Regulação soberana para fundos soberanos
17 de junho de 2024, 9h21
Em 2024, o total de recursos administrados por fundos soberanos ao redor do mundo ultrapassou a marca histórica de US$ 12 trilhões em ativos. O valor supera o produto interno somado de economias como Japão, Alemanha e Inglaterra. O Brasil vem se consolidando como um principais destinos desses recursos, mas até hoje não tem uma regulação específica sobre o tema. Ao receber fundos soberanos, é bom ficar atento à soberania.
A consultoria internacional Global SWF calcula que o Brasil recebeu US$ 7,6 bilhões (R$ 40 bilhões) de fundos soberanos em 2023, um salto de 270% em relação ano anterior, subindo à sexta posição no ranking de maiores destinos desses recursos. Esses fundos crescem ano a ano e assumem um perfil de investimentos cada vez mais agressivo, com participações e aquisições de empresas e ativos em áreas como tecnologia, infraestrutura, energia, matérias-primas, indústria básica e mercado imobiliário.
Somados os fundos soberanos e a outros tipos de fundos administrados por entidades públicas estrangeiras, como bancos centrais e fundos de pensão, há US$ 51 trilhões em recursos nas mãos de investidores estatais pelo mundo. É mais do que duas vezes o produto interno dos Estados Unidos. A isso se somam bancos de investimento, empresas estatais e agentes privados financiados por fundos públicos. São todos captais que podem misturar economia e política e atuar em nome de interesses estratégicos de seus países de origem.
Cavalos de Troia financeiros
Especialistas expressam cada vez mais preocupações de que investimentos soberanos podem ser “cavalos de Troia financeiros”, colocando em risco o desenvolvimento econômico de seus receptores. Entre os perigos estão a interferência na gestão de grandes grupos empresariais de outros países, apropriação e transferência de tecnologias, manipulação de preços, mercados, criação de subsídios e até mesmo “dumping”, com uso do poder financeiro superior para quebrar a concorrência e forjar monopólios.
A movimentação de concorrentes com capacidade financeira equivalente à riqueza de nações e financiados a custo quase zero por orçamentos públicos é uma evidente ameaça ao equilíbrio dos mercados globais. As maiores vítimas são grupos locais com menor capacidade financeira, principalmente as pequenas e médias empresas, as quais são grandes geradoras de emprego, renda e inovação, mas vulneráveis a oscilações de preço e manipulação de mercado.
Os fundos soberanos, assim como outras formas de investimento estatal, têm ainda à disposição o arsenal de estruturas diplomáticas de Estado para ajudar a abrir portas e fechar negócios. As negociações com estruturas financeira soberanas ultrapassam critérios puramente mercantis para incluir relações entre estados e estratégias geopolíticas
Esses recursos contam ainda com a proteção dos labirintos jurídicos do direito público internacional, que assegura todo um leque de proteções e imunidades. E caso algo dê errado, a disputa não vai parar em um tribunal, mas em foros arbitrais internacionais, onde são solucionados a portas fechadas em salões privados, abarrotados de conflitos de interesse.
O Brasil está ficando para trás na regulação de investimentos estrangeiros. Dezenas de países, incluindo Estados Unidos e União Europeia, já adotam controles e triagem de investimentos externos. Não temos nem mesmo dados completos sobre quem são esses investidores soberanos que chegam por aqui, o que querem, os possíveis conflitos de interesse envolvidos e eventuais riscos ao equilíbrio de mercado e ao interesse nacional.
Política e economia
Até duas décadas atrás os investimentos soberanos tinham perfil conservador e se destinavam na quase totalidade a aplicações de longo prazo em títulos da dívida pública de países centrais. Hoje fundos soberanos adotam perfis cada vez mais diversificados de investimento, com aquisição de participações no mercado de capitais, operações de fusão e aquisição, atuação em conselhos de administração e aquisição de tecnologias estratégicas.
Esse perfil de investimento levanta preocupações para além da economia. O temor é que movimentos financeiros possam ocultar agendas políticas. Isso implica risco de que fundos soberanos abracem estratégias deturpadas por prioridades nacionais, manipulando mercados e se apropriando de ativos e tecnologia crítica de outros países.
O grau de governança e transparência desses fundos soberanos é variável. Alguns deles são geridos de forma satisfatória, mas outros tendem a reproduzir um perfil de gestão opaco e são controlados por países com pouca tradição democrática. Países do oriente médio e extremo oriente, por exemplo, controlam nada menos do que 70% dos recursos geridos por fundos soberanos no mundo, somando mais de US$ 8,5 trilhões em ativos.
Controles pelo mundo
A preocupação de países desenvolvidos com os investimentos externos é antiga. Nos Estados Unidos as primeiras ferramentas de monitoramento de investimento externo foram criadas nos anos 1970, com a instituição do Comitê sobre Investimento Estrangeiro nos Estados Unidos (Comittee on Foreign Investment in the United States — CFIUS). O órgão é ligado ao Poder Executivo e está em atividade até hoje, com novas atribuições e ferramentas.
Uma segunda onda de mudanças foi aprovada em 2007 com a Lei de Investimento e Segurança Nacional (Foreign Investment and National Security Act — Finsa). A lei criou novos critérios para a autorização de investimentos estrangeiros em território norte-americano, com atenção especial à questão da segurança. A norma foi aprovada ainda no contexto dos atentados de 11 de setembro de 2001 e visava monitorar o controle de infraestrutura estratégica nos EUA.

A Securities and Exchange Commission (SEC), órgão regulador do mercado de capitais dos Estados Unidos, promoveu em 2023 alterações no Investment Advisers Act (Lei dos Assessores de Investimento) de 1940. A mudança visa criar novas obrigações e restringir atividades de investidores, acabando com facilidades para fundos de investimento estatal estrangeiro. A mudança é vista como um dos elementos que levaram a uma redução de 51% em aportes de fundos soberanos em fusões e aquisições em 2023, segundo dados da consultoria S&P.
Em abril de 2024, um memorando assinado pelo presidente Joe Biden ampliou novamente as atribuições do Comitê sobre Investimento Estrangeiro nos Estados Unidos (CFIUS). O documento cria a atribuição ao CFIUS de orientar outros órgãos do governo para informar e prevenir riscos trazidos por investimentos estrangeiros em infraestrutura.
Em 2023 a União Europeia lançou um amplo regulamento de controle com a aprovação da Regulação de Subsídios Estrangeiros (Foreing Subsidies Regulation — FSR). A finalidade é investigar e prevenir potenciais distorções de mercado causadas por investimentos estrangeiros. Entre seus alvos estão os fundos soberanos e outras formas de investimento público e privado estrangeiros.
O escritório das Nações Unidas para o desenvolvimento econômico (Unctad) contabiliza 37 países com filtros para barrar investimento externo. O instrumento era praticamente desconhecido no mundo até 20 anos atrás. Apenas entre 2020 e 2022 as regras de triagem de investimento externo foram criadas em 12 países e atualizadas 42 vezes.
Manipulação de mercados
Essas novas regras são uma resposta a antigas pressões de mercados, analistas, opinião pública e políticos cobrando mais controle sobre a atuação de fundos soberanos e investimentos estrangeiros. A ideia de que fundos públicos de outros países podem despejar bilhões de dólares para manipular mercados e beneficiar seus interesses colocou em alerta até os mais aguerridos defensores do liberalismo econômico.
Em 19 de janeiro de 2008 a revista inglesa The Economist, um bastião liberal, publicou na capa de sua edição uma montagem mostrando helicópteros militares estampados com bandeiras de países como Kwait, China e Singapura. Eles carregavam barras de ouro sob o título “A invasão dos fundos soberanos”. A preocupação da revista eram aportes bilionários desses fundos em Wall Street e suas possíveis consequências no futuro.
O alerta soou mais uma vez em 2008 quando o China Investment Corporation, um dos três principais fundos soberanos chineses, hoje com ativos de US$ 1,2 trilhão, lançou uma operação no mercado de capitais para comprar 12% da mineradora anglo-australiana Rio Tinto. A operação, orçada em US$ 14 bilhões, foi executada pela companhia chinesa de alumínio Chinalco.
O objetivo era ganhar assento na administração da Rio Tinto e impedir sua fusão com a mineradora australiana BHP Billington. Juntas, as duas empresas controlariam um terço do mercado mundial de minério de ferro e dominariam a produção global de alumínio e cobre. A China pretendia claramente usar a operação para controlar preços e proteger seu mercado interno. Entre 2008 e 2017 a importação de minério de ferro pela China passou de 500 milhões para 1 bilhão de toneladas.
Interesse nacional
O Brasil tem enormes reservas de petróleo e gás e outros recursos minerais, produção agrícola gigantesca, empresas de grande porte e competitividade internacional e tecnologia de ponta em áreas como indústria aeroespacial e biotecnologia. Há risco real de captura desses ativos por fundos estrangeiros, transformando o Brasil em apêndice de grandes monopólios estrangeiros.
Somos um país em desenvolvimento com mercado de capitais incipiente e carência de fundos e investimento. Isso torna o Brasil uma presa fácil para capitais oportunistas e interesses ocultos. Caso não criemos regulação adequada, podemos ficar sem defesas contra fundos estrangeiros que visem se apropriar de ativos estratégicos, sabotando o desenvolvimento nacional.
Propostas e controles
Fundos públicos estrangeiros podem assumir diversas formas e podem adotar estratégias diversionistas para driblar controles. Daí a necessidade de ter regras flexíveis e adaptativas. O objetivo é coibir a sobreposição entre economia e política e proteger o interesse nacional, pouco importando designações e formatos assumidos pela operação do capital estrangeiro.
Dentre propostas existentes para regular o tema no Brasil, o Projeto de Lei 1659/2024, do deputado Filipe Barros (PL-PR), em tramitação na Câmara dos Deputados, tem a vantagem usar definições amplas das atividades a serem monitoradas. O texto cria dever de comunicação de operações relevantes e atribui ao Poder Executivo o controle da aquisição de “ativos estratégicos” por agentes de países estrangeiros.
A triagem de investimentos externos é uma tendência global, mas o Brasil parece estar ficando para trás. Movimentos como “friendshoring” e “nearshoring” adotados por empresas e países há alguns anos, expressam a ideia de que é preciso ter mais seletividade nas relações econômicas e dar prioridade a negócios com nações amigas e parceiros próximos.
O formato desses controles pode variar, mas sua essência é uma só. É urgente instituir instrumentos de monitoramento e controle de investimentos estrangeiros em áreas estratégicas antes que o pior aconteça. O mercado brasileiro é vulnerável a fundos globais com capacidade financeira muitas vezes superior à nossa economia. Os portões estão abertos e novos cavalos de Troia financeiros podem entrar a qualquer momento.
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