Direito da Insolvência

Mente coletiva e o juízo universal (parte 1)

Autor

  • Nilton Belli Filho

    é promotor de Justiça de São Paulo bacharel pela USP especialista pela FMU-SP Master in USA Law (LLM) pela Washington University Saint Louis.

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6 de maio de 2024, 8h00

Com alguma frequência são vistas postulações cujo fundamento jurídico parece decorrer de uma “mente coletiva forense” [1], mas às vezes passam despercebidas pelos atores processuais, inclusive dos que devem velar pela aplicação da lei — o Ministério Público e o próprio Juiz da causa.

O promotor Nilton Belli Filho

Existem certas práticas e/ou postulações que, num primeiro momento podem até parecer corretas, embora nem sempre derivem de análise mais acurada de sua conformidade com o ordenamento e os princípios jurídicos que o norteiam.

No âmbito da insolvência tem se verificado amiúde uma prática que surge na ultimação da falência, após a realização dos atos de alienação de bens do devedor.

Nas falências contendo ativos são adotadas formalidades de natureza cartorial na fase arrecadatória que perduram até o encerramento; são formalidades imprescindíveis e quase que automáticas, cuja participação dos Registros de Imóveis se mostra inarredável, quando há arrecadação de bens dessa natureza.

Em atenção ao pressuposto basilar de legalidade são empreendidas tais providências cartorárias desde a decretação da quebra, com a arrecadação dos bens e formação da massa falida objetiva [2], e culminam na liquidação desses ativos e consequente transmissão de seu produto aos credores habilitados no certame.

No interstício entre a consolidação da massa falida objetiva e a satisfação da massa falida subjetiva (artigo 115 da Lei nº 11.101/05) desenrolam-se um sem-número de formalidades intrínsecas e extrínsecas até a execução coletiva chegar a termo.

Assim, iniciada a fase específica para arrecadação de bens (artigo 108), a partir daí são determinadas providências pelo juízo universal visando a completa delimitação dos bens e, para tanto, mister sejam comunicados os serviços imobiliários, não só para se corporificar a preferência da arrecadação daquele imóvel no âmbito falimentar, mas também para que tal anotação no fólio real espelhe a situação do bem aos interessados. [3]

Realizada a arrecadação de um imóvel a partir da determinação do juízo universal, ao serviço da circunscrição a que o imóvel pertença deve ser registrada (ou ‘averbada’) a informação pertinente à quebra e sua consequente arrecadação; com isso, ficará o bem sob os auspícios do juízo falimentar (artigo 110, parágrafo 4º, da Lei nº 11.101/05).

Supondo-se que o imóvel arrecadado esteja devidamente registrado e de titularidade do devedor falido, na sua matrícula constará a anotação da arrecadação proveniente do juízo falimentar; observa-se o princípio da continuidade registral, ou seja, a ordem judicial arrecadatória ingressa e é inscrita na sequência cronológica das demais anotações, registros e averbações constantes daquele documento. [4]

Portanto, se naquela matrícula há anotação, no encadeamento cronológico será inscrita a arrecadação determinada pelo juízo falimentar, em atenção ao princípio da continuidade.[5]

O encaminhamento do mandado judicial de arrecadação ao mapa imobiliário para a respectiva inscrição na matrícula possui várias consequências, dentre elas a de tornar pública a existência do gravame daquele imóvel, além de criação de precedência dessa constrição em relação às demais outrora anotadas. [6]

Consabido que a arrecadação determinada pelo juízo falimentar se sobrepõe às eventuais constrições até então contidas naquele documento, impedindo discussões acerca da pluralidade de penhoras, comumente verificada nas execuções singulares ou, até mesmo, nas lides de índole fiscal, quando pode haver disputa entre os credores que as efetivaram (v. artigo 797 do CPC e 908 do CPC). [7] [8]

Jurisprudência

Acerca disso, o STJ decidiu que a regra contida no Código de Processo Civil, em seu artigo 797, deve prevalecer, estando claro que terá preferência o credor que primeiro tiver lavrado o auto de penhora em sua execução, pouco importando quem foi o primeiro a fazer o registro na matrícula em cartório. [9]

Já no campo da insolvência empresarial, o mesmo STJ privilegia o juízo universal porque tem amplo conhecimento sobre as limitações e necessidades da empresa recuperanda [10] e, ainda, a prevalência em relação às demandas de interesse do devedor quando falido. [11] Nesse contexto, o juízo universal é sempre o responsável pelo produto da arrematação ou alienação judicial de bens da sociedade insolvente. [12]

Por isso o juízo da falência é universal; para ele devem convergir todos os credores buscando satisfação de seus títulos. Também é indivisível, pois o único competente para dirimir os conflitos entre os credores e o devedor insolvente, debruçando-se sobre todas as ações e quaisquer outras causas que envolvam seus interesses. [13] [14]

Efetivada a arrecadação falimentar na matrícula do imóvel, as inscrições feitas anteriormente permanecem intocadas; a matrícula consubstancia todas as ocorrências em ordem cronológica sobre o imóvel ali descrito e compreende todos os atos jurídicos a ele pertinentes [15]. É o “histórico da vida” do imóvel. [16]

Assente, portanto, que o magistrado falimentar profere a decisão definitiva a respeito de constrição sobre bens que afetem o patrimônio da massa falida ou sobre bens essenciais à continuidade da empresa quando em recuperação, mesmo que tenha de adentrar na competência de juízos cíveis, fiscais, trabalhistas ou criminais. [17]

Em virtude da proeminência do juízo falimentar e, considerando a arrecadação dos bens imóveis, a anotação dessa circunstância torna esmaecida, ainda que de modo indireto, a força vinculante das constrições advindas doutros juízos.

Nessa toada e na consecução dos atos visando a alienação do imóvel arrecadado, seguem-se formalidades avaliatórias, as cientificações dos interessados e, finalmente, o certame a ser instaurado entre os pretendentes à aquisição, o leilão.

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[1] A mente coletiva é um conceito desenvolvido pelo psicólogo suíço Carl Jung, que se refere à ideia de que existe uma consciência compartilhada pela humanidade como um todo. Segundo Jung, essa consciência coletiva é composta por padrões de pensamento, crenças, mitos e símbolos que são compartilhados por diferentes culturas e sociedades ao redor do mundo(https://psicologosemmanaus.com.br/glossario/o-que-e-mente-coletiva-subconsciente-coletiva-inconsciente/)

[2] Para que os créditos possam ser satisfeitos na execução coletiva, os ativos do falido, e que compõe a Massa Falida objetiva, deverão ser liquidados. Liquidação é a conversão em dinheiro das coisas e dos direitos do falido, arrecadados pelo administrador judicial, e que objetiva a satisfação dos créditos habilitados e das despesas e encargos da Massa Falida (cf. MARCELO BARBOSA SACRAMONE in Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência, SaraivaJur, 2ª. Edição, 2021, pág.567).

[3] Cada imóvel deve ser inscrito no registro imobiliário em folha aparte ou abranger um conjunto de folhas no livro de registro geral. É aberto um fólio, uma folha ou registro particular para o imóvel correspondente, na qual serão feitos todos os assentos relativos aos direitos reais sobre ele incidentes. Este registro particular é a matrícula ou o fólio real, denominação proveniente do direito germânico. É nesta folha, ou conjunto de folhas, do livro de registro que será inscrita toda mutação jurídico-real do imóvel: daí o nome “fólio (folha) real” (cf. LUIZ GUILHERME LOUREIRO in Registros Públicos – Teoria e Prática, ed. Método, 2011, pág.209).

[4] Sobre o tema sugere-se o esclarecedor artigo do culto SERGIO JACOMINO, 5º. Oficial do Registro de Imóveis da Capital-SP, Averbação cautelar e o princípio da continuidade (https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/353429/averbacao-cautelar-e-o-principio-da-continuidade)

[5] O princípio da continuidade (art.195 da Lei de Registros Públicos) exige encadeamento, entre si, dos assentos cartorários pertinentes a um mesmo imóvel. Por isso, segundo o disposto no art.222 da lei, em todas as escrituras e em todos os atos relativos a imóveis, bem como nas cartas de sentença e formais de partilha, o tabelião ou escrivão, deve fazer referência à matrícula ou ao registro anterior, seu número e cartório. E o motivo é óbvio, pois somente pode alienar o domínio quem é proprietário, e a transferência de domínio somente se opera após a transcrição (cf. MARIA HELENA DINIZ in Sistema de Registro de Imóveis, 7ª. Edição, Saraiva, 2007, pág.37).

[6] Analogicamente à arrecadação, tem-se que o registro da penhora, do arresto e do sequestro de imóveis, no Livro n.2 (Lei n.6015/73, art.167, I, n.5), visa à proteção ao terceiro de boa-fé e à segurança dos negócios jurídicos, pois, ao gerar a publicidade, traz a presunção juris et de jure da ciência a terceiros (cf. MARIA HELENA DINIZ in ob. Cit., pág.219)

[7] O concurso universal de credores se dá nos chamados casos de insolvência do devedor e difere do chamado concurso singular, que é incidente que ocorre quando se instaura um concurso em virtude de haver várias penhoras sobre os mesmos bens. Havendo mais de uma penhora sobre o mesmo bem, há que se verificar se entre os créditos de cada execução há preferência legal. Não havendo previsão de preferência legal, terá prioridade para receber aquele credor cuja penhora se deu em primeiro lugar (cf. RENÊ HELLMAN in Comentários ao Código de Processo Civil, Juruá Editora, Curitiba, 2020, pág.913)

[8] Para maior aprofundamento, sugere-se o artigo de SCILIO FAVER – O concurso singular de credores decorrente da penhora (https://www.migalhas.com.br/depeso/405082/o-concurso-singular-de-credores-decorrente-da-penhora)

[9]PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. DESAPROPRIAÇÃO DE IMÓVEL COM PENHORA ANTERIOR AVERBADA NA MATRÍCULA. ART. 31 DO DECRETO-LEI 3.365/1941. GARANTIA QUE NÃO AUTORIZA O LEVANTAMENTO IMEDIATO DO NUMERÁRIO PELO CREDOR DO DEVEDOR EXPROPRIADO. DIREITO DE PREFERÊNCIA OU PRELAÇÃO DO CREDOR QUE PRIMEIRO PENHOROU O BEM IMÓVEL. DESNECESSIDADE DE PENHORA NO ROSTO DOS AUTOS DA AÇÃO EXPROPRIATÓRIA. (…) III – O credor primeiro que efetuar a penhora sobre bens do devedor, adquire, por força dessa prioridade temporal, um direito de prelação ou de preempção legal e, em consequência, preferirá aos demais e subsequentes credores do mesmo bem, recebendo em primeiro lugar o pagamento de seu crédito. (…) (STJ, rel. Min. Regina Helena Costa, 1ª. Turma, REsp nº 1.728.048/SP, j.20.05.2019)

[10] O fato de a penhora ter sido determinada em data anterior ao deferimento do pedido de recuperação judicial não obsta o exercício da força atrativa do juízo universal (competência do juízo recuperacional para decidir sobre todos os bens abrangidos pelo processo) (STJ, REsp n. 1.635.332/RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª. Turma, j.17.11.2016, DJe 21.11.2016);

[11] A falência superveniente do devedor não tem o condão de paralisar o processo de execução fiscal, nem de desconstituir a penhora realizada anteriormente à quebra. Outrossim, o produto da alienação judicial dos bens penhorados deve ser repassado ao juízo universal da falência para apuração das preferências. Dessarte, não há que se discutir, em sede do juízo de execução, qual a preferência para o levantamento dos valores do bem arrematado. (STJ, AgRg no REsp n.914712-PR, 1ª. Turma, rel. Min. Luiz Fux, j.09.10.2010, v.u.)

[12] O ato de arrecadação torna o Juízo Falimentar de certa forma prevento para decidir quaisquer questões atinentes aos bens arrecadados, posto que envolve a declaração – ainda que tácita e pressuposta – de propriedade desses bens pela falida. Em outras palavras, a partir da arrecadação, caberá unicamente ao Juízo Falimentar decidir sobre o futuro dos bens arrecadados: alienação, restituição, adjudicação etc. (STJ, CC n.84752/RN, rel. Min. Nancy Andrighi, 2ª. Seção, j.27.06.2007, DJ 01.08.2007)

[13] A indivisibilidade do juízo da falência é decorrência lógica da unidade de juízo, ditada por razões de economia processual e fruto da necessidade de uma solução igualitária e eficaz para os conflitos envolvendo a empresa falida em todos os seus aspectos e interesses, e por isso já CARVALHO DE MENDONÇA enunciava que “o juízo da falência é um mar onde se precipitam todos os rios”. Assim, temos que o juízo da falência é universal porque a ele devem todos os credores se dirigir para a satisfação dos seus créditos e é indivisível, porque o único competente para dirimir os conflitos entre os credores e o devedor insolvente, assim declarado judicialmente, julgando todas as ações que envolvam interesses da sociedade comercial falida. A indivisibilidade e a universalidade são características essenciais do juízo falimentar, que dão suporte e efetividade ao princípio da par conditio creditorum, permitindo o tratamento igualitário dos credores, cujas demandas serão apreciadas pelo mesmo juízo e, reconhecidos os créditos, admitidos ao passivo da falida (cf. MARIO MORAES MARQUES JUNIOR in Observações sobre a competência do Juízo da falência, Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, v.15, 2002, pág.206)

[14] Uma vez decretada a falência da devedora, todos os seus bens são arrecadados para que submetam ao concurso universal de credores – Ainda que a penhora seja anterior ao decreto de quebra, sobrevindo declaração da falência da devedora, os atos de expropriação praticados na execução individual não produzem efeito perante a massa falida (TJSP, AI N° 2018446-85.2021.8.26.0000, 2ª. Câmara Reservada de Direito Empresarial, rel. Des. Sergio Shimura, j.02.05.2022, v.u.)

[15] Penhora – Bem imóvel – Indisponibilidade. A declaração de indisponibilidade do bem imóvel não impede que, sobre ele, incidam penhora e averbação junto à respectiva matrícula. A multiplicidade de penhora não prejudica direitos de preferência. Recurso provido. (TJSP, Agravo de Instrumento nº 2237164-20.2019.8.26.0000, rel. Des. Itamar Gaino, 21ª Câmara de Direito Privado, j. 07.05.2020)

[16] Toda mutação jurídica/real que se observar no imóvel será registrada na matrícula correspondente, de forma que toda a vida jurídica deste bem poderá ser conhecida por qualquer interessado (v.g., cadeia de transmissões, ônus que recaem sobre o imóvel, eventual existência de direitos reais limitados etc.). Desse modo, a matrícula ou ‘fólio real’ é o eixo central do sistema brasileiro de registro de imóveis (cf. LUIZ GUILHERME LOUREIRO in ob. Cit., pág.209)

[17] O juízo universal da falência deve ser compreendido como um juízo universal de execução coletiva, razão que justifica sua vis attractiva e indivisibilidade, ou seja, sua competência para processar e jugar todas as demandas que envolvam bens, interesses e negócios do falido, sem desrespeitar, contudo, as competências constitucionais dos juízos trabalhistas ou federais, bem como a competência preventa de outros juízos para causas ilíquidas (cf. GLADSTON MAMEDE in Direito empresarial brasileiro: falência e recuperação de empresas. São Paulo: Atlas, 2006. v. 4, pág. 312).

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