat irreducible singularity as an absolute (…)”.

[8] ROSENFELD, Michel. Op. cit., 2011, pp. 68-91.

[9] ROSENFELD, Michel. Just interpretations. Berkeley: University of California Press, 1998, p. 71.

[10] ROSENFELD, Michel. Op. cit., 2010, pp. 47-48, tradução nossa. No original: “For example, religions are only readmitted on the condition that they pose no threat to other religions or to nonreligious conceptions of the good. And one plausible way of accomplishing this would be by relegating readmitted religions to the private sphere.”

[11] Ibid., pp. 47 e 288.

[12] FISS, Owen. A ironia da liberdade de expressão: Estado, regulação e diversidade na esfera pública. Trad. Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva Pereira Neto. Rio de Janeiro: FGV, 2022, pp 9-24. No prefácio à 1ª edição de sua tradução do livro de Owen Fiss, em 2005, Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva Pereira Neto escrevem o seguinte: “(…) a maior parte dos recursos destinados ao financiamento de atividades artísticas e culturais em geral parte, direta ou indiretamente, do Estado e suas empresas. Qual o efeito dessas alocações o equilíbrio, a abertura e o pluralismo do mercado de ideias do país? Quais os critérios que devem presidir a concessão de subsídios pelo poder público, de forma a promover a robustez do debate público?” (p. 20).

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