Opinião

Transferências de orçamento impositivo são transferências obrigatórias?

Autor

  • Caio Gama Mascarenhas

    é doutorando em Direito Econômico e Financeiro (USP) mestre em Direitos Humanos (UFMS) procurador do Estado do Mato Grosso do Sul chefe da procuradoria judicial e membro do corpo editorial da Revista da PGE-MS.

20 de julho de 2023, 6h09

Como classificar as transferências intergovernamentais após a modificações efetuadas das Emendas Constitucionais 86/2015 105/2019? Transferências decorrentes de emendas orçamentárias de execução obrigatória são transferências intergovernamentais obrigatórias?

Essa provocação reflete uma análise crítica feita em um artigo de nossa autoria chamado "Orçamento impositivo e as transferências do artigo 166-A da Constituição: notas sobre regime jurídico, accountability e corrupção" recentemente publicado na revista eletrônica do PGE-RJ (link de acesso ao artigo) [1].

Previstos no artigo 166-A, os repasses decorrentes de emendas de orçamento impositivo são considerados transferências obrigatórias segundo o §16 do artigo 166 da Constituição [2]. Cuida-se, no entanto, de transferências discricionárias. As transferências decorrentes de emenda orçamentárias são necessariamente transferências discricionárias, porquanto, dentre outros fatores, são decorrentes da execução de despesa primária discricionária do orçamento do ente transferidor.

As transferências decorrentes de emendas são transferências discricionárias (decorrentes de despesas discricionárias), mas diferem entre si quanto ao grau de coerção jurídica. Há atualmente quatro modalidades de emendas parlamentares ao orçamento público devidamente registradas com identificadores de resultado primária na Lei Orçamentária Anual (LOA): emendas parlamentares individuais; emendas parlamentares de bancada estadual ou do Distrito Federal; emendas parlamentares de comissão; e emendas de relator-geral, que é o parlamentar que organiza e ajusta o projeto de lei orçamentária.

Em regra, somente as emendas parlamentares individuais e as emendas parlamentares de bancada podem ser formalmente classificadas como impositivas, em virtude dos §§9º e 12 do artigo 166 da Constituição.

O que são transferências obrigatórias e transferências discricionárias?
Tradicionalmente, as transferências intergovernamentais são obrigatórias (ou automáticas) quando estiverem previstas no ordenamento jurídico de determinado Estado de forma que devam ser operacionalizadas por ocasião do recebimento dos recursos, independentemente de decisões de autoridades. Diversas transferências constitucionais brasileiras são feitas por meio dessa técnica (artigos 157 a 159 da CF).

As transferências discricionárias, por sua vez, são aquelas que resultam de negociação entre as autoridades centrais e os governos subnacionais, com a mediação de seus representantes no Parlamento. Sua função é complementar e auxiliar as transferências obrigatórias por apresentar maior flexibilidade em situações excepcionais de curto prazo [3].

Importante destacar que a noção de transferência voluntária do presente texto é notadamente procedimental, não se utilizando o conceito de transferência voluntária como sinônimo de transferência discricionária (que é o oposto de transferência obrigatória decorrente de despesa obrigatória) [4]. Transferência voluntária é aqui abordada como espécie de transferência discricionária que possui um procedimento específico de descentralização fiscal que utiliza convênios ou instrumentos congêneres (artigo 25 da LRF), seguindo normas e condicionantes rígidas (Portaria Interministerial n.424/2016) [5].

Segundo o Tesouro Nacional, outros exemplos de transferências discricionárias são aquelas destinadas a: Fortalecimento do Sistema Único de Assistência Social (Suas); Programa de Aceleração do Crescimento (PAC); Programa de Gestão de Riscos e Resposta a Desastres; Elevação da Escolaridade e Qualificação Profissional (Projovem) ; Plano de Ações Articuladas (PAR); Programa Território da Cidadania (PTC); Proteção a Pessoas Ameaçadas e recursos provenientes de Emendas Parlamentares [6].

Qual a diferença entre a 'impositividade' de algumas espécies de emendas orçamentárias (e dos repasses do artigo 166-A da Constituição) e a 'obrigatoriedade' de determinadas transferências intergovernamentais? Nota-se, de fato, uma coerção jurídica nos dois casos. Necessita-se, no e de buscar uma precisão contextual desse dever jurídico.

Ressalta-se que, tradicionalmente, essa caracterização de obrigatoriedade sempre esteve atrelada à noção de autonomia de um ente político em um contexto de federalismo fiscal. O que essa norma constitucional quer dizer na prática?

Para entender as diferenças básicas entre os regimes jurídicos das receitas decorrentes da partilha federativa de receita e das transferências decorrentes de emenda de execução obrigatória, alguns elementos são essenciais para aclarar a distinção: 1) o fundamento do dever de transferir; 2) a fonte de custeio; 3) os limites legais da obrigatoriedade e os critérios de alocação.

A primeira diferença é o fundamento do dever jurídico. O caráter de obrigatoriedade previsto nas transferências intergovernamentais dos artigos 157 a 159 da CF/88 diz respeito à autonomia federativa dos entes subnacionais (estados e municípios) — os titulares de parcela da arrecadação de tributos. A obrigatoriedade da transferência intergovernamental do artigo 166-A da Constituição diz respeito à independência entre poderes da república (Executivo e Legislativo, no caso). Isso porquanto os repasses de valores decorrentes de emendas parlamentares de orçamento impositivo devem ser operacionalizados em favor de estados, Distrito Federal e municípios independentemente da decisão do Poder Executivo federal [7], em oposição à regra geral do orçamento autorizativo.

Em suma: 1) no orçamento impositivo, o parlamentar litiga contra o Poder Executivo pela prerrogativa de decidir sobre o conteúdo da despesa orçamentária; enquanto 2) nas repartições federativas de receita financeira (federalismo fiscal), os entes subnacionais lutam pela titularidade das verbas arrecadadas pelo ente central (pessoa jurídica) [8].

Esse fundamento da coerção jurídica leva a outra questão: a quem cabe o dever de transferir? No orçamento impositivo, o dever incumbe ao Poder Executivo, enquanto na repartição federativa de receita financeira, o dever de transferir é do ente federado central (pessoa jurídica) responsável pela arrecadação da receita.

A fonte de custeio também deve ser considerada. Quando se fala em federalismo fiscal, pensa-se inicialmente nas transferências tributárias constitucionais, que são transferências vinculadas à arrecadação dos tributos sujeitos à repartição constitucional (exemplo: Fundeb, Fundo de Participação dos Estados, Fundo de Participação dos Municípios e demais partilhas de receita tributária previstas artigos 158 e 159 da CF/88). No caso das transferências obrigatórias decorrentes dos royalties, a fonte de custeio encontra-se ligada à exploração da propriedade federal dos recursos minerais, cuja parte da arrecadação é obrigatoriamente transferida aos estados e municípios (artigos 8º e 9º da Lei federal 7.990/1989). Esses recursos, em regra, não são sequer computados na receita corrente líquida dos entes federativos transferidores (inciso IV do artigo 2º da Lei de Responsabilidade Fiscal (LCP nº 101/2000). No orçamento destas pessoas jurídicas, esses repasses são caracterizados como despesas obrigatórias. No orçamento dos entes recipientes, esses repasses se caracterizam pela sua previsibilidade e regularidade de seu recebimento no tempo (receitas correntes ordinárias).

As transferências decorrentes de emendas de orçamento impositivo seguem lógica distinta, na medida em que se originam da anulação de despesas. Esses repasses podem ter origem em dotações orçamentárias ora incluídas pelo próprio Poder Executivo, ora patrocinadas por emendas parlamentares, constituindo despesas próprias do ente transferente e sem dedução na sua receita corrente líquida. O cálculo dessas emendas é feito com base na receita corrente líquida (RCL), havendo um limite de 2% para emendas individuais e 1% para emendas de iniciativa de bancada (§§9º e 12 do artigo 166 da Constituição), cujo parâmetro de cálculo é a receita do exercício anterior ao do encaminhamento do projeto de lei orçamentária.

Há uma ausência de receita específica associada às transferências decorrentes de emendas parlamentares, algo que pudesse aproximar esses instrumentos do conceito de repartição de receita tributária ou de receita patrimonial, como todas as outras que alicerçam a dimensão fiscal do pacto federativo. No orçamento da pessoa jurídica transferidora, esses repasses decorrentes de emendas são caracterizados como despesas discricionárias. No orçamento dos entes recipientes, esses recursos se caracterizam pela sua imprevisibilidade e irregularidade de seu recebimento no tempo, porquanto dependem de instáveis transações políticas entre parlamentares e os governos locais.

Os limites da obrigatoriedade e os critérios de repasse são igualmente essenciais para essa distinção. Quando se trata de transferências com fins exclusivos de federalismo fiscal, há uma maior "blindagem normativa" que restringe o poder de decisão sobre tais recursos: a) parlamentares não podem anular despesas destinadas às transferências tributárias constitucionais para estados, municípios e Distrito Federal (inciso II do §3º do artigo 166 da Constituição); e b) o Poder Executivo não pode contingenciar transferências obrigatórias decorrentes de obrigação constitucional ou legal, sob pena de sofrer sanções punitivas (artigo 160 da Constituição e §2º do artigo 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal).

Por outro lado, o poder de emenda pressupõe o poder de anular despesas do Projeto de lei orçamentária, sendo essa a fonte das transferências do artigo 166-A. Os limites de contingenciamento são flexibilizados na discussão sobre transferências oriundas de emendas de orçamento impositivo (§18 do artigo 166 da Constituição) [9].

Para esclarecer a diferença, ressalta-se a seguinte: as transferências de orçamento impositivo vinculadas a convênios seriam o mesmo que transferências voluntárias?

Em verdade, embora possam igualmente financiar projetos, essas duas transferências possuem algumas diferenças marcantes em seus regimes jurídicos e em seus procedimentos. Quando as transferências de emendas de execução obrigatória seguem o rito tradicional de convênios e instrumentos congêneres, tais repasses de verbas possuem uma garantia qualificada de exequibilidade em relação às transferências voluntárias do artigo 25 da LRF.

O ordenamento jurídico (Constituição, LRF, LDOs, atos infralegais) determinou uma série de condições a serem cumpridas pelo ente recebedor de transferência voluntária. A proibição de conceder e receber transferências voluntárias é forma usual pela qual a União sanciona os demais entes pelo descumprimento de algumas regras fiscais (limites com pessoal e dívida, etc.). As transferências voluntárias exigem dos entes beneficiários uma série de requisitos prévios (inciso IV do §1º do artigo 25 da LRF): a) adimplência e prestação de contas em relação a tributos, empréstimos e financiamentos devidos ao ente transferidor; b) cumprimento dos limites constitucionais relativos à educação e à saúde; c) observância de normas de endividamento e despesas; e e) previsão orçamentária de contrapartida.

Os repasses resultantes de emendas de orçamento impositivo independem da adimplência do ente federativo destinatário (artigo 166, §16, da CF), devem seguir critérios para a execução equitativa da programação (artigo 166, §12, da CF) e somente não serão executados nos casos dos impedimentos de ordem técnica (artigo 166, §13, da CF).

 


[1] Para citação: MASCARENHAS, Caio Gama. Orçamento impositivo e as transferências do artigo 166-A da Constituição: Notas sobre regime jurídico, accountability e corrupção. Revista Eletrônica da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro (PGE-RJ), [S. l.], volume 6, número 1, 2023. Disponível em: https://revistaeletronica.pge.rj.gov.br/index.php/pge/article/view/340/269 .

[2] O §16 do artigo 166 da Constituição fala em "transferência obrigatória da União para a execução da programação prevista" nas emendas de execução obrigatória.

[3] MASCARENHAS, Caio Gama. Orçamento impositivo e as transferências do artigo 166-A da Constituição, op cit.         

[4] O Tribunal de Contas da União, por sua vez, ora utiliza o conceito de transferência voluntária como antítese de transferência obrigatória, ora utiliza o conceito de transferência voluntária como procedimento específico de descentralização fiscal. Isso fica nítido no acórdão do plenário do TCU nº 518/2023, em que há menção de transferência especial como "transferência voluntária" que não segue o requisito dos convênios nem de instrumentos congêneres (procedimento).

[5] A terminologia "transferências voluntárias" passou a ser insuficiente após inúmeras alterações legislativas. Destaca-se, por exemplo, a lei federal nº 11.578/2007, que trata sobre a transferência obrigatória de recursos financeiros para ações do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A Lei prevê a "transferência voluntária de caráter obrigatório" em seu artigo 2-B.

[6] Fonte: BRASIL. Secretaria do Tesouro Nacional. Boletim de Finanças dos Entes Subnacionais – Ano base 2021. Tesouro Nacional: Brasília, 2022.

[7] MASCARENHAS, Caio Gama. Orçamento impositivo e as transferências do artigo 166-A da Constituição, op cit.

[8] Nesse contexto, a Constituição Federal estabeleceu a repartição de receitas entre os entes da Federação (artigos157 a 160), as quais integram o rol de receitas próprias do ente beneficiário estadual, distrital ou municipal, sem possibilidade de imposição de restrições e condições pelo ente transferidor.

[9] Segundo o §18 do artigo 166 da Constituição (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 100, de 2019): Se for verificado que a reestimativa da receita e da despesa poderá resultar no não cumprimento da meta de resultado fiscal estabelecida na lei de diretrizes orçamentárias, os montantes previstos nos §§11 e 12 deste artigo poderão ser reduzidos em até a mesma proporção da limitação incidente sobre o conjunto das demais despesas discricionárias.

Autores

  • é doutorando em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo(USP), mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), procurador do Estado do Mato Grosso do Sul e membro do Corpo Editorial da Revista da PGE-MS.

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