Competência fiscalizatória ambiental: ADI 4.757 e a interpretação do STJ
8 de maio de 2023, 15h26
Foi amplamente noticiada a publicação do acórdão da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.757, em 17/3/2023, no qual o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou parcialmente procedente a ação para conferir interpretação conforme à Constituição ao artigo 14, § 4º e artigo 17, § 3º, ambos da Lei Complementar (LC) 140/2011.
Demandada pelo artigo 23, parágrafo único da Constituição, a LC 140/11 fixou normas para a cooperação entre os entes federados nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, ao combate à poluição em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora.
Com efeito, a edição da LC 140/11 teve como objetivo a pacificação de conflitos de competência material entre os entes federativos [1].
A esse respeito, o legislador, ao redigir o artigo 17, § 3º da LC 140/11, buscou estabelecer, no caso de autuação, a prevalência do auto de infração ambiental lavrado pelo órgão ambiental que detém competência para licenciar ou autorizar o respectivo empreendimento ou atividade.
No julgamento da ADI 4757, a relatora ministra Rosa Weber, seguida pela unanimidade do STF [2], entendeu por conferir interpretação do dispositivo conforme a constituição federal no sentido de que "a prevalência do auto de infração lavrado pelo órgão originalmente competente para o licenciamento ou autorização ambiental não exclui a atuação supletiva de outro ente federado, desde que comprovada omissão ou insuficiência na tutela fiscalizatória".
Em seu voto, a relatora ponderou que a "competência prévia e estática do órgão responsável pelo licenciamento e autorizações" frustra o sistema constitucional ambiental, "baseado na responsabilidade solidária e objetiva".
As interpretações dos tribunais brasileiros acerca do artigo 17, § 3º da LC 140/11, devem se uniformizar ao entendimento do STF, analisando o cabimento de dupla (ou até tripla) autuação a cada caso concreto, considerando eventual omissão ou insuficiência da tutela fiscalizatória.
De todo modo, a interpretação da norma ainda tem muito a ser amadurecida.
Por um lado, há quem defenda com firmeza (relevante parte da doutrina)[3][4][5][6], que a autuação deve ser única, prevalecendo a fiscalização e, quando houver, autuação do órgão ambiental licenciador.
Somado ao entendimento mencionado acima, o Ibama, por meio da Orientação Jurídica Normativa (OJN) nº 49/2013 [7], reconheceu que, havendo "duplicidade de autuações, caberá a prevalência da fiscalização realizada pelo órgão licenciador". A esse respeito, a autarquia entende ser admissível a autuação de órgão fiscalizador supletivo na hipótese de omissão do órgão licenciador.
O fundamento para a prevalência do auto de infração lavrado pelo órgão licenciador é pragmático: (1) o órgão ambiental licenciador do empreendimento detém maior capacidade e conhecimento sobre a atividade para promover sua fiscalização; (2) visando a eficiência administrativa dos órgãos ambientais, não há razão para dupla (ou tripla) fiscalização da atividade; e (3) há receio de que, havendo diversos órgãos ambientais com a atribuição de fiscalizar determinado empreendimento, nenhum deles realize efetiva fiscalização, sob o pretexto de que a fiscalização é função de outro órgão — "jogo de empurra".
Vale fazer a ressalva de que, ainda que o "jogo de empurra" não seja objeto da presente análise, apenas para reforçar o risco de sua ocorrência, bem como a demonstrar que efetivamente há casos em que o órgão ambiental deixa de fiscalizar sob o pretexto de que a fiscalização é função de outro, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já enfrentou o tema [8].
Por sua vez, o STJ (e alguns órgãos ambientais) tem enfrentado a discussão sempre fundamentando, de forma ampla, na competência comum dos entes federativos para fiscalizar e impor sanções, pouco analisando diretamente, como no julgamento da ADI 4.757, eventual ofensa ao princípio do non bis in idem.
O STJ, em 2019, julgou de maneira semelhante ao STF. No julgamento do AgRg no REsp nº 1.569.052/RN[9], o relator ex-ministro Napoleão Nunes Maia Filho expôs que a atuação de órgão ambiental primário (licenciador) não compromete eventual atuação do órgão fiscalizatório secundário (federal).
Entretanto, pelas especificidades do caso concreto, o relator decidiu pela anulação da autuação imposta pelo Ibama, vislumbrando ter ocorrido a "usurpação da competência descentralizada, sem que se tenha sequer alegado motivo para tanto, como eventual inércia ou omissão do Estado-Membro".
Por sua vez, no julgamento do AgInt no REsp 1.484.933/CE [10], a relatora ministra Regina Helena Costa pontuou que "é pacífico nessa Corte que havendo omissão do órgão estadual na fiscalização, mesmo que outorgante da licença ambiental, o Ibama pode exercer o seu poder de polícia administrativa, porque não se pode confundir competência para licenciar com competência para fiscalizar".
O que se observa dos julgados mencionados acima é que o STJ já havia, muito antes da publicação do acórdão da ADI 4.757, se posicionado no sentido de permitir a dupla autuação, desde que devidamente motivada, expondo como exemplo de eventual motivação a inércia ou omissão do Estado-membro.
Em verdade, a omissão vem sendo adotada como critério permissivo de autuação do órgão secundário, desde antes da edição da LC 140/11.
No AgRg no REsp 711.405/PR [11], o relator ministro Humberto Martins pontuou que "[h]avendo omissão do órgão estadual na fiscalização, mesmo que outorgante da licença ambiental, pode o IBAMA exercer o seu poder de polícia administrativa, pois não há confundir competência para licenciar com competência para fiscalizar".
Também relatado pelo ministro Humberto Martins, o julgamento do AgRg no REsp 1.373.302/CE [12], decidiu que a fiscalização ambiental deve contar com amplo aparato a ser exercido pelos quatro entes da federação. Nesse sentido, o relator entendeu que o "poder de polícia ambiental pode — e deve — ser exercido por todos os entes da federação".
No referido julgamento, o relator ressaltou que "a atividade fiscalizatória das atividades nocivas ao meio ambiente concede ao Ibama interesse jurídico suficiente para exercer seu poder de polícia administrativa, ainda que o bem esteja situado em área cuja competência para o licenciamento seja do município ou do estado".
Ademais, no julgamento do REsp 1.560.916/AL [13], o relator ministro Francisco Falcão, em interpretação ao artigo 17, § 3º da LC 140/11, expôs que o dispositivo confere "legitimidade ao Ibama para atuar na fiscalização de atividades nocivas ao meio ambiente, independentemente de tratar-se de área privada, ou do exercício de órgão de competência local". Contudo, foi expresso na ressalva de que, caso tivesse autuação do órgão ambiental primário, não caberia autuação do órgão ambiental secundário, sob pena de ofensa ao princípio do non bis in idem.
O referido julgado é um precedente raro, em que a corte superior considerou o princípio do non bis in idem, dando ao artigo 17, § 3º da LC 140/11, interpretação, em nosso entendimento, em harmonia com a regra que o legislador buscou estabelecer.
Também considerando o princípio do non bis in idem, mas com interpretação distinta, no REsp 1.132.682/RJ [14], publicado em 12/03/2020, o relator ministro Herman Benjamin entendeu que a competência da Capitania dos Portos para aplicar sanção administrativa não exclui, mas complementa, a legitimidade fiscalizatória do órgão ambiental municipal — há outros julgados no mesmo sentido.
No voto, o relator destacou, em interpretação restrita do artigo 76 [15] da Lei Federal 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais), que a sanção imposta pelos estados, munícipios, Distrito Federal e territórios prevalecem sobre a sanção imposta por ente federal; não valendo a regra ao contrário, nem cabendo aplicação por analogia, diante do "silêncio eloquente por parte do legislador".
Ou seja, o relator entendeu que a multa ambiental federal paga não prevalece sobre eventual multa aplicada por demais entes federados:
"[n]ão há margem para interpretação de que a multa paga à União impossibilita a cobrança daquela aplicada pelo Município, sob pena de bis in idem, uma vez que a atuação conjunta dos poderes públicos, de forma cooperada, na tutela do meio ambiente, é dever imposto pela Constituição Federal, a qual, no parágrafo único de seu art. 23, delegou à Lei Complementar a fixação de normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional"
Além disso, em obter dictum, o relator afirmou que o critério escolhido pelo legislador (no artigo 76 da Lei Federal nº 9.605/98) é de duvidosa constitucionalidade.
Ressalta-se que no julgado mencionado acima, não parece ter sido considerado o texto da LC 140/11, havendo apenas uma menção de que, na época da lavratura da autuação discutida, a norma ainda não havia sido editada.
Trazida a interpretação do STJ acerca da possibilidade de dupla (ou tripla) sanção pelo mesmo fato, fundamentada na competência comum dos entes da federação para exercer a fiscalização ambiental, nos parece que o acórdão da ADI 4.757, nesse aspecto, não causa tanta surpresa.
Com efeito, a interpretação da LC 140/11, incluindo o artigo 17, § 3º, está em processo de amadurecimento, sendo a decisão da ADI 4.757 apenas mais um passo de lapidação da interpretação da norma.
É certo que ainda serão proferidas diversas decisões judiciais sobre o tema, merecendo especial atenção às eventuais decisões a serem proferidas pelo STJ. Claramente a corte superior ainda não pacificou entendimento a respeito do cabimento de sanção dupla (ou tripla) imposta por diferentes entes da federação.
[1] ANTUNES. Paulo de Bessa. LEMOS, Bruno Linhares. Conflitos federativos nas competências materiais ambientais In Farias, Talden. 10 anos da Lei Complementar 140: desafios e perspectivas Andradina: Editora Meraki, 2022. 1266 p. 70. Edição do Kindle.
[2] O ministro Nunes Marques acompanhou a relatora com ressalvas.
[3] FARIAS, Talden. Competência administrativa ambiental: fiscalização, sanções e licenciamento ambiental na Lei Complementar nº 140/ 2011. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. p. 67.
[4] BURMANN, Alexandre. TORRES, Marcos Abreu. Artigo 17 da Lei Complementar 140/ 11: evolução legislativa, desafios e perspectivas. In Farias, Talden. 10 anos da Lei Complementar 140: desafios e perspectivas Andradina: Editora Meraki, 2022. 1266 p. 104. Edição do Kindle.
[5] ANTUNES. Paulo de Bessa. LEMOS, Bruno Linhares. Conflitos federativos nas competências materiais ambientais In Farias, Talden. 10 anos da Lei Complementar 140: desafios e perspectivas Andradina: Editora Meraki, 2022. 1266 p. 84-85. Edição do Kindle.
[6] MORAES. Rodrigo Jorge. A Lei Complementar 140/ 2011 e o Modelo Cooperativo de Tutela Administrativa Comum do Meio Ambiente. In Farias, Talden. 10 anos da Lei Complementar 140: desafios e perspectivas Andradina: Editora Meraki, 2022. 1266 p. 84-85. Edição do Kindle.
[7] https://www.gov.br/ibama/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/arquivos/ojn/ojn_49_2013.pdf consultado em 15/04/2023.
[8] AgInt no REsp n. 1.676.465/SP, relator ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, julgado em 8/10/2019, DJe de 30/10/2019.
[9] AgRg no REsp n. 1.569.052/RN, relator ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Turma, julgado em 15/4/2019, DJe de 22/4/2019.
[10] AgInt no REsp n. 1.484.933/CE, relatora ministra Regina Helena Costa, 1ª Turma, julgado em 21/3/2017, DJe de 29/3/2017.
[11] AgRg no REsp n. 711.405/PR, relator ministro Humberto Martins, 2ª Turma, julgado em 28/4/2009, DJe de 15/5/2009.
[12] AgRg no REsp n. 1.373.302/CE, relator ministro Humberto Martins, 2ª Turma, julgado em 11/6/2013, DJe de 19/6/2013.
[13] REsp n. 1.560.916/AL, relator ministro Francisco Falcão, 2ª Turma, julgado em 6/10/2016, DJe de 9/12/2016.
[14] REsp nº 673.765/RJ, relator ministro LUIZ FUX, DJ de 26/09/2005, p. 214; REsp 1.560.022/SP, rel. ministro HERMAN BENJAMIN, 2ª TURMA, DJe 3/2/2016; REsp 1.142.377/RJ, rel. ministro HERMAN BENJAMIN, 2ª TURMA, DJe 28/2/2012.
[15] Art. 76. O pagamento de multa imposta pelos Estados, Municípios, Distrito Federal ou Territórios substitui a multa federal na mesma hipótese de incidência.
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