Opinião

Da 'hiperimpositividade' à 'hipofiscalização' orçamentária

Autor

  • Paulo Corrêa

    é jornalista pós-graduado em Orçamento Público e cursa especialização em Finanças Públicas e Contabilidade na Universidade de Brasília.

1 de janeiro de 2024, 11h15

Pela primeira vez na história do orçamento federal, o dispositivo que estabelece um prazo para o pagamento de emendas de deputados e senadores confere um status de “hiperimpositividade” à dinâmica da execução orçamentária. A obrigatoriedade de repasse de emendas individuais (conforme a Emenda Constitucional Nº 86, de 2015), diretamente para o caixa do beneficiário (conforme a Emenda Constitucional Nº 105, de 2019), e agora, com a inclusão de um cronograma determinado para pagamento (segundo a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2024), evidencia uma superapropriação do orçamento pelo Parlamento. O calendário de pagamento foi vetado no dia 2/1/2024 pela Presidência da República e só reforça o ambiente conflituoso entre os poderes mediante ao controle orçamentário.

Ao assegurar o pagamento na data estipulada e para o beneficiário indicado pelo proponente da emenda, o legislador assume funções coordenativas na execução orçamentária, deslocando a competência constitucional de fiscalização do gasto público para uma atividade secundária. Da superapropriação à “hipofiscalização”, é perceptível uma erosão gradual das ferramentas de apoio ao presidencialismo de coalizão.

Prevê-se que o cronograma rigoroso de repasses será objeto de disputa entre governadores e deputados estaduais, similar ao que ocorreu durante a implementação das ’emendas pix’ nos estados. Além dos efeitos na gestão fiscal dos governadores, é relevante ponderar como essa dinâmica influenciará a configuração das maiorias governamentais tanto no Congresso Nacional quanto nas Assembleias Legislativas.

O calendário de pagamento obrigatório entrará em vigor em 2024 no âmbito da União, mas já é uma realidade em um único ente da federação: o estado do Amazonas. Desde 2021, a Emenda Constitucional Nº 126, promulgada em julho daquele ano, estabeleceu um escalonamento na execução, com a obrigação de destinar 50% das emendas no primeiro semestre, 25% das emendas no terceiro semestre e 25% das emendas no último trimestre. A proposição partiu do governador em exercício, configurando um caso singular de estratégia de coalizão.

Por outro lado, a Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) tentou implementar o mesmo dispositivo, mas a medida foi vetada pelo Executivo pernambucano, conforme disposto na Emenda Constitucional Nº 58, de 2023. Isso representa mais uma evidência das disputas iminentes que terão impacto na condução da governabilidade. Para compreender esse processo, é relevante realizar um resgate histórico da evolução das transferências especiais estaduais no país.

Trajetória estadual da emenda Pix
Desde a promulgação da Emenda Constitucional Nº 105, de 2019, que deu origem à emenda na modalidade de transferência especial, mais conhecida como “emenda pix”, 18 estados brasileiros incorporaram esse modelo de emendamento ao orçamento público em suas constituições locais.

Minas Gerais foi o primeiro estado a instituir a emenda sem finalidade definida por meio da Emenda Constitucional Nº 101, em 20 de dezembro de 2019. Os estados de Mato Grosso (EC Nº 89, de 6 de abril), Alagoas (EC Nº 47, de 16 de junho), Roraima (EC Nº 71, de 7 de julho), Sergipe (EC Nº 53, de 10 de dezembro) e Rio Grande do Norte (EC Nº 21, de 10 de dezembro) optaram pelas transferências especiais ainda em 2020.

Em 2021, foi a vez do Piauí (EC Nº 01, de março), Ceará (Lei Complementar Nº 234, de 9 de março), Santa Catarina (EC Nº 81, de 1º de julho), Amazonas (EC Nº 126, de 13 de julho), São Paulo (EC Nº 50, de 18 de junho) e Tocantins (EC Nº 42, de 15 de dezembro) aderirem ao modelo. Já Goiás (EC Nº 72, de 8 de junho), Paraíba (EC Nº 52, de 15 de junho) e Rio de Janeiro (EC Nº 76, de 1º de novembro) aderiram em 2022. Neste ano, Pernambuco (EC Nº 58, de 12 de abril), Maranhão (EC Nº 93, de 26 de maio), Acre (EC Nº 69, de 29 de junho) e Roraima (EC Nº 161, de 4 de julho) aprovaram o texto em suas constituições.

A Assembleia Legislativa do Amapá (Alap) ainda analisa a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) Nº 04, de maio de 2023, que institui a transferência especial. De fato, os entes importaram do texto federal as assimetrias e incertezas relacionadas ao controle público dessa modalidade de emenda, evidenciando um apagão informacional sem precedentes nas contas públicas nacionais.

“Hipofiscalização”
Com a transferência obrigatória das emendas individuais, destinada ao caixa do ente beneficiário e na data estabelecida pelos autores, consolida-se o desinteresse dos legisladores em uma análise crítica da peça orçamentária. As reservas de emendas ao longo do mandato de um deputado federal são de R$ 150 milhões a partir de 2024, enquanto aos senadores da República estão assegurados R$ 552 milhões (cálculos aproximados, desconsiderando reajustes na Receita Corrente Líquida). Esse montante repercute em taxas de reeleição, com impactos decisivos no processo eleitoral. Esse dilema se desenha não apenas em Brasília, mas também se estende pelos estados. Da “hiperimpositividade” à tendência de “hipofiscalização” orçamentária, o pano de fundo é a desejada melhoria da governança dos gastos públicos, diretamente conectada com a qualidade de nossa democracia.

Autores

  • é jornalista, pós-graduado em Orçamento Público e cursa especialização em Finanças Públicas e Contabilidade na Universidade de Brasília.

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