Denúncia só com base em supostas infrações não é suficiente para ação penal
3 de julho de 2024, 18h33
Em 2018, foi deflagrada a operação “fundo perdido” pela Delegacia de Repressão a Crimes Financeiros do RJ (Delefin), com o objetivo de apurar fraude de mais de R$ 300 milhões na Refer (Ferroviária de Seguridade Social), entidade fechada de Previdência Complementar (EFPC).

As investigações foram iniciadas em 2014, todavia somente em 2023 foi elaborada denúncia [1] pelo MPF (Ministério Público Federal) imputando o crime de gestão fraudulenta ao presidente, diretores financeiros e demais gerentes da entidade. O parquet acusou o presidente da Refer de ter feito 12 investimentos em ativos problemáticos, que teriam gerado prejuízos milionários, sendo incurso no artigo 4º, caput, da Lei nº 7.492/1986, por 12 vezes, em concurso material (artigo 69 CP).
A resposta à acusação apresentada pelos advogados Marta Catarina Clem e Flávio Fernandes trouxe à baila tese evidenciando que o MPF formulou sua acusação pautando-se única e exclusivamente em infrações administrativas no âmbito da Previc, indicadas em fórmulas genéricas com fundamento na discricionariedade administrativa e tipicidade elástica, incompatíveis com o princípio da tipicidade estrita (artigo 1º CP c/c art. 5º XXXIX CRFB).
Conforme lição de Odete Medauar, vige, no direito administrativo sancionador, o chamado princípio da tipicidade elástica, o que significa dizer que as condutas consideradas infrações, na esfera administrativa, são indicadas por fórmulas amplas, afastada a prevalência da tipicidade rígida do Direito Penal.
A professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro, da USP (Universidade de São Paulo), é quem afirma que no direito administrativo prevalece a atipicidade, decretando, inclusive, a existência de um princípio da atipicidade. Por óbvio, que tal lógica decorre do fato das normas administrativas serem, em sua maior parte, amplíssimas, com pouco ou nenhuma especificidade objetiva. Sendo assim, as infrações estão legalmente previstas, mas são indicadas em fórmulas genéricas, resultando na abertura para a discricionariedade administrativa no exercício do poder disciplinar.
Direito Administrativo
Ao contrário do direito penal, em que a tipicidade é um dos princípios fundamentais, decorrentes do postulado segundo o qual não há crime sem lei que o preveja (nullum crimen, nulla poena sine lege), no direito administrativo prevalece a atipicidade: “são muito poucas as infrações descritas em lei, como ocorre com o abandono de cargo. A maior parte delas fica sujeita à discricionariedade administrativa diante de cada caso concreto”.
Diante da gravidade dos meios que o Estado emprega na repressão do delito, consoante a drástica intervenção nos direitos mais elementares do cidadão, no direito penal, o caráter de ultima ratio, impõe ao titular da ação penal um sistema de controle mais rígido do que se vê na esfera administrativa. A conduta dita como criminosa deve ser individualizada, de maneira pormenorizada, sendo certo que a adequação típica cumpre função garantidora e deve ser rigorosamente observada.
É para isso que temos no direito brasileiro base principiológica reguladora da aplicação da lei penal e processual penal, também chamada de princípios constitucionais fundamentais de garantia do cidadão, estando incluído entre eles a tipicidade estrita. A tipicidade é o cumprimento da própria legalidade e se traduz em uma relação de adequação entre a conduta e a lei penal.
No processo, é impossível não se observar que o respeitável membro do parquet (i) deixou de individualizar e delimitar as condutas ditas como criminosas, (ii) deixou de realizar a descrição específica dos fatos congruentes ao tipo penal imputado; (iii) deixou de projetar todos os elementos da figura típica ao caso concreto. Isso ocorre porque a denúncia se resumiu a mera transcrição de autos de infração elaborados por fiscais da Previc, que são regidos por normas administrativas, gozam da tutela do princípio da atipicidade ou tipicidade elástica, ou seja, não respeita princípio essencial do moderno direito e processo penal: a tipicidade estrita.
Ao copiar e colar autos de infração elaborados por fiscais da Previc, sem qualquer outro subsídio para imputar o delito de gestão fraudulenta ao acusado, sem individualizar e descrever condutas, sem apresentar provas, agiu o MP orientado pelo arbítrio administrativo, pela atipicidade, que não pode, de maneira alguma, se impor na esfera criminal, tendo em vista a notória violação ao princípio da estrita tipicidade.
A tese foi acolhida pelo juízo da 3ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, resultando na absolvição sumária do acusado:
“Merece acolhimento a tese do douto Advogado constituído pelo acusado Marco André ao sustentar que a denúncia se resume a mera transcrição de autos de infração elaborados por fiscais da Previc, que são regidos por normas administrativas, gozam da tutela do princípio da atipicidade ou tipicidade elástica, ou seja, não respeita princípio essencial do moderno direito e processo penal: a tipicidade estrita, portanto, considero que apenas as provas coletadas no caderno administrativo não são suficientes a motivar o prosseguimento da ação penal, sendo o caso de absolvição sumária, na forma do artigo 397, III do Código de Processo Penal.”
Afirmou a juíza Rosália Monteiro em sua decisão.
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Referências bibliográficas
BRASIL. 3ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro. Ação Penal nº: 5088113-64.2023.4.02.5101/RJ.
MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. São Paulo: RT, 1996.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 16ª ed. São Paulo: Atlas, 2018
ROSA, Alexandre Morais. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. 5ª ed. Florianópolis: EMais, 2019.
LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de Processo Penal. Niterói: Impetus, 2013.
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