Opinião

Orçamento público ambiental, captura do regulador e preterição da agenda ecológica

Autor

  • Caio Gama Mascarenhas

    é doutorando em Direito Econômico e Financeiro (USP) mestre em Direitos Humanos (UFMS) procurador do Estado do Mato Grosso do Sul chefe da procuradoria judicial e membro do corpo editorial da Revista da PGE-MS.

22 de abril de 2023, 9h17

O orçamento público pode ser objeto de captura por parte do regulador ambiental? Como se opera, no orçamento público, a preterição da agenda ecológica? Essa provocação reflete uma análise crítica feita em um artigo de nossa autoria chamado "Orçamento público ambiental: funções econômicas, estrutura e riscos recentemente publicado na revista eletrônica do TCE-GO (Tribunal de Contas de Goiás).

A regulação, segundo Marçal Justen Filho, consiste em um controle permanente e concentrado, exercido por uma autoridade pública sobre atividades dotadas de um certo valor social. Prossegue o autor defendendo que toda atuação estatal em qualquer modelo estatal é vinculada à realização dos princípios e valores fundamentais (dignidade da pessoa humana, principalmente). O modo de realizar tal fim, num Estado Regulador, consiste na atuação regulatória, o que se traduz basicamente na edição de regras e outras providências orientadas a influir sobre a atuação das pessoas e instituições [1].

As manifestações do Estado Regulatório, conforme o autor, se traduzem na assunção de poder de controle sobre as atividades privadas, sendo estas constituídas ou não de interesses econômicos diretos. A regulação estatal se exterioriza ainda como ampliação do controle/fiscalização, decorrência direta e imediata da ampliação do controle/regulação. Isso ocorre por meio da instituição de mecanismos jurídicos e materiais de acompanhamento da atividade privada [3].

Considerando que a regulação está diretamente ligada à restrição de direitos e imposição de deveres, a preocupação garantista inerente à reserva legal é assegurada não apenas pela exigência de tratamento suficiente da matéria pelo legislador, mas na maior capacidade institucional do ente regulador para delinear com precisão as condutas proscritas e oferecer, com isso, maior segurança jurídica aos agentes econômicos [3]. Percebe-se, portanto, que o poder de regulação do Estado ultrapassa os limites da reserva legal, abrangendo atos normativos provenientes de agências reguladoras e normas infralegais como decretos e resoluções.

Os decretos acabam por exercer grande poder de regulação. Segundo o inciso IV do artigo 84 da Constituição, compete privativamente ao presidente da república "sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução". Decreto é, logo, instrumento do poder regulamentar que, na visão de Geraldo Ataliba, consiste:

 "[…] na faculdade que ao Presidente da República  ou Chefe do Executivo, em geral, Governador e Prefeito  a Constituição confere para dispor sôbre medidas necessárias ao fiel cumprimento da vontade legal, dando providências que estabeleçam condições para tanto. Sua função é facilitar a execução da lei, especificá-la de modo praticável e, sobretudo, acomodar o aparelho administrativo, para bem observá-la." [5]

É significante o poder que os decretos dão aos governantes. Ressalta-se que um governo que não dispõe de uma coalizão ampla e estável, disputando aprovação de emendas, leis e MPs dentro do parlamento, pode focar em atos administrativos, ordens presidenciais e na edição de decretos.

Dependendo do seu objeto, decretos são meios juridicamente questionáveis, porque devem se ater aos limites legais e constitucionais. No entanto, é perceptível que os decretos são eficientes instrumentos para um governo perseguir parte importante de sua agenda sem que isso passe pelo crivo do Poder Legislativo.

Decretos podem destinar-se a reestruturar órgãos da administração pública, com ênfase em criar ou remanejar cargos em comissão; modificar, delegar ou redistribuir competências; alterar a composição de órgãos; e modificar funcionamento de órgãos.

As reestruturações nos colegiados também podem acarretar a centralização do poder decisório nas mãos do governo e a diminuição da participação da sociedade civil [6]. Nesse sentido, o conteúdo desses decretos pode ser "capturado" por setores diretamente afetados pela regulação.

O risco da captura do regulador ambiental é uma questão preocupante. A teoria da captura enfatiza o papel dos grupos de interesse na formação das políticas públicas. A premissa da teoria parte da noção de que o processo regulatório pode ser capturado por indústrias, empresas e grupos econômicos organizados, resultando na aquisição da regulação pelos grupos econômicos de interesse e para a operação em seu benefício. Uma indústria, por exemplo, tem mais incentivos do que consumidores dispersos com baixa participação per capita para se organizar e exercer influência política [7].

Esse emprego sistemático de decretos presidenciais para reduzir o impacto de políticas públicas contrárias à sua agenda, especialmente no campo dos direitos fundamentais, não tem passado despercebido pelos demais poderes. No caso ambiental brasileiro, por exemplo, é notório que a agenda política do governo de Jair Bolsonaro era voltada, em grande parte, para setores empresariais do agronegócio [8]. Por outro lado, parte significativa da regulação ambiental no Brasil é realizada e executada por decretos.

Em 2020, uma série de decretos federais desestruturaram a gestão pública ambiental no âmbito do Poder Executivo federal, notadamente os Decretos nº 10.223/2020, 10.224/2020 e 10.239/2020. Tais atos normativos infralegais impediam ou dificultavam a execução orçamentária do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima, assim como a do Fundo Amazônia, por meio de extinção de órgãos, conselhos e comitês, modificação de procedimentos, supressão da participação da sociedade civil, governadores de estado, dentre outras questões.

Destaca-se que a Noruega, maior contribuinte para o Fundo Amazônia, suspendeu as doações já em 2019 em razão dessa gestão ecológica disfuncional. Por meio de várias ações ajuizadas perante o Supremo Tribunal Federal (ADO 59, ADO 60, ADPF 705, ADPF 651), esses decretos foram declarados inconstitucionais e consequentemente invalidados.

Outros exemplos podem ser dados em relação à própria receita pública ambiental. O número de multas por infração ambiental aplicadas pelo Ibama no país recuou 34% em 2019 na comparação com 2018, sendo a menor quantidade em 24 anos. Foram registradas 9.745 autuações ambientais em 2019 (R$ 2,3 bilhões), ante 14.699 em 2018 (R$ 4,09 bilhões), em valores, a queda é de 43,3%. Por último, lista-se a demissão do diretor do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) logo após a divulgação de um relatório do instituto que revela um aumento de 88% nos índices de desmatamento da Amazônia em 2019 em relação a 2018.

No âmbito do contingenciamento orçamentário, prudente citar o caso da ADPF 708. No caso, a arguição de descumprimento de preceito fundamental alegava que a União manteve o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (Fundo Clima) inoperante durante os anos de 2019 e 2020, deixando de destinar vultosos recursos para o enfrentamento das mudanças climáticas.

O STF, por maioria, julgou procedente a ADPF 708 para: 1) reconhecer a omissão da União, em razão da não alocação integral dos recursos do Fundo Clima referentes a 2019; 2) determinar à União que se abstenha de se omitir em fazer funcionar o Fundo Clima ou em destinar seus recursos; e 3) vedar o contingenciamento das receitas que integram o Fundo, fixando a seguinte tese de julgamento: "O Poder Executivo tem o dever constitucional de fazer funcionar e alocar anualmente os recursos do Fundo Clima, para fins de mitigação das mudanças climáticas, estando vedado seu contingenciamento, em razão do dever constitucional de tutela ao meio ambiente (CF, artigo 225), de direitos e compromissos internacionais assumidos pelo Brasil (CF, artigo 5º, parágrafo 2º), bem como do princípio constitucional da separação dos poderes (CF, artigo 2º c/c artigo 9º, parágrafo 2º, LRF)".

Além dos valores ambientais, um dos argumentos acolhidos pela Suprema Corte foi de que tais valores se vincularem a despesa objeto de deliberação do Legislativo, voltada ao cumprimento de obrigação constitucional e legal, com destinação específica. O Supremo julgou procedente a ação, decidindo que o Poder Executivo tem o dever constitucional de fazer funcionar e alocar anualmente os recursos do Fundo Clima, para fins de mitigação das mudanças climáticas. Nesse sentido, estaria vedado seu contingenciamento, em razão do dever constitucional de tutela ao meio ambiente (CF, artigo 225), de direitos e compromissos internacionais assumidos pelo Brasil (CF, artigo 5º, §2º), bem como do princípio constitucional da separação dos poderes.

O que se destaca aqui é a significativa concentração de poderes de execução de políticas públicas ambientais nas mãos do chefe do poder executivo federal. O problema não é a utilização dos instrumentos infralegais em si, mas o seu eventual uso abusivo contra valores tutelados pela Constituição. A preterição da agenda ambiental, no entanto, não é um fenômeno individualizado e exclusivo de determinado governo ou Poder, conforme será observado no próximo tópico.

O caso da preterição da agenda política ambiental cuida do desprestígio que a preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado possui perante autoridades públicas (âmbito político) e empresas (âmbito econômico).

No âmbito político, percebe-se que os representantes políticos tendem a atender interesses econômicos e sociais antes dos interesses de preservação do meio ambiente. Para ilustrar, basta analisar a discussão acerca do teto de cobrança de ICMS sobre combustíveis fósseis e energia elétrica que resultou na promulgação da Lei Complementar Federal n. 194/2022. Aqui não se trata de comportamento exclusivo do Poder Executivo federal. Tal projeto foi aprovado com amplo apoio tanto na Câmara dos Deputados (403 votos favoráveis, dez contrários e dois abstenções), quanto no Senado Federal (por 65 votos a favor e 12 contra).

O Projeto de Lei Complementar 18/2022 é criticado por governadores, que estimam uma perda de arrecadação entre R$ 64 bilhões e R$ 83 bilhões. Ressalta-se que essa Lei Complementar representa um incentivo para produção e uso de combustíveis fósseis. Adota-se, logo, uma direção contrária ao plano elaborado pelas Nações Unidas pela redução de produção e consumo de tais recursos minerais (The Production Gap[9].

De fato, há duas outras perspectivas adotadas pela Lei Complementar: a proteção da economia contra a estagflação e a proteção da população contra os efeitos da inflação causados pelo aumento nos preços de combustíveis. A função econômica do governo instrumentalizada no projeto de lei é a de estabilização macroeconômica do país. No fim das contas, a proteção ambiental acaba assumindo a retaguarda quando o assunto afeta o poder econômico e o bem-estar social da população.

No âmbito econômico, empresas colocam seus possíveis lucros em posição superior a outros interesses como a preservação ambiental. Não obstante haja uma pressão global pela sustentabilidade da atividade das empresas, há uma tendência antiética chamada de greenwashing, isto é, uma prática sistemática de iludir consumidores, autoridades públicas e investidores por meio da comunicação de um enganoso desempenho sustentável das políticas da empresa (firm-level greenwashing) ou pela divulgação de duvidosos benefícios ecológicos de um produto ou serviço oferecido (product-level greenwashing[10]. Alguns estudos identificaram práticas de greenwashing no Brasil [11].

 

[1] JUSTEN FILHO, Marçal. O direito regulatório. Interesse Público: revista bimestral de direito público, Belo Horizonte, nº 43, p. 19-40, 2007.

[2] Ibid.

[3] BINENBOJM, Gustavo. Poder de polícia, ordenação, regulação: transformações político-jurídicas, econômicas e institucionais do direito administrativo ordenador. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 165.

[4] ATALIBA, Geraldo. Decreto regulamentar no sistema brasileiro. Revista de direito administrativo, v. 97, 1969, p. 23.

[5] VIEIRA, Oscar Vilhena; GLEZER, Rubens. Populismo autocrático e resiliência constitucional. Interesse Nacional, São Paulo, ano 12, nº 47, out./dez. 2019, p. 71-72.

[6] LAFFONT, Jean-Jacques; TIROLE, Jean. The Politics of Government Decision-Making: A Theory of Regulatory Capture. The Quarterly Journal of Economics, Vol. 106, No. 4, pp. 1089-1127, Nov., 1991, p. 1989-1990.

[7] SAUER, Sérgio; LEITE, Acacio Zuniga; TUBINO, Nilton Luís Godoy. Agenda política da terra no governo Bolsonaro. Revista da ANPEGE, v. 16, n. 29, p. 285-318, 2020.

[8] SEI, IISD, ODI, E3G, and UNEP. (2021). The Production Gap Report 2021. Avaiable at: http://productiongap.org/2021report

[9] DELMAS, Magali A.; BURBANO, Vanessa Cuerel. The drivers of greenwashing. California management review, v. 54, nº 1, p. 64-87, 2011.

[10] Ver: PAGOTTO, Erico Luciano. Greenwashing: os conflitos éticos da propaganda ambiental. 2013. Dissertação de Mestrado em Ciências, 162 f. Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política, Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. São Paulo: 2013; ALIGLERI, Lilian; DE ARAÚJO, Lucas Vieira. Comunicação mercadológica e greenwashing nos rótulos dos sabões para lavar-roupa. Revista Eletrônica Internacional de Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura, v. 18, nº 3, p. 214-248, 2016.

Autores

  • é doutorando em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo(USP), mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), procurador do Estado do Mato Grosso do Sul e membro do Corpo Editorial da Revista da PGE-MS.

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