Opinião

Advocacia regulatória e as multas da ANS

Autor

  • Leonardo Ramos Nogueira

    é sócio da Mazzoni Advocacia pós-graduado em Direito Médico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito e em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra certificado em HealthCare Compliance pelo Cbex especialista em Compliance e Proteção de Dados pela Pucamp pós-graduando em Direito Sanitário pelo Idisa e advogado atuante na área cível regulatória empresarial e ético-profissional em demandas oriundas das relações de saúde pública e privada.

2 de janeiro de 2024, 11h18

A atuação na advocacia regulatória ultrapassa as esferas dos processos administrativos na ANS, dos conselhos profissionais, dos órgãos reguladores e também das demandas judiciais de coberturas de tratamentos, rescisões contratuais e demais questões do cotidiano dos planos de saúde.

Afinal, as eventuais multas aplicadas pela ANS, por exemplo, são inscritas na dívida ativa e, mesmo sendo um crédito não tributário são passíveis de execuções fiscais, nos termos previstos na Lei de Execução Fiscal e também pelo Código de Processo Civil. As teses de defesa comumente utilizadas pelas operadoras nessas demandas se referem às possíveis nulidades na condução do processo administrativo, excesso de execução em situação em que o valor da multa já foi paga, ainda que parcialmente. Ao se discutir as referidas nulidades, muitas vezes tratamos sobre os elementos do ato administrativo e, por sua vez, sobre as mais diversas questões regulatórias abordadas no processo administrativo.

Paralelamente, um assunto de extrema relevância que sempre vemos presentes nas referidas execução fiscais de crédito não tributário se refere à garantia dos processos de execução através de apólices de seguro garantia. Tema este presente não só em execuções fiscais, mas também nas ações anulatórias dos atos administrativos de aplicação de multas, eis que os pedidos liminares, de suspensão de inscrição na dívida ativa e exigibilidade do débito, são sempre acompanhados da garantia do juízo.

Inicialmente o ordenamento jurídico apenas entendia que a suspensão dos processos de execução, bem como as suspensões de crédito inscritos na dívida ativa apenas poderiam ocorrer mediante garantia em dinheiro, por meio de depósito judicial nos processos judiciais. Entretanto, as alterações promovidas na Lei 6.830/1980, a Lei de Execuções Fiscais, em razão da Lei 13.043/2014, bem como as previsões do Código de Processo Civil, estabeleceram de forma clara e expressa que as apólices de seguro garantia se equiparam ao depósito judicial em espécie e possuem o mesmo valor para fins de garantia judicial.

Afinal, o artigo 9º da Lei de Execuções Fiscais elenca em seus incisos todas as possibilidades de garantia de execução, sem estabelecer qualquer ordem de preferência, prevendo no inciso II, a possibilidade de oferecimento fiança bancária ou seguro garantia. O artigo 15, inciso I, do mesmo texto legal reforça essa possibilidade, estabelecendo que a substituição da penhora por fiança bancária ou seguro garantia poderá ser realizada em qualquer grau de jurisdição. No mesmo sentido é a previsão do artigo 835, §2° do Código de Processo Civil. Ainda que o caput estabeleça uma ordem de preferência da penhora, o mencionado §2° determina que a fiança bancária e o seguro garantia judicial equiparam-se ao dinheiro, desde que acrescidos de trinta por cento no valor discutido na demanda judicial.

A partir das referidas determinações legais não deveríamos ter entendimentos judiciais divergentes, que recusam tais tipos de garantias ou ainda que buscam a liquidação destas, mediante conversam em depósito judicial, antes do trânsito em julgado das decisões judiciais. A aceitação das referidas garantias, bem como a execução e liquidação de valores somente após o trânsito em julgado atendem princípio básico e inerente de todo processo de execução, qual seja, o princípio da menor onerosidade ao devedor.

Tal princípio busca evitar a excessiva privação do patrimônio e das atividades do devedor, de maneira que, em havendo diversos meios executivos igualmente eficientes, deve-se optar por aquele que implique em menor sacrifício ao devedor. O princípio consta no artigo 805 do CPC, devendo ser observado em todo e qualquer processo de execução. Também está presente no entendimento sumulado número 417 do Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual a ordem de penhora nas ações judiciais não é absoluta, justamente em razão do referido princípio.

Ocorre que, mesmo com todas as referidas previsões legais, vemos uma postura em sentido contrário por parte de alguns órgãos estatais nas demandas judiciais, se recusando a aceitar as garantias ou ainda pleiteando a conversam destas em depósitos judiciais, antes do trânsito em julgado, quando prolatadas decisões de primeira e segunda instância. Tais posturas acabam sendo chanceladas, por parte do Judiciário, em razão de uma interpretação restritiva do artigo 151 do Código Tributário Nacional e do artigo 38 da Lei de Execuções Fiscais, ignorando todo o ordenamento vigente e, principalmente, as previsões acima citadas.

Em razão das inúmeras demandas judiciais que discutem o referido tema, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça afetou a matéria no esquema de recursos repetitivos, sob o Tema 1.203, com o intuito de definir tal controvérsia de entendimentos no âmbito do judiciário. O mencionado Tema Repetitivo tem o objetivo de “Definir se a oferta de seguro-garantia ou de fiança bancária tem o condão de suspender a exigibilidade de crédito não tributário”.

A afetação do tema se deu em uma ação anulatória, com pedido de suspensão de exigibilidade do crédito, mediante a oferta de seguro garantia, na qual o entendimento do Tribunal de Justiça, em sede de agravo interno, entendeu pela impossibilidade de equiparação da fiança bancária e seguro garantia com o depósito em dinheiro.

No acórdão de afetação restou determinada a suspensão de todas as demandas em território nacional, cujo objeto coincidam com a matéria afetada. Importante ressaltar que não houve uma delimitação de que apenas as ações anulatórias deveriam ser suspensas, muito menos que o tema do repetitivo se referia apenas à aceitação do seguro garantia ou da fiança bancária em ações anulatórias. Como mencionado, o objeto da afetação é definir se tais tipos de garantia podem suspender a exigibilidade do crédito tributário.

Nesse sentido, uma vez determinado em julgado vinculante que o seguro garantia se equipara ao depósito judicial em dinheiro, inexistem razões para que o entendimento resultado do Tema 1.203 também se aplique ao processo de execução e embargos à execução de créditos não tributários. Afinal, a discussão, de aceitação das garantias e manutenção destas como suficientes garantidores até o trânsito em julgado das demandas, é idêntica tanto nas ações declaratórias, como nos processos de execução.

Há alguns meses, em 21/9/2023, foi publicada a Lei 14.689/2023, publicamente conhecida como Lei do Carf, que disciplina a proclamação de resultados de julgamentos na hipótese de empate na votação no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, bem como promove diversas modificações em legislações fiscais, dentre elas na Lei de Execuções Fiscais [1].

No texto original da norma, havia previsão expressa que a liquidação das garantias, em sede de execução fiscal, somente poderia ocorrer após o trânsito em julgado. Entretanto, a Presidência da República vetou tal parte da lei, com fundamento no interesse público e que tal determinação fragilizaria o processo de cobrança do poder público. No nosso entendimento, o referido veto atentou contra o princípio da menor onerosidade ao devedor e, consequentemente, contra o interesse da coletividade. Afinal, não há lógica em recusar seguro garantia e necessidade de se exigir depósito judicial antes do trânsito em julgado.

Para o bem das operadoras multadas pela ANS, bem como de todos os contribuintes, recentemente, em sessão realizada em 14/12/2023, o Congresso Nacional derrubou cinco dos vetos realizados ao texto da lei, dentre eles o veto acerca da aceitação e manutenção do seguro garantia, até o trânsito em julgado da demanda. Com isso, tivemos uma nova publicação da lei em 22/12/2023 [2], com a promulgação presidencial do que restou decretado pelo Congresso Nacional na análise dos vetos. Com isso, o artigo 9º da Lei de Execuções Fiscais teve a inclusão do §7º, com a seguinte redação:

“Art. 9º

§ 7º. As garantias apresentadas na forma do inciso II do caput deste artigo somente serão liquidadas, no todo ou parcialmente, após o trânsito em julgado de decisão de mérito em desfavor do contribuinte, vedada a sua liquidação antecipada.

A partir da nova previsão legal não há que se falar em discussão acerca da aceitação de seguro garantia e fiança bancária, bem como da liquidação destas garantias após os julgamentos de primeiro ou segundo grau, sendo mandatório aguardar-se o trânsito em julgado.

Importante ter em mente que as garantias bancárias e o seguro garantia trazem eficiência para as demandas judiciais. Afinal, estamos diante de garantes profissionais, ou seja, que possuem liquidez e cuja atuação no mercado securitário e bancário são altamente regulados, justamente para que essas empresas possam cumprir com suas obrigações. Logo, o oferecimento destas modalidades no processo judicial são uma real garantia de adimplemento dos valores ali discutidos, caso o resultado seja favorável ao Estado. Válido lembrar que as seguradoras também possuem a prática de fazer o resseguro de seus contratos, havendo ainda mais segurança do pagamento das apólices ao credor do segurado.

A correta interpretação do ordenamento jurídico vigente é no sentido de permitir e reconhecer o uso do seguro e da fiança bancária como meios idôneos de garantia nas execuções fiscais e ações anulatórias, até a ocorrência do trânsito em julgado. Ao mesmo tempo, ante a disponibilidade dessas garantias, por instituições reguladas e com liquidez, conclui-se ser inútil a liquidação das garantias e sua conversão em depósito judicial, em momento prévio ao trânsito em julgado. Tais medidas apenas oneram de forma desnecessária os devedores e, por sua vez, as seguradoras e resseguradoras, violando o princípio básico da menor onerosidade ao credor. Ademais, a exigências dos valores de forma prévia nos processos, sem necessidade, poderá ter como efeito prático o aumento dos sinistros e, consequentemente, aumento nos prêmios dos referidos tipos de seguro.

Portanto, no exercício da advocacia em questões regulatórias, é importante que toda a discussão aqui presente seja levada aos autos das demandas judiciais quando houver resistência dos magistrados, no intuito de defender o interesse das empresas, para que elas possam fazer uso do seguro garantia e da fiança bancária, ao invés de dispor de valores em espécie de forma desnecessária. Ao mesmo tempo, esperamos que a nova redação da Lei de Execuções Fiscais incentive o STJ a concluir o julgamento do Tema 1.203, de forma a entender pela equiparação das garantias aqui tratadas ao dinheiro em espécie para fins de inexigibilidade de créditos não tributários.

 


[1] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14689.htm

[2] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14689.htm#promulgacao

Autores

  • é bacharel em Direito pelo Mackenzie, pós-graduado em Direito Médico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito, pós-graduado em Direito em Medicina pelo Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, certificado em HealthCare Compliance pelo CBEX (com extensão em Proteção de Dados e Compliance na Saúde pela PUC Campinas), pós-graduado em Direito Sanitário pelo Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa) em parceria com a Facamp e sócio da Mazzoni Advocacia, com atuação consultiva e contenciosa em demandas oriundas das relações de saúde pública e privada.

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