Opinião

A perda de uma chance probatória aplicada ao Processo Penal: o caso do HC 829.723

Autor

  • José Gutembergue de Sousa Rodrigues Júnior

    é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba especialista em Direito Público membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

18 de janeiro de 2024, 17h13

Conforme noticiado por esta ConJur, o Superior Tribunal de Justiça aplicara, recentemente, através do voto do ministro Teodoro Silva Santos, relator do caso, a teoria da perda de uma chance probatória ao processo penal. No caso em questão, HC 829.723, uma das vítimas havia informado à polícia que o roubo foi captado por câmeras de segurança no veículo, enquanto outra teria dito que os assaltantes foram apoiados por um veículo e informou o modelo, a cor e a placa.

Nenhuma dessas informações, contudo, fora averiguada nas investigações. No caso, acertadamente, entendeu o relator que as imagens das câmeras de segurança e a apuração sobre o veículo envolvido em roubo seriam, de fato, de importância salutar para alcançar a correta solução para o crime, vez que a filmagem poderia comprovar a tese defensiva ou, até mesmo, colocar a salvo de quaisquer dúvidas a versão acusatória, reforçando-a [1].

A teoria da perda da chance probatória também já tinha sido usada pelo STJ para absolver adolescente [2]. A ideia central seria que, se a acusação não produz todas as provas possíveis e essenciais para a elucidação dos fatos, omitindo-se e deixando deliberadamente de produzir provas essenciais, retirando do acusado a chance de que a sua inocência seja afastada de boa-fé, estaria caracterizada a perda da chance probatória. Neste artigo, aprofundaremos esta ideia e buscaremos demonstrar o porquê, cientificamente e juridicamente, ela estaria correta.

Primeiramente, ressalta-se que o tema fora mencionado, originalmente, pelo magistrado e professor Alexandre Morais da Rosa, ainda em meados de 2014 [3], e depois aprofundado em artigo específico (DA ROSA; RUDOLDO, 2017) [4].

Neste sentido, à luz de autores como James Goldschmidt e Aury Lopes Jr, argumentara-se que, no processo penal constitucionalizado, a carga probatória é exclusiva da acusação. Assim, já aduzia Goldschmidt que caberia exclusivamente ao acusador a carga não apenas de apresentar a acusação, mas também, de propor oportunamente as provas [5].

Desta forma, tem-se que compete ao autor da ação penal a obrigação de produzir todas as provas necessárias à formação da convicção do julgador, no círculo hermenêutico prova/fato (cuja aceitação aqui é meramente circunstancial), uma vez que, em um processo democrático, não pode o acusador se dar por satisfeito na produção da prova do e pelo Estado, eximindo-se das demais possíveis, que estavam ao seu pleno alcance, mormente diante das tecnologias ora disponíveis (DA ROSA; RUDOLDO, 2017, p. 03).

Ideia semelhante pode-se observar no meio científico. A.F. Chalmer [6] descreve com singular destreza que observações e experimentos são realizados no sentido de testar ou lançar luz sobre alguma teoria, e apenas aquelas observações consideradas relevantes devem ser registradas.

Entretanto, na medida em que as teorias que constituem nosso conhecimento científico são falíveis e incompletas, a orientação que elas oferecem, como, por exemplo, as observações relevantes para algum fenômeno sob investigação, podem ser enganosas, e podem resultar no descuido com alguns importantes fatores. Em outras palavras, observação e experimento orientam-se pela teoria. A teoria, pois, é o “marco zero” da caminhada científica.

Em seguimento, Chalmers apresenta o conceito de falsificacionismo. O falsificacionista admite livremente que a observação é orientada pela teoria e a pressupõe. Ele também abandona com alegria qualquer afirmação que fazem supor que as teorias podem ser estabelecidas como verdadeiras ou provavelmente verdadeiras à luz da evidência observativa.

As teorias são interpretadas como conjecturas especulativas ou suposições criadas livremente pelo intelecto humano no sentido de superar problemas encontrados por teorias anteriores e dar uma explicação adequada do comportamento de alguns aspectos do mundo ou universo. Uma vez propostas, as teorias especulativas devem ser rigorosa e inexoravelmente testadas por observação e experimento.

Teorias que não resistem a testes de observação e experimentais devem ser eliminadas e substituídas por conjecturas especulativas ulteriores. A ciência progride por tentativa e erro, por conjecturas e refutações. Apenas as teorias mais adaptadas sobrevivem. Embora nunca se possa dizer legitimamente de uma teoria que ela é verdadeira, pode-se confiantemente dizer que ela é a melhor disponível, que é melhor do que qualquer coisa que veio antes.

As hipóteses conjecturadas são então criticadas e testadas. Algumas serão rapidamente eliminadas. Outras podem se revelar mais bem-sucedidas. Estas devem ser submetidas a críticas e testes ainda mais rigorosos. Quando uma hipótese que passou por uma ampla gama de testes rigorosos com sucesso é eventualmente falsificada, um novo problema, auspiciosamente bem distante do problema original resolvido, emergiu.

O falsificacionista, portanto, exige que as hipóteses científicas sejam falsificáveis, no sentido que discutimos. E é justamente nesta possibilidade de falsificabilidade que reside o busílis da teoria da perda de uma chance probatória. A acusação, ou hipótese inicial, poderia ser falsificada ou até confirmada, vez que, no caso paradigma, a filmagem mencionada poderia comprovar a tese defensiva ou até mesmo colocar a salvo de quaisquer dúvidas a versão acusatória. Na linguagem do processo nela, estar-se-ia, assim, além da dúvida razoável, justificando e qualificando a acusação.

Ao realizar a acusação contra determinado indivíduo pelo cometimento de um suposto crime, o acusador atesta para a existência de uma teoria: a pessoa “X” (acusado) cometeu a conduta “Y” (conduta criminosa). O processo, portanto, seria o método científico utilizado para provar esta teoria. Em outras palavras, através do processo, poderemos falsificar a teoria proposta pelo ministério público, e fazemos isso através do contraditório, por exemplo.

Assim, justamente por isso o professor Gustavo Badaró atribui verdadeira função heurística a tais garantias processuais. Neste sentido, se a acusação “sobreviver” a este processo, a hipótese tem uma grande probabilidade de ser verdade, dado seu alto grau de credibilidade.

Não obstante, ressaltamos que, logo de partida, excluímos a ideia de “verdade real”. Isto porque, a “verdade material” ou “verdade real” é inalcançável. O que se busca, no processo, é apenas uma verdade aproximativa, ou “máxima aproximação da verdade”, com o objetivo de ir além da dúvida razoável, obtendo, pois, um grau elevado de credibilidade (BADARÓ, 2019, p.91).

Ademais, a resposta final, assim como a resposta científica, conforme já mencionado, apenas diz que esta é a melhor hipótese disponível no momento, de acordo com as informações produzidas no processo. Nunca se pode dizer de uma teoria que ela é verdadeira, por mais que ela tenha superado testes rigorosos, mas pode-se auspiciosamente dizer que uma teoria corrente é superior a suas predecessoras no sentido de que ela é capaz de superar os testes que falsificaram aquelas predecessoras.

Neste sentido, Gustavo Badaró (2019, p. 39), citando Popper, menciona a necessidade de submeter as teorias a testes tão severos quanto possíveis, buscando identificar erros que nelas se contenham, na tentativa de falseá-las. Ter essa noção é fundamental em um processo penal democrático.

Ademais, muito embora renomados professores e juristas, como Lenio Streck [7] e Schietti, defendam que o Ministério Público deva ser imparcial, pode-se argumentar que não seria este o caso. Carnelluti (2009, p.54) argumentava que, porque não é imparcial o defensor, tampouco pode ser e nem deve ser seu adversário [8]. Nas palavras do grande jurista e advogado italiano, a parcialidade deles é o preço que se deve pagar para obter a imparcialidade do juiz.

Em sentido semelhante, Badaró aduz que o membro do parquet, ao formular a acusação, já se convenceu previamente da culpabilidade e buscará prová-la, de forma que o Ministério Público, pois, é parte, e parte interessada [9].

Não obstante, independente da discussão sobre a (im)parcialidade ministerial, parece existir um consenso no sentido de admitir-se que a parcialidade do defensor reside na defesa inequívoca de seu cliente, enquanto que eventual parcialidade do órgão acusador reside (ou deveria residir) não na comprovação aguerrida do acusado imputado como criminoso, mas em buscar falsear sua hipótese acusatória, uma vez que, caso ela seja forte e consistente, quanto mais se faz isso, paradoxalmente, mais sua hipótese se torna crível e ganha força.

O cerne da questão, portanto, não seria a discussão sobre a (im)parcialidade ministerial, mas sim, por vezes, uma falta de compromisso com a falsificabilidade, ou com a busca da verdade processual objetiva, para além da dúvida razoável. A busca da culpabilidade penal deve partir do pressuposto da falseabilidade, seja para comprovar a tese defensiva ou até mesmo colocar a salvo de quaisquer dúvidas a versão acusatória, conforme aduzira corretamente o mencionado HC.

Portanto, a função da ideia de falseabilidade e do uso da teoria da perda de uma chance probatória aplicada ao processo penal seria evitar que inocentes fossem processados e, em última análise, até condenados, quando sequer foram produzidas todas as provas possíveis e disponíveis, com possibilidade real de falsear a hipótese acusatória. Não se supera a dúvida razoável. Quando o Ministério Público se satisfaz em produzir o mínimo de prova possível, retira-se, na prática, a possibilidade da defesa de questionar a denúncia.

Por fim, jamais deve-se esquecer que o processo penal já é, em si, uma pena. Conforme já nos alertava Carnelluti (2009, p.117), “as pessoas creem que o processo penal termina com a condenação, e não é verdade; as pessoas creem que a pena termina com a saída do cárcere; e não é verdade; as pessoas creem que o ergástulo é a única pena perpétua; e não é verdade. A pena, se não propriamente sempre, em nove de cada dez casos não termina nunca. Quem pecou está perdido. Cristo perdoa, mas os homens não”.


[1] https://www.conjur.com.br/2024-jan-10/por-falta-de-investigacao-de-elementos-essenciais-reu-e-absolvido-no-stj/

[2]     ConJur – STJ aplica teoria da perda da chance para absolver adolescente

[3]     ConJur – Perda de uma Chance probatória se aplica ao Processo Penal

[4] DA ROSA, Alexandre Morais; RUDOLFO, Fernanda Mambrini. A teoria da perda de uma chance probatória aplicada ao processo penal. Revista Brasileira de Direito, v. 13, n. 3, p. 455-471, 2017.

[5] GOLDSCHMIDT, James. Problemas políticos e jurídicos do processo penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018.

[6] CHALMERS, Alan F. O que é ciência afinal? Tradução: Raul Filker: 1ª. Ed. – São Paulo: Brasiliense, 1993;

[7]     ConJur – Com min. Schietti e promotor Zílio, digo: Precisamos falar sobre o MP

[8] CARNELUTTI, Francesco. As misérias do Processo Penal. São Paulo: Editora Pillares, 2009.

[9] BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019

Autores

  • é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande, especialista em Direito Público, membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

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