O 8 de Janeiro

'Dia da infâmia': ainda é preciso falar sobre a responsabilidade civil aplicável

Autor

  • Carlos Eduardo Silva e Souza

    é pós-doutor em Direito pela PUC-RS. Doutor em Direito pela Fadisp. Mestre em Direito Agroambiental pela Universidade Federal de Mato Grosso. Diretor da Faculdade de Direito da UFMT. Professor adjunto da Faculdade de Direito da UFMT. Advogado.

9 de janeiro de 2024, 18h21

A perplexidade em relação aos ataques praticados em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023, em desfavor das principais Instituições dos Poderes da República Federativa do Brasil, demandou e ainda tem demandado a atenção para o assunto da responsabilização dos sujeitos envolvidos na prática dos mencionados atos.

Muito além da responsabilização que se opera na esfera criminal, é preciso se perquirir sobre a responsabilidade civil pelos danos verificados no caso examinado e, sobretudo, o correto tratamento jurídico a ser dado a esse instituto.

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Os citados atos têm sido classificados como terrorismo [1], sobretudo pela utilização do terror social ou generalizado, apoderando-se, com o uso de violência, das instalações públicas brasileiras mais representativas dos poderes constitucionalmente instituídos.

A compreensão dos atos em referência como “terrorismo” demanda atenção significativa para a compreensão jurídica do assunto. Isso porque o terrorismo (interno) é classificado como um “desastre humano” pela Política Nacional da Defesa Civil e, de forma mais específica, como um desastre humano de natureza social.

Os desastres podem ser compreendidos como “eventos que atuam no plano da sociedade (societal disasters), geralmente entendidos como eventos de grandes perdas para um número substancial de pessoas e bens”, tal como propõem Délton Winter de Carvalho e Fernanda Dalla Libera Damacena [2].

Nessa perspectiva, os danos decorrentes da prática do terrorismo podem ser compreendidos como “catastróficos” [3], o que exige uma atenção especial dada a sua peculiaridade.

Sendo um dano catastrófico é possível se invocar a aplicação do tratamento jurídico-normativo aplicado à responsabilidade civil ambiental, cuja configuração — já no prisma da ordem constitucional — apresenta características específicas, como é o caso de ser possível considerá-la (em razão de nítida previsão legal) como objetiva (isto é, independentemente de verificação sobre o elemento da culpa) e solidária (distribuída de forma igualitária entre os sujeitos causadores do dano).

Ainda que não se entenda viável a compreensão do evento como terrorista e, portanto, como catastrófico, não há como se titubear na aplicação da responsabilidade civil ambiental, pois os danos (pelo menos, em boa medida) atingiram inegavelmente o patrimônio cultural brasileiro, o patrimônio da humanidade e, de certa forma, o próprio meio ambiente artificial.

Outro reforço argumentativo na aplicação da responsabilidade civil de forma objetiva, é que o direito à livre manifestação comporta limites e, estando estes superados, notar-se-ia a verificação do abuso de direito, que — na fixação do dever de reparação — também dispensa a constatação do elemento culpa na verificação da responsabilidade civil (em razão do conteúdo normativo do artigo 187 do Código Civil [4]).

Sendo certa a aplicação da responsabilidade civil ambiental, há a possibilidade de buscar a reparação não somente pelos danos materiais constatados, mas também pelos danos morais que foram possíveis de serem verificados, em razão de expressa prescrição da Lei da Ação Civil Pública [5], em seu artigo 1º, I.

Em relação aos danos morais, a aplicação da Lei da Ação Civil Pública parece viabilizar a sua aplicação em razão de terem sido atingidos, sobretudo, bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (artigo 1º, II) e o patrimônio público e social (artigo 1º, VIII).

Vale dizer que o tratamento jurídico aqui noticiado pode ser aplicado, sejam os atores a serem responsabilizados sujeitos particulares ou, até mesmo, o Poder Público, já que se cogita ineficiência e/ou omissão em relação às condutas de segurança esperadas para o evento analisado.

No caso de ser o Poder Público passível de responsabilização, na parcela que lhe cabe, deve-se adicionar, na linha argumentativa do raciocínio aqui descrito, que a própria Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 [6], prevê, em seu artigo 37, a possibilidade de se dispensar a verificação da culpa na análise do dever de reparação.

Retomando a temática dos desastres, é importante se ter em mente que – sendo o dano catastrófico uma variação do dano ambiental — é possível se invocar a imprescritibilidade já reconhecida na responsabilidade civil ambiental pelo Superior Tribunal de Justiça [7] (a exemplo do Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.120.117/AC).

Além disso, o enfrentamento de situação tão sensível como são os desastres exige o compromisso do aprendizado e ação séria, já que — na perspectiva de que o risco zero é utópico, conquanto desejável que assim seja — se tem a necessidade de se pensar em condutas condizentes com uma gestão “cíclica” dos riscos e perigos [8], a fim de que os danos sejam, sempre que possível, evitados.

É preciso também anotar que se deve adotar a máxima cautela na aplicação da responsabilidade civil ao caso em concreto no tocante aos fatos postos em análise, pois as especificidades das condutas e dos variados tipos de dano podem implicar em variações no correto tratamento jurídico aplicável na imposição do dever de reparação.

Como jeito de encerramento, muito além de se refletir sobre a responsabilidade civil no caso posto em análise, é imperioso que as ações de efetiva reparação sejam pensadas e adotadas com máximo afinco, a fim de que a perspectiva do neminem laedere (não causar dano a outrem) seja alicerçada e solidificada (perpetuamente) entre nós, pela via da prevenção (desejável) ou da reparação (quando a prevenção falha, razão pela qual se mostra como profilaxia necessária), de modo que não se concretize a ideia de que causar dano é irreprimível neste país.

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[1] A ensejar o emprego da Lei 13.260/2016 e outros instrumentos normativos eventualmente aplicáveis (BRASIL. Lei 13.260/2016. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13260.htm>. Acesso em 17 jan 2023).

[2] CARVALHO, Délton Winter de Carvalho & DAMACENA, Fernanda Dalla Libera Damacena. Direitos dos desastres. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 15-16.

[3] Sobre o assunto, vide: SOUZA, Carlos Eduardo Silva e. Danos catastróficos: da gestão de riscos e perigos à responsabilização. Tese de Doutorado. São Paulo: FADISP, 2014.

[4] BRASIL. Lei 10.406/2002. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acesso em 17 jan 2023.

[5] BRASIL. Lei 7.347/1985. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7347orig.htm>. Acesso em 17 jan 2023.

[6] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 17 jan 2023.

[7] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1.120.117/AC. Rel. Min. Eliana          Calmon.                Disponível em <https:www.stj.jus.br>. Acesso em 17 jan 2023. O tema da “imprescritibilidade” dos danos ambientais – ainda que diante de forte jurisprudência – merece discussão própria, em razão de suas peculiaridades.

[8] Sobre o assunto, vide: SOUZA, Carlos Eduardo Silva e. Danos catastróficos: da gestão de riscos e perigos à responsabilização. Tese de Doutorado. São Paulo: FADISP, 2014.

Autores

  • é pós-doutor em Direito pela PUC-RS. Doutor em Direito pela Fadisp. Mestre em Direito Agroambiental pela Universidade Federal de Mato Grosso. Diretor da Faculdade de Direito da UFMT. Professor adjunto da Faculdade de Direito da UFMT. Advogado.

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