Segunda Leitura

Resoluções de conflitos fundiários e protagonismo do Poder Judiciário

Autor

  • André Prado de Vasconcelos

    é desembargador federal do TRF-6 (Tribunal Regional Federal da 6ª Região - MG) professor da Escola Superior Dom Helder Câmara Master in Comparative Law — Samford University EUA foi promotor de Justiça de Minas Gerais e juiz federal tendo sido diretor do Foro da Seção Judiciária de Minas.

14 de janeiro de 2024, 8h00

É direito fundamental do indivíduo a preservação do local que escolheu para viver, da sua residência ou domicílio, de injusta turbação por parte de agentes do Estado. Reza no inciso XI do artigo 5º da Constituição Federal de 1.988, cláusula pétrea, não sujeita a modificação, pena de ruptura do regime jurídico vigente: “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial” [1].

A presença de tal garantia, forjada no âmbito de uma perspectiva liberal de regulação do espaço, sempre encontrou dificuldades no Brasil quando a questão se coloca na avaliação do binômio direito de propriedade versus dignidade da pessoa humana nas áreas não alcançadas pelo direito positivo produzido pelo Estado, em especial, nas áreas ocupadas pela população de menor renda.

Agência Brasil

O fenômeno da ausência de regularidade no âmbito urbano, segundo reportagem da Folha de S.Paulo de 13 de julho de 2.023, atinge cerca de 60% dos imóveis em todo país, sendo o mais comum a ausência de escritura, ilegalidade que não distingue classes sociais.

Segundo o advogado e professor de Direito Imobiliário Marcos Salomão, ouvido pela Folha, “são mais de 40 milhões de domicílios urbanos, e não estamos falando só de periferia. O desafio vai muito além, já que a informalidade não distingue classes sociais, avançando desde favelas a condomínio de luxo” [2].

Sob o ponto de vista sociológico, a atitude de impulsionar o cidadão para informalidade tem raízes históricas, em especial, na formatação da ocupação espacial no Brasil com segregação dos indivíduos entre os que “podiam pagar” e, portanto, tinham direito não só ao status de residir em locais considerados “residenciais exclusive”, mas também uma prevalência jurídica que compreendia desde a possibilidade de registro até o acesso aos serviços públicos relativos ao espaço urbano.

Em seu texto “Para Além da Lei: Legislação Urbanística e Cidadania (São Paulo 1886-1936)”, Raquel Rolnik retrata as raízes históricas da legislação urbanística da cidade de São Paulo, que pode ser utilizada como referência para o restante do país, demonstrando como se construiu “uma muralha invisível” separando dois territórios absolutamente distintos, o da cidadania e o da margem, senão veja-se:

“Em São Paulo, e na maioria das cidades Latino-Americanas, a legislação urbana regula apenas uma pequena parte do espaço construído, uma vez que a cidade não é resultado da aplicação inerte do modelo contido na lei. A cidade real é consequência da relação que a legalidade urbana estabelece com o funcionamento concreto dos mercados imobiliários que atuam na cidade. Entretanto, ao definir formas permitidas e proibidas de produção do espaço, a legislação define territórios dentro e fora da lei. Essa delimitação tem consequências políticas importantes, na medida em que pertencer a um território fora da lei pode significar uma posição de cidadania limitada. Não existir, do ponto de vista burocrático ou oficial para a administração da cidade, é estar fora do âmbito de suas responsabilidades para com os cidadãos.

Na história da cidade de São Paulo, e de sua legislação urbanística, esta tensão – legalidade/ilegalidade – esteve sempre presente, fortemente identificada com espaços de alta renda, fortemente regulados, que se contrapõem aos espaços populares não regulados ou em desacordo com a lei.

(…)

Se analisarmos o conteúdo das normas editadas no século XIX, (1894 e 1898), ali está contido o chamado modelo higiênico, com todas suas letras físicas e morais: a casa unifamiliar isolada em grande terreno separada da rua e dos vizinhos. A chave da eficácia em demarcar um território social preciso está evidentemente no preço: lotes grandes, grandes recuos, nenhuma coabitação, esta é a fórmula para quem pode pagar. A lei, ao definir que ali só pode ocorrer certo padrão, opera o milagre de desenhar uma muralha invisível e, ao mesmo tempo, criar uma mercadoria exclusiva no mercado de terras e imóveis e, assim, permitir um alto retorno do investimento, mesmo considerando o baixíssimo aproveitamento do lote.

Além do mais, aí se esboça o fundamento de uma geografia social da cidade, da qual até hoje não conseguimos escapar. O setor Sudoeste, desenhado a partir do percurso Campos Elísios/Hygienópolis/Paulista, e que depois se completaria com os loteamentos da Cia. City no Jardim América, configura uma centralidade da elite da cidade, o espaço que historicamente concentra valores imobiliários altos, o comércio mais elegante, as casas ricas, o consumo cultural da moda e a maior quantidade de investimentos públicos.

(…)

Em 1894, o primeiro Código Sanitário Estadual adota um posicionamento ainda mais rígido em relação às habitações coletivas: estas devem ser proibidas e as existentes devem desaparecer, assim como as casas subdivididas e as vilas operárias – que só podem agrupar-se em conjuntos de até 6 moradias, devem ficar fora da aglomeração urbana. No entanto, o relatório de uma Comissão de Exame e Inspeção das Habitações Operárias e Cortiços no Distrito de Santa Efigênia, publicado no mesmo ano, constata, apenas em uma área de 14 quadras a existência de 65 cortiços.

No mesmo relatório se formula, pela primeira vez, como resposta à gravidade da situação, a proposta de incentivar empresários a construir casas operárias “higiênicas” em terrenos situados num raio de 15 km da cidade: ‘a situação mais conveniente para as vilas operárias deve ser, sem dúvida, aquela que reúna a facilidade de comunicação à barateza dos terrenos'” [3].

Essa evolução legislativa criou um universo de dualidade que se traduz em nossa sociedade desde o estereótipo, com adjetivação, das populações que residem nas localidades de menor renda: o maloqueiro, o marginal e o favelado, até a produção de inesquecíveis obras artísticas refletindo as tensões que corriqueiramente ocorrem em razão dessa realidade. Um exemplo marcante é a música Saudosa Maloca, de Adoniran Barbosa, que retrata uma reintegração de posse e o sentimento da população sob a qual a ordem incide.

O Poder Judiciário, por sua vez, todas as vezes que chamado a solucionar os litígios que envolvem essa histórica e delicada questão, procurou interpretar o ordenamento jurídico de forma consentânea à realidade fática regulada. Um exemplo claro se extrai edição da Súmula nº 84 do e. Superior Tribunal de Justiça, publicada em 18 de junho de 1993, que reza: “É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro” [4].

Nessa interpretação, há o reconhecimento jurídico da realidade de fato da posse dos imóveis desprovida de registro como efeito do fenômeno que se reproduz rotineiramente no Brasil e, por consequência, da proteção ao posseiro de forma a viabilizar a implementação das condições necessárias à consolidação do direito de propriedade.

Esse universo de constante evolução interpretativa na ponderação entre direito de propriedade e dignidade da pessoa humana despossuída, sofreu grande alteração com o advento da pandemia da Covid-19, que atingiu o Brasil em março de 2.020.

A pandemia trouxe consigo um cenário de isolamento social compulsório como medida profilática de combate à doença, transformada em controversa política pública no seio da sociedade e que obviou a necessidade de repensar a proteção da propriedade em face da dignidade da pessoa humana, daí surgindo a ADPF nº 828/DF que, num primeiro momento, por óbvio, barrou o cumprimento das ordens de reintegração.

De fato, naquele momento histórico de medo e incerteza, uma ordem de reintegração significaria decretar a contaminação do removido que, além de sair do local escolhido para abrigo, ficaria sujeito a maior exposição ao vírus sob o qual quase nada se sabia.

O transcurso do tempo com alteração do cenário epidemiológico em razão do arrefecimento dos efeitos da pandemia também trouxe modificações no contexto da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 828/DF, agora já levando em conta a preocupação com desfazimento de ocupações de natureza coletiva, muito distinta das ações de despejo com base na lei do inquilinato, de viés nitidamente individual.

No particular, tal preocupação já havia sido endereçada pelo Parlamento quando da elaboração do Código de Processo Civil em 2015 (Lei nº 13.105) ao dedicar o artigo 565 aos litígios sobre posse de natureza coletiva, em especial, os ocorridos há mais de ano e dia.

Tal dispositivo privilegia o uso de meios consensuais de solução de conflitos, possibilita a integração na lide dos órgãos executores de políticas públicas agrárias e urbanas de todas as pessoas jurídicas de direito público componentes da Federação, enfim, traduz uma visão mais humanista no particular, adequada à construção de uma sociedade de integração especialmente aos hipossuficientes.

Partindo desse arcabouço legislativo e com as severas consequências da pandemia, onde 188.621 famílias estavam na iminência sofrer com as desocupações, prevalentemente de imóveis ocupados pela parcela mais pobre da população, referendou-se, aos 2 de novembro de 2022, na ADPF nº 828/DF, tutela provisória incidental.

Dadas às dificuldades provenientes do enfrentamento da pandemia o perfil de ocupações havia se transformado radicalmente, compondo-se de famílias inteiras que tinham perdido a capacidade de custear habitação. Naquele momento, estavam ameaçados pelo retorno das reintegrações 153.715 crianças e 151.018 idosos(as).

Na esteira da legislação processual de regência, o Supremo Tribunal Federal, baseando-se em boa prática anterior do Tribunal de Justiça do Paraná, ordenou aos Tribunais de Justiça e aos Tribunais Regionais Federais:

“instalar, imediatamente, comissões de conflitos fundiários que possam servir de apoio operacional aos juízes e, principalmente nesse primeiro momento, elaborar a estratégia de retomada da execução de decisões suspensas pela presente ação, de maneira gradual e escalonada; (…) ser realizadas inspeções judiciais e audiências de mediação pelas comissões de conflitos fundiários, como etapa prévia e necessária às ordens de desocupação coletiva, inclusive em relação àquelas cujos mandados já tenham sido expedidos. As audiências devem contar com a participação do Ministério Público e da Defensoria Pública nos locais em que esta estiver estruturada, bem como, quando for o caso, dos órgãos responsáveis pela política agrária e urbana da União, Estados, Distrito Federal e Municípios onde se situe a área do litígio, nos termos do art. 565 do Código de Processo Civil e do art. 2º, § 4º, da Lei nº 14.216/2021; (c) As medidas administrativas que possam resultar em remoções coletivas de pessoas vulneráveis devem (i) ser realizadas mediante a ciência prévia e oitiva dos representantes das comunidades afetadas; (ii) ser antecedidas de prazo mínimo razoável para a desocupação pela população envolvida; (iii) garantir o encaminhamento das pessoas em situação de vulnerabilidade social para abrigos públicos (ou local com condições dignas) ou adotar outra medida eficaz para resguardar o direito à moradia, vedando-se, em qualquer caso, a separação de membros de uma mesma família. Por fim, o Tribunal referendou, ainda, a medida concedida, a fim de que possa haver a imediata retomada do regime legal para desocupação de imóvel urbano em ações de despejo (Lei nº 8.245/1991, art. 59, § 1º, I, II, V, VII, VIII e IX)” [5].

Por consequência, o Conselho Nacional de Justiça, na esteira do comando jurisdicional emanado da Suprema Corte, instituiu, através da Resolução nº 510, de 26 de junho de 2023, a Comissão Nacional de Soluções Fundiárias e as Comissões Regionais de Soluções Fundiárias, fixando no mesmo normativo as diretrizes para a realização de visitas técnicas nas áreas objeto de litígio possessório e estabelecendo protocolos para o tratamento das ações que envolvam despejos ou reintegrações de posse em imóveis de moradia coletiva ou de área produtiva de populações vulneráveis.

O texto de regulamentação procura dar um tratamento humanista na questão das reintegrações de posse. Sem retirar o poder do magistrado condutor do processo, juiz natural da causa, atribui às Comissões de Solução Fundiária importante papel de assessoramento e apoio na prestação jurisdicional.

Especificamente quanto às Comissões Regionais, dá poderes ao novo órgão para estabelecer diretrizes para o cumprimento de mandados de reintegração de posse coletivos, dando autonomia para que cada corte crie seus mecanismos para execução das ordens levando em conta as peculiaridades e especificidades de seus jurisdicionados. E mais, que procure uma saída humanizada para o impasse mediante busca consensual de soluções para os conflitos fundiários coletivos ou, na sua impossibilidade, garantia dos direitos fundamentais das partes envolvidas em caso de reintegração de posse.

Outro aspecto, que será de grande valia para a solução definitiva da questão fundiária, é a obrigatoriedade posta de que as Comissões Regionais promovam o mapeamento dos conflitos fundiários de natureza coletiva sob a sua jurisdição, com realização de visitas técnicas e elaboração de relatórios, reunião com partes, emissão de notas técnicas, uniformização de fluxos de trabalho e procedimento.

Frise-se que, na realização de tais tarefas, haverá interação permanentemente com as Comissões de mesma natureza instituídas no âmbito de outros Poderes, bem como com órgãos e instituições, a exemplo da Ordem do Advogados do Brasil, Ministério Público, Defensoria Pública, União, governo do estado, municípios, Câmara de Vereadores, Assembleias Legislativas, Incra, movimentos sociais, associações de moradores, universidades e outros.

Demais disso, a atuação em cada conflito específico, que ocorrerá a critério do juízo natural da ação, dar-se-á preferencialmente nos Centros Judiciários de Solução de Conflitos (Cejusc) e Centros de Justiça Restaurativa, quando ocorrerem audiências de mediação e conciliação quer de processos judiciais em trâmite no primeiro grau de jurisdição quer de segundo grau.

Tal modo de tratar os conflitos fundiários, sem dúvida, diminuirá as tensões e abrirá uma perspectiva para solução dos impasses que vem se avolumando, em especial, nos grandes centros urbanos.

A participação decisiva dos órgãos municipais de tratamento da política fundiária, numa perspectiva de cooperação judicial, poderá significar a saída para redesenhar os espaços urbanos agora com a participação de todos, sem exclusão, sem “higienização de áreas”.

Outro aspecto a ser considerado é o tempo de cada ocupação, pois quanto mais longevo o esbulho, mais consolidada a situação de fato e, por consequência, mais traumático o cumprimento da ordem. Numa ocupação que conta com muitos anos de ocorrência, fato corriqueiro Brasil a fora, há de ser considerada, com maior intensidade ainda, a dignidade da pessoa humana a ser removida.

Isso porque a ocupação de um imóvel contrariamente à vontade de seu proprietário é um ilícito, mas, como já dito, a fluência do tempo em tal situação acaba por gerar consolidações de fato que não podem ser olvidadas. Em outras palavras, há ilicitude na ocupação de imóvel alheio, mas quem, por exemplo, nasce nesse tipo de ocupação não praticou qualquer ato ilícito. Ou seria ilícito o fato de ter nascido?

Se a ocupação se dá em imóveis públicos, para os quais não é possível a utilização do instituto da usucapião como estabilizador da relação jurídica envolvendo a propriedade, já há exemplos de reconhecimento da posse prolongada como direito a ser objeto, inclusive, de ressarcimento.

Nesse particular, no âmbito da Justiça Federal de Minas Gerais, há experiência exitosa no trato da ocupação do Anel Rodoviário de Belo Horizonte e da BR-381 Norte. Nessas localidades, formaram-se grandes ocupações às margens da via por populações hipossuficientes e que lá permaneceram por inúmeros anos, populações que mais do que à margem da rodovia, estavam à margem da cidadania.

O primeiro elemento fundamental para o encaminhamento da solução foi o reconhecimento, por parte do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (Dnit), do direito desses grupos populacionais ao ressarcimento pela desocupação após tantos anos.

A história de reconhecimento dessa população começa com a ordem de despejo para que o governo federal pudesse usar as faixas de domínio para obras de melhoria e duplicação das estradas em 2007. Um grupo de mulheres dessas comunidades se mobilizou para impedir que a remoção fosse feita sem considerar prazos e sem prever o reassentamento das famílias. Conhecidas como Mães do Anel — movimento que futuramente deu origem ao Comunidade de Moradores de Áreas de Risco (CMar) —, esse grupo procurou a Defensoria Pública da União (DPU) e o Ministério Público Federal (MPF) para buscar alternativas para a execução das obras de revitalização e duplicação das rodovias sem deixar de levar em consideração o reassentamento das famílias que vivem às margens do Anel e da BR-381.

Em 2013, o MPF e a DPU atuaram em favor das comunidades afetadas pelas obras dessas rodovias e moveram a ACP (Ação Civil Pública nº 57367-09.2013.4.01.3800) que deu origem ao Programa Judicial de Conciliação para Remoção e Reassentamento Humanizados de Famílias do Anel Rodoviário e BR-381.

Tal programa batizado de “Concilia BR-381 e Anel”, baseando-se nos princípios da cooperação judicial reassentou mais de 300 famílias na primeira fase do acordo. A execução do acordo judicialmente homologado em 2017 é uma iniciativa da Justiça Federal e do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) com previsão de um manual de critérios e regras (que espelha as normas de manutenção e implementação das remoções), a criação de um Conselho Executivo com participação paritária de todos os integrantes da iniciativa (MPF, DPU, município de Belo Horizonte — por meio da Urbel —, Justiça Federal, Dnit e CMar).

O modelo de reassentamento acordado consistente na compra assistida de imóveis [6], a despeito de lento, foi muito eficaz na eliminação do conflito fundiário envolvendo uma parte tal população, com inúmeras histórias de mudança de vida que vão do nascimento de empreendedores até a realocação de líderes religiosos, tudo documentado e comunicado à comunidade afetada através de um pequeno jornal para distribuição nas vilas, outro mecanismo de reafirmação do programa em face da comunidade [7].

Ainda no âmbito do Tribunal Regional Federal da 6ª Região, no Processo Sei nº 0003296-14-2022.4.06.8000, foram publicadas as Portarias nº 69 (de 22/5/2023) e 114 (24/7/2.023) que instituíram a Comissão Regional de Soluções Fundiárias e designaram seus membros. Na esteira da orientação da Resolução nº 510/23 do CNJ, o órgão regional tem como escopo “servir de apoio operacional aos magistrados competentes para julgamento de ações dessa natureza” (artigo 2º, inciso I da Portaria Consolidada).

A referida comissão já está atuando em conjunto com a 2ª e 8ª Varas da Subseção Judiciária de Belo Horizonte, respectivamente nos autos da Ação de Reintegração de Posse nº 22666-51.2015.4.01.3800, ajuizada pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para reaver a posse do prédio o localizado à rua Caetés, n° 331, em Belo Horizonte e da Ação Civil Pública nº 1083289-54.2021.4.01.3800 ajuizada pelo Ministério Público Federal e Defensoria Pública da União, que tem como pedido a condenação da União Federal, Caixa Econômica Federal e INSS a promover a contratação do financiamento do projeto de requalificação do mesmo imóvel para fins de habitação de interesse social, bem como a condenação de tais entes a disponibilizarem as unidades habitacionais do imóvel, uma vez requalificado, para habitação de interesse social das famílias que lá já se encontram.

Ao lado de tais iniciativas a Comissão Regional de Soluções Fundiárias iniciará em 2024 o mapeamento de todos os conflitos fundiários urbanos e rurais existentes no estado, além do que elaborará seu Regimento Interno em interlocução com as demais comissões correlatas no termos da Resolução nº 510/23 do CNJ.

Tais medidas vão ao encontro do escopo de conferir a todos um domicílio reconhecido pelo Estado, até porque não há cidadania quando um residente sequer tem um “código postal” para declinar como sendo seu.

O tempo dirá se o protagonismo do Poder Judiciário no trato da questão fará do direito fundamental previsto no inciso XI do artigo 5º da Constituição de 1988, a que se fez menção no início desse artigo, uma garantia extensível a todos os cidadãos ou se os equívocos anteriores na formulação de legislações que criaram o modelo atual de distribuição desigual e segregacionista dos imóveis, com especial exclusão de participação dos menos favorecidos na construção quer do ambiente urbano, quer do rural, seguirão emperrando a modernização dessa relação jurídica.

O doutor em Sociologia e professor titular da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo Gabriel Cohn, ao lecionar sobre a obra de Max Weber [7], apresenta a visão da constante tensão entre “política” e “burocracia” como instrumentos do Estado moderno no desenvolvimento de políticas públicas, com o agente político tentando inovar e o burocrata desejando manter os processos e procedimentos como estão visando a estabilidade da coisa pública.

Ao fim da aula, afirma o professor que o grande pensador apostava na prevalência do político como forma de, constantemente, promover alterações para melhorar a sociedade. Oxalá possam as Comissões de Soluções Fundiárias, compostas por membros de Poder, tornar real a aposta de Max Weber.


Notas bibliográficas:

[1] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm – visto em janeiro de 2024.

[2] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/07/falta-de-escritura-atinge-mais-de-40-milhoes-de-imoveis-veja-o-que-fazer.shtml#:~:text=Cerca%20de%2060%25%20dos%20im%C3%B3veis,Integra%C3%A7%C3%A3o%20e%20do%20Desenvolvimento%20Regional. – visto em janeiro de 2024.

[3] https://raquelrolnik.wordpress.com/2008/08/19/para-alem-da-lei-legislacao-urbanistica-e-cidadania/ – visto em janeiro de 2024.

[4] https://www.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2009_6_capSumula84.pdf – visto em janeiro de 2024.

[5] https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15355042872&ext=.pdf – visto em janeiro de 2024.

[6] https://www.gov.br/dnit/pt-br/assuntos/portais-tematicos/concilia-br-381/compra-assistida – visto em janeiro de 2024.

[7] https://www.gov.br/dnit/pt-br/assuntos/portais-tematicos/concilia-br-381 – visto em janeiro de 2024.

[8] https://cultura.uol.com.br/videos/51487_na-integra-gabriel-cohn-max-weber-parte-1-2.html – visto em janeiro de 2024.

 

Autores

  • é desembargador federal do Tribunal Regional Federal da 6º Região (MG), professor da Escola Superior Dom Helder Câmara, master in comparative law pela Samford University (EUA), ex-promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais, ex-juiz federal e ex-diretor do Foro da Seção Judiciária de Minas Gerais.

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