Opinião

Cherstenton e a necessidade de integridade jurisprudencial na Lei de Licitações

Autor

  • Yuri Alexander Nogueira Gomes Nascimento

    é procurador do estado de Goiás formado em Direito pelas Faculdades Integradas Vianna Júnior pós-graduado em Filosofia do Direito e Teoria Jurídica pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes.

26 de janeiro de 2024, 11h14

Com o novo ano surge um novo modelo licitatório no ordenamento jurídico brasileiro. Isso porque a vetusta Lei Federal nº 8.666/1993 foi definitivamente revogada. Agora, o modelo licitatório nacional pauta-se unicamente nos ditames da Lei 14.133/2020.

Essa mudança de ano (e de legislação) nos confronta com a antiga dicotomia entre a tradição e a inovação. Se por um lado a promessa do novo ano permite novas e inebriantes possibilidades de evolução, por outro as tradições servem para manter nossos vínculos com o passado permitindo que nos reconheçamos como sociedade.

Essa relação entre inovação e tradição já foi traçada por vários filósofos. Todavia, uma visão peculiar, mas muito interessante, sobre o tema é a regra da “cerca de Chersterton”. Segundo a regra enunciada pelo filósofo inglês Gilbert Keith Chersterton, você nunca deve destruir algo, modificar uma regra posta ou romper com uma tradição, se não entender o porquê de ela ter sido foi criada.

Isso porque, ao se destruir coisas que não se entende, não sabe quais serão as consequências desse ato.

Nesse sentido, recentemente, em outubro de 2023, o Tribunal de Contas da União prolatou uma decisão interessante sobre o conceito de inexequibilidade da proposta em obras e serviços de engenharia no Acórdão de Relação nº 2198/2023.

Como se sabe, o artigo 59, §4º da Lei 14.133/2020 prevê que “são consideradas inexequíveis as propostas cujos valores forem inferiores a 75% do valor orçado pela administração”.

O texto não difere ontologicamente daquele outrora previsto no artigo 48, inciso II §1º da Lei nº 8.666/1993, que possuía a mesma presunção de inexequibilidade para obras e serviços de engenharia. Em verdade, a diferença nas normas é apenas na alíquota (que passou de 70% para 75%) e na base de cálculo (que agora engloba apenas o orçamento estimado pela administração pública), ou seja, apenas quantitativa.

Ao fim e ao cabo, os regramentos são muitos semelhantes pelo que é de se esperar que aplicação se mantenha estável. Assim, era mais ou menos seguro de se entender que a presunção legal de inexequibilidade prevista no artigo 59, §4º da Lei 14.133/2020 era apenas relativa, sendo possível ao particular demonstrar a exequibilidade de sua proposta, conforme o entendimento da Súmula nº 262 do Tribunal de Contas da União [1].

Todavia, o tribunal, por meio do Acórdão de Relação 2198/2023 [2] — Plenário decidiu que a presunção legal de inexequibilidade seria absoluta, não havendo que se cogitar de realização de diligências do licitante para a comprovação da adequação de sua proposta.

A decisão se baseou na análise da nova legislação, pois, conforme se lê dos autos, o artigo 59, §2, que permite a realização de diligências para demonstração da exequibilidade da proposta, não se aplicaria aos casos de obra em uma interpretação topológica da lei.

Dito de outro modo, o artigo 59, §4º da Lei 14.133/2020 seria norma especial a afastar a possibilidade de diligências para comprovação da exequibilidade da proposta prevista no artigo 59, §2º da Lei 14.133/2020.

Ademais, a análise técnica destacou que o artigo 59, §5º da Lei 14.133/2020, que prevê a exigência de garantia adicional, “apresenta providências a serem tomadas para os casos em que a proposta é inferior a 85% do valor orçado. Ou seja, nestes casos, pode haver uma dúvida quanto à exequibilidade da proposta”.

Quer dizer, a interpretação dada pelo tribunal cria uma faixa de certeza de exequibilidade: propostas abaixo de 75% do valor orçado seriam absolutamente inexequíveis; propostas entre 75% e 85% seriam possivelmente inexequíveis; e propostas acima de 85% do valor orçado seriam plenamente exequíveis.

Por muitos motivos, a interpretação não parece a mais adequada.

Em primeiro lugar, não houve alteração normativa significante para justificar uma modificação tão abrupta do entendimento já consolidado de presunção relativa de inexequibilidade.

Em verdade, a Lei 14.133/2020 repete o mesmo regramento da anterior, apenas incluído em seu corpo a Súmula 262 do TCU, possivelmente, para garantir maior segurança jurídica aos gestores [3].

Interpretar que a inclusão do artigo 59, §2º da Lei 14.133/2020 impediria a realização de diligências para atestar a exequibilidade das obras seria entender que, ao incorporar o entendimento jurisprudencial, a lei o superou em verdadeira contraditio in terminis.

Em segundo lugar, a interpretação de que a norma do artigo 59, §4º da Lei 14.133/2020 seria especial em relação à norma do artigo 59, §2º da Lei 14.133/2020 não parece ser a mais adequada.

Tal entendimento surge de uma análise meramente topográfica da lei, criando hierarquia indevida entre os parágrafos do texto legal, como se aqueles que viessem primeiro condicionassem em absoluto a interpretação dos últimos.

Todavia, a interpretação jurídica deve ser feita em uníssono, de modo que as normas jurídicas devem, tanto quanto possível, ser interpenetrarem e se influenciarem mutuamente.

Nesse sentido, nos parece que o artigo 59, §4º da Lei 14.133/2020 não traz norma especial sobre a inexequibilidade, mas sim que traz uma definição do conceito de inexequibilidade aplicada às obras e serviços de engenharia.

É dizer, a referida norma apenas apresenta um conceito objetivo do que seja inexequibilidade, conceito esse que, após apreendido, será aplicado às outras normas que versam sobre ele, inclusive àquela prevista no artigo 59, §2º da Lei 14.133/2020.

Se é certo que a ordem dos parágrafos pode não ser a mais adequada, também é certo que nada dá a entender que a norma do §4º do artigo 59 excluiria a aplicação da norma do §2º do artigo 59 da Lei 14.133/2020. E não sendo o legislador conhecido por sua excelente organização de textos normativos, não parece adequado que se confie a aplicação de norma tão importante a esses pormenores.

Inclusive, ainda que em outra seara, não se pode deixar de lembrar que o Superior Tribunal de Justiça afastou a aplicação do critério interpretativo topográfico quando da análise da aplicação de causas de privilégio a homicídios qualificados. Ainda que em outra área do direito, a mensagem é clara, a topografia normativa não é um método interpretativo plenamente confiável (dentre outros, o HC nº 199.602 – SP).

Em terceiro lugar, a exigência de garantia adicional não pode ser vista como medida capaz de evitar a realização de diligências para a comprovação da exequibilidade de uma proposta. Isso porque não há relação necessária entre exequibilidade e garantia.

Se é certo que a garantia vai ser exigida daquelas propostas com maior risco de inexecução, também é certo que a prestação da garantia não garante a exequibilidade do objeto e nem a sua não prestação culmina da pecha de inexequibilidade do contrato. A garantia adicional é um modo de garantir a execução pelo menor preço ofertado e não um mecanismo que indica a capacidade da proposta ser exequível. São institutos diversos, que se comunicam, mas não idênticos.

Além das razões de dogmática jurídica, ainda pode-se analisar a questão sobre dois ângulos zetéticos.

No âmbito prático, a decisão traz uma presunção de confiabilidade quase absoluta nos orçamentos estimados da administração pública. Isso porque ao se impor o rótulo de inexequível a qualquer proposta que fique abaixo de 75% do orçado pela administração pública, confia-se que o preço orçado nunca será destoante do preço de mercado, pois, caso seja, haverá superfaturamento do contrato. Isso destoa bastante das ideias mais modernos de licitação como mecanismos de revelação de informações em contratos administrativos.

Ademais, a depender do quão imprecisa for a precificação, o preço mínimo pode se tornar o preço vigente e insofismável na licitação, de modo que todos os licitantes podem terminar apresentando a mesma proposta (75% do orçamento estimado), e ela seja decidida por critérios colaterais.

Isso sem falar que a determinação de inexequibilidade de propostas abaixo de 75% do orçamento estimado praticamente impossibilita qualquer uso benéfico da contratação integrada, seja porque impede o uso de métodos construtivos excessivamente econômicos, seja porque, sendo realizada somente com base em anteprojeto, sua precificação possui uma margem de precisão de 20% (vide OT IBR nº 4/2012).

Ou seja, é possível que a precificação em regime de contratação integrada gere, por si só, uma precificação 20% acima do preço efetivo do mercado, permitindo ao licitante uma margem de apenas 5% entre o preço de mercado efetivo e o preço estimado pela administração.

E, em âmbito econômico, pode-se notar que essa presunção absoluta de inexequibilidade cria um preço mínimo para o processo licitatório. E, da teoria econômica, se extraí que o preço mínimo ou ficará abaixo do preço de equilíbrio (e portanto será inútil) ou ficará acima do preço de equilíbrio, obrigando o agente (Estado) a pagar mais pelo produto [4].

Essas duas dimensões eram suficientes para que o artigo 40, inciso X da Lei 8.666/1993 previsse a vedação de fixação preços mínimos na licitação, norma não repetida no texto da Lei 14.133/2020, mas que parece ainda salutar aos procedimentos licitatório, senão por previsão normativa expressa, pelo menos pela aplicação da lógica econômica inerente às licitações.

A princípio, a análise acima é perfunctória, mas não parece que a presunção absoluta de inexequibilidade para obras e serviços de engenharia seja o melhor caminho para os procedimentos licitatórios nacionais.

Se é certo que a interpretação da nova lei deve garantir inovações e novas e positivas práticas para as aquisições públicas, também é certo que não devemos esquecer que a jurisprudência à época da Lei 8.666/1993 foi criada com base em décadas de experimentações, discussões, estudos, erros e acertos administrativos e a modificação irrefletida e precipitada do arcabouço jurisprudencial pode trazer efeitos deletérios ao procedimento como um todo.

Nesse sentido, é importante que a jurisprudência dos tribunais de contas se esforcem na busca por integridade, coerência e manutenção das diretrizes postas na legislação e na sua comunicação e transição adequada para a nova licitação, sob pena de destruirmos décadas de debates sobre licitações públicas e reiniciarmos do zero discussões há muito superadas.

No mais, o novo ano trará novos desafios e conquistas ao mundo jurídico e, como operadores do direito, devemos ser capazes de inovar quando preciso, mas que também de preservar a cerca de Chesterton e não destruir anos de normas, discussões e entendimentos jurídicos jurisprudenciais, construídos após anos de análises, sem compreendermos a fundo os seus fundamentos.


[1] Súmula 262 TCU: O critério definido no art. 48, inciso II, § 1º, alíneas “a” e “b”, da Lei nº 8.666/93 conduz a uma presunção relativa de inexequibilidade de preços, devendo a Administração dar à licitante a oportunidade de demonstrar a exequibilidade da sua proposta.

[2] É importante destacar que o Acórdão foi aprovado por Relação, não havendo o devido aprofundamento jurídico sobre o tema, o que não mitiga a relevância da discussão.

[3] Em verdade, as modificações do regramento das licitações foram mais relacionadas a incorporações em seu texto de previsões já existentes em outros diplomas nomativos específicos e na jurisprudência consolidada do que na criação de novos regramentos, por todos: A nova Lei de Licitações: um museu de novidades? (https://www.conjur.com.br/2020-dez-23/rafael-oliveira-lei-licitacoes-museu-novidades/)

[4] A análise se encontra simplificada, mas pode ser aprofundada na obra Mankiw, N. G. Introdução à economia – Tradução da 8ª edição norte-americana. Cengage Learning Brasil, 2019.

Autores

  • é procurador do estado de Goiás, formado em Direito pelas Faculdades Integradas Vianna Júnior, pós-graduado em Filosofia do Direito e Teoria Jurídica pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes.

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