Acelerador do processo

Das 18 mil decisões do Supremo no ano passado, apenas 96 foram dadas em sessões presenciais

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24 de maio de 2024, 10h43

*Reportagem publicada no Anuário da Justiça Brasil  2024, lançado nesta quarta-feira (22/5). A versão digital é gratuita, acesse pelo site do Anuário da Justiça (clique aqui para ler). A versão impressa está à venda na Livraria ConJur (clique aqui).

18ª edição do Anuário da Justiça Brasil

O renomado pesquisador da Universidade de Oxford Richard Susskind escreveu um livro de grande sucesso chamado Online Courts and The Future of Justice (Tribunais Online e o Futuro da Justiça, em tradução livre). Na obra, publicada em 2019, o professor diz que, no futuro, as cortes de Justiça serão virtuais. Justiça, escreveu, é serviço e, portanto, pode ser prestado em qualquer lugar; a qualquer tempo. Para o autor, a migração da entrega do provimento jurisdicional para o mundo digital é apenas o início de um processo de transformação ainda mais densa e inevitável.

Passados cinco anos, a previsão começa a dar sinais de se concretizar no Brasil. Um dado auspicioso é que hoje praticamente 100% dos processos que ingressam no Judiciário brasileiro são eletrônicos. Mas quem puxa a corrente da modernização e da informatização no país é o órgão de cúpula do sistema judicial. Em 2023, o Supremo Tribunal Federal bateu a marca de 105 mil decisões, aumento de 17% em relação a 2022. Recorde de produtividade que foi alcançado graças ao largo uso do Plenário Virtual, sistema que permite que os ministros votem e decidam a qualquer hora do dia ou qualquer dia da semana, estejam onde estiverem.

Os números falam por si: das 18.190 decisões do Plenário em 2023, 18.094 se deram em ambiente virtual; apenas 96, nas sessões presenciais de quartas e quintas-feiras à tarde. Isso equivale a 99,4% das decisões do Plenário. Nas turmas, o volume não é diferente. De 4.690 decisões da 1ª Turma, 4.672 foram de forma virtual (99,6%); na 2ª Turma, de 4.957, 4.938 foram no virtual. Com o mesmo percentual.

A virtualização dos julgamentos não foi óbice para que as decisões colegiadas aumentassem: passaram de 13 mil para 18 mil. A outra face da moeda mostra que, das 105 mil ações julgadas, 87,6 mil foram decisões monocráticas (83%). Em 2022, o percentual ficou em 86%. Ou seja, ainda estamos falando de um tribunal altamente monocrático e que, quando se reúne, julga 99% das vezes em ambiente virtual.

Na última sessão da corte em 2023, o presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, afirmou que o aumento de decisões colegiadas é resultado do esforço do tribunal para colocar os casos mais relevantes sob análise de todos os ministros. Ainda assim, destacou Barroso, é materialmente impossível que tudo seja analisado de forma colegiada, diante do número de ações que chegam ao tribunal todos os anos.

“É preciso que se tenha a consciência da impossibilidade: com 54 mil recursos extraordinários ou agravos em recursos extraordinários, sete mil reclamações, 12 mil Habeas Corpus, sem falar em mandados de segurança e outras classes processuais, seria inviável que tudo viesse ao Plenário. As decisões monocráticas são um imperativo da realidade”, disse ele.

Barroso tem procurado investir parte do orçamento do STF em tecnologia

Para os ministros, o Plenário Virtual é a única solução possível para o volume de casos que chegam ao Supremo. Foi sendo aprimorado ao longo dos últimos anos e hoje é considerado uma referência em termos de funcionalidades. “O Plenário Virtual — que começou de maneira incipiente, aplicado à questão da repercussão geral, e depois foi expandido, com grande reforço na pandemia — veio para ficar. Tentamos no Supremo fazer o Plenário Virtual ser o mais funcional e mais atento ao devido processo legal possível. Fazemos pedido de vista, de destaque, recebemos a defesa dos advogados — as sustentações são feitas. Muitas vezes, se nos incomoda o julgamento virtual, levamos o caso ao Plenário físico. Tenho a impressão de que hoje os tribunais brasileiros, especialmente o Supremo, estariam inviabilizados não fosse o Plenário Virtual”, disse o ministro Gilmar Mendes ao Anuário da Justiça.

Em outros tribunais não há sistema tão aperfeiçoado. No julgamento virtual do Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, não se conhece o voto dos outros ministros e o sistema é muito mais hermético, assim como na maioria dos tribunais do país. No Tribunal de Justiça de São Paulo, também não existe um sistema aberto. As partes e advogados têm acesso ao acórdão depois que publicado. As sustentações orais só podem ser feitas nas sessões presenciais ou por videoconferência. Há até quem sustente a inconstitucionalidade desses julgamentos, pois tidos como secretos.

Não é o que acontece no STF. “Estamos tentando o tanto quanto possível mimetizar o modelo de julgamento presencial. Mas devemos estar atentos porque a tecnologia não pode sacrificar o devido processo legal. Tínhamos no passado, no processo físico, as listas, em que se levava a lista e se concordava. Portanto, não havia discussão. Hoje temos muita discussão no virtual, e muitas vezes divergências. Em alguns casos, dificuldades até de proclamação do resultado, por causa da dispersão dos votos. Então há, sim, muito debate e dissensos nesse contexto”, conclui Gilmar Mendes. O ministro Cristiano Zanin observa que o ambiente virtual oferece uma oportunidade de intervenção que não há no Plenário físico: o advogado tem sete dias para chamar a atenção de votos que estão sendo depositados, com acesso imediato, pode participar de todo o julgamento.

Para quem advoga no STF, há questões ainda em aberto. “A vantagem para o tribunal é evidente. Porque a produtividade do Supremo aumentou barbaramente. Mas há algumas imperfeições. É difícil você definir a modulação dos efeitos no Plenário Virtual. Temos que entender que são coisas novas. Ou também quando há uma dispersão muito grande de votos, é muito difícil entender qual é a ratio decidendi, qual é a tese que vai realmente vincular. Muitas vezes, eles deixam para definir só a tese no físico. No Plenário físico, é o ministro que está lá. Ele vai ler o voto dele. O que tem acontecido é que os próprios gabinetes, nos julgamentos virtuais, conversam muito. É um trabalho de gabinete”, afirma o advogado Túlio Coelho, da área de tribunais superiores do Trench Rossi Watanabe. “Esse é o nosso desafio. Mostrar para eles o que é importante, com a nossa insistência. Esse é o trabalho do advogado, ter capacidade de convencimento de que realmente o seu caso é diferente. Provocar pedidos de vista a partir de uma sustentação oral. A interlocução com o tribunal é muito importante”, resume o advogado.

Ao mesmo tempo que nunca foi tão produtiva, a corte está sendo acusada de estar mais fechada. O advogado criminalista Antonio Cláudio Mariz de Oliveira avalia que é uma “fase difícil, de cerceamento à advocacia”. Segundo o advogado, os Habeas Corpus estão sendo julgados de forma muito precária, uma vez que decididos monocraticamente.

“O tribunal é um órgão colegiado. Mude-se o sistema. O povo não tem culpa de termos um Supremo abarrotado”, afirmou. “Ou temos uma Justiça mecânica ou uma Justiça em que se vai respeitar o devido processo legal. Decisão monocrática é para juiz de primeiro grau, o STF tem que julgar coletivamente”, disse Mariz durante evento promovido pelo jornal O Estado de S. Paulo e a Universidade Mackenzie.

Para Eduardo Carnelós, a vida do advogado criminalista não tem sido nada fácil. “O Plenário Virtual reduz o direito de defesa. A questão de ordem se perde, fica impossibilitada. Do mesmo modo, sessões virtuais são absolutamente diferentes do que ocorre no Plenário físico, em que o advogado está presente e se dirige a cada julgador, faz uma observação, um comentário mais específico. Até para despachar com magistrados é uma dificuldade. Não se recebe mais.”

As turmas não têm permitido sustentação oral em agravo regimental de HC, ressaltando que é um entendimento pacífico na corte. A controvérsia surge no contexto em que decisões monocráticas se tornaram sistemáticas e o agravo, embora garantisse a reapreciação do caso pelo colegiado, inviabilizava a defesa oral, situação corrigida pela Lei 14.365/2022, que inseriu esse direito no Estatuto da Advocacia. Alguns ministros, porém, passaram a prestigiar o regimento interno em detrimento à lei, vedando a sustentação.

“Sou contra o julgamento virtual, embora reconheça o enorme esforço que os ministros do Supremo fazem com a carga absolutamente extraordinária e irracional de trabalho. É fundamental que a gente procure mecanismos para aliviar a sobrecarga do Supremo Tribunal Federal, que é o guardião dos temas fundamentais da nossa Constituição. A corte hoje tem julgado e visto muitas questões que não precisaria”, afirma Fernando Capez, procurador recém-aposentado do MP-SP, onde era responsável pela Procuradoria de HC e Mandados de Segurança Criminais.

Há um esforço do tribunal de privilegiar a colegialidade, o que levou à aprovação da Emenda Regimental 58/2022, que prevê a remessa imediata de decisões individuais de urgência ao Plenário ou à turma. Em 2022, foram 1.993 decisões liminares individuais. No ano seguinte, esse número diminuiu para menos da metade. As liminares levadas para referendo do colegiado aumentaram de 30 para 121 em 2023.

Embora o acervo do STF tenha subido de um ano para o outro, a distribuição também aumentou, de 70,5 mil para 78,7 mil em 2023. O aumento tem relação direta com os desdobramentos dos atos golpistas de 8 de janeiro, que gerou uma grande quantidade de manifestações em inquéritos, denúncias e ações que tramitam no gabinete do ministro Alexandre de Moraes.

Desde que o Supremo definiu que todos os réus do 8 de janeiro (por volta de dois mil investigados) seriam processados na corte mesmo não tendo prerrogativa de foro, 1.362 ações penais relacionadas aos atos antidemocráticos foram abertas. Isso contrasta fortemente com 2022, quando foram abertas apenas três ações penais. Foram julgadas até o momento cerca de 200 e os ministros têm mostrado agilidade no julgamento dessas ações, também graças ao Plenário Virtual.

Um dado muito relevante que mostra também como o tribunal está mais célere desde a adoção do julgamento virtual por completo é que o tempo para dar uma decisão colegiada caiu ainda mais de 2022 para 2023, hoje em 340 dias. As monocráticas são dadas em 99 dias, em média. A quantidade de julgados em repercussão geral aumentou: foram 52 casos com teses definidas que vinculam as demais instâncias. Em 2022 foram 41. A corte reconheceu a existência de repercussão geral em 27 temas e negou em outros 19.

Em balanço de setembro de 2023, o Supremo divulgou que conseguiu reduzir em 23% o seu acervo de processos de controle concentrado (de 1.496 para 1.229). Também tem havido uma sistemá-tica redução do acervo de temas de repercussão geral para julgamento: em 2019, havia 386 casos, em setembro de 2023, havia apenas 152.

Com um olhar inovador para toda a Justiça, o investimento em tecnologia é um dos pilares da gestão do ministro Luís Roberto Barroso à frente do STF e do Conselho Nacional de Justiça. Desde que assumiu o cargo, em setembro, Barroso iniciou diálogos com empresas para tratar de soluções de inteligência artificial que possam agilizar os trabalhos do Judiciário. Outro foco é a gestão racional dos processos da Justiça. O ministro tem investido tempo também para que os tribunais limpem os estoques dos processos de execuções fiscais que, em sua maioria, ficam parados. Também tem encomendado estudos para entender a litigância de grandes clientes da Justiça, como a União e suas principais autarquias.

Barroso reestruturou, dentro da Presidência do STF, a sua Assessoria de Apoio à Jurisdição (AAJ). Hoje, dentro dessa assessoria, existem três núcleos que se complementam e atuam de forma coordenada: o Núcleo de Processos Estruturais e Complexos (Nupec); o Núcleo de Soluções Consensuais de Conflitos (Nusol); e o Núcleo de Análise de Dados e Estatística (Nuade).

Com diversos julgamentos que causam impacto bilionário nos orçamentos da União e dos estados e que também mexem no bolso do cidadão, Barroso, de forma inédita, nomeou para o cargo de assessor especial do gabinete Gabriel Mendes Resende, profissional com experiência no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), para atuar como uma espécie de “economista-chefe do Supremo”. Sua função é elaborar pareceres econômicos que podem nortear as decisões dos ministros. É comum vermos “guerras de versões” sobre os impactos orçamentários que determinada decisão vai provocar – como houve com o caso previdenciário da revisão da vida toda.

Segundo dados do STF, entre outubro de 2023 e fevereiro de 2024, foram produzidas 16 notas técnicas e, assim, 16 decisões estruturais/complexas foram tomadas com o apoio dos profissionais. O parecerista deixou claro, em entrevista à revista Consultor Jurídico, que o papel não é influenciar na mudança de votos, mas contribuir para um entendimento mais aprofundado dos temas antes do início dos julgamentos.

A Presidência do STF também inaugurou em 2023 uma forma de votação deliberativa, e não apenas agregativa. O objetivo, de acordo com o ministro Luís Roberto Barroso, é construir soluções consensuais por meio do diálogo. “Estamos desenvolvendo essa nova cultura de um voto deliberativo por meio da participação de todos numa discussão saudável, que eu acho ter feito muito bem ao tribunal”, disse. Também tem chamado casos importantes com a participação de amici curiae em que somente escutam as sustentações para, em outra sessão, decidirem, em deferência aos argumentos dos envolvidos.

Quando a corte é acusada de ser ativista, Barroso se defende e diz que uma Constituição extensa como a nossa gera ações no Supremo. Sempre ressalta que a Carta Magna, além de demarcar a competência dos Poderes e definir direitos e garantias dos cidadãos, contempla os sistemas econômico, previdenciário, de educação, da cultura, da proteção às comunidades indígenas, da família, da criança, do adolescente, do idoso, em meio a muitos outros temas. “Incluir uma matéria na Constituição é, em larga medida, retirá-la da política e trazê-la para o Direito. Essa é a causa da judicialização ampla da vida no Brasil. Não se trata de ativismo, mas de desenho institucional”, assinala o ministro.

O STF também teve um 2023 marcado por mudanças em sua composição, com o presidente Lula indicando dois aliados para as vagas de Ricardo Lewandowski e Rosa Weber, respectivamente Cristiano Zanin e Flávio Dino, de perfis diferentes, porém de extrema confiança do presidente. Weber se aposentou no meio do seu biênio como presidente da corte. Mesmo assim, deixou seu legado, ao destravar casos polêmicos que se arrastavam por anos, como o do juiz das garantias. Também tentou avançar com julgamentos que provocaram reações no Congresso, como a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal, o marco temporal das terras indígenas e do aborto. Lewandowski assumiu o Ministério da Justiça.

Assista à cerimônia de lançamento do Anuário da Justiça Brasil 2024:

ANUÁRIO DA JUSTIÇA BRASIL 2024
18ª Edição
ISSN: 2179981-4
Número de páginas: 276
Versão impressa: R$ 50, à venda na Livraria ConJur
Versão digital: disponível gratuitamente no app “Anuário da Justiça” ou pelo site anuario.conjur.com.br

Anuário da Justiça Brasil 2024 contou com o apoio da Fundação Armando Alvares Penteado – FAAP.

Anunciaram nesta edição do Anuário da Justiça Brasil:

Abdala Advogados
Advocacia Fernanda Hernandez
Antonio de Pádua Soubhie Nogueira Advocacia
Arruda Alvim & Thereza Alvim Advocacia e Consultoria Jurídica
Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia
Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça Advogados
Basilio Advogados
Bottini & Tamasauskas Advogados
Cançado e Barreto Advocacia S/S
Cecilia Mello Sociedade de Advogados
Cesa — Centro de Estudos das Sociedades de Advogados
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
Corrêa da Veiga Advogados
Costa & Marinho Advogados
Cury & Cury Sociedade de Advogados
Décio Freire Advogados
Dias de Souza Advogados
DMJUS
D’Urso & Borges Advogados Associados
FAAP
Feldens Advogados
Fidalgo Advogados
Fontes Tarso Ribeiro Advogados Associados
Fux Advogados
Gomes Coelho & Bordin Sociedades de Advogados
Hasson Sayeg, Novaes e Venturole Advogados
JBS S.A.
Justino de Oliveira Advogados
Laspro Advogados Associados
Leite, Tosto e Barros Advogados
Lollato, Lopes, Rangel, Ribeiro Advogados
Machado Meyer Advogados
Marcus Vinicius Furtado Coêlho Advocacia
Mauler Advogados
Mendes, Nagib e Luciano Fuck Advogados
Milaré Advogados
Moraes Pitombo Advogados
Multiplan
Nelio Machado Advogados
Nery Sociedade de Advogados
Oliveira Lima & Dall’Acqua Advogados
Ordem dos Advogados do Brasil — São Paulo
Original 123 Assessoria de Imprensa
Pardo Advogados Associados
Prevent Senior
Sergio Bermudes Advogados
Tavares & Krasovic Advogados
Tojal Renault Advogados
Warde Advogados

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