Opinião

A inviolabilidade do sigilo profissional entre advogado e cliente

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26 de fevereiro de 2024, 6h06

Os últimos meses têm sido inegavelmente preocupantes para a advocacia, especialmente em virtude de sucessivos e graves ataques às suas prerrogativas. O mais recente episódio gerou grande revolta e inquietação na comunidade jurídica. Afinal de contas, percebeu-se inequívoco e inaceitável vilipêndio de uma das prerrogativas mais caras para o exercício da atividade: a inviolabilidade do sigilo profissional.

De acordo com o veiculado pela revista eletrônica Consultor Jurídico, o delegado de Polícia Federal Hiroshi de Araújo Sakaki teria se utilizado de conversas havidas entre o investigado Roberto Mantovani, suspeito de agredir o ministro Alexandre de Moraes em julho de 2023, e o seu advogado, dr. Ralph Tórtima, em um relatório encaminhado ao Supremo Tribunal Federal no último dia 9.

Segundo as informações, o delegado federal teria incluído transcrições de diálogos, prints de imagens e de documentos extraídos das comunicações estabelecidas entre o advogado e o cliente. Até mesmo as orientações técnicas teriam sido acessadas e, pior, expostas neste relatório policial.

Como não poderia ser diferente, a Ordem dos Advogados do Brasil, por meio do Conselho Federal, agiu imediatamente apresentando pedido de providências contra o delegado da Polícia Federal ao STF (que contou com as assinaturas dos 27 presidentes das seccionais da OAB), ressaltando que:

A violação das prerrogativas dos advogados fere de morte as garantias constitucionais da sociedade, e isso jamais será admitido pela Ordem dos Advogados do Brasil, devendo haver punição contra quem quer que o faça, independentemente da cadeira que ocupe e da natureza e gravidade dos supostos crimes apurados.”

E a legitimidade desta indignação parece indiscutível. Afinal, será que alguém discorda de que é inviolável o sigilo profissional existente entre advogado e cliente? Espera-se que não, mas diante dos reiterados episódios que têm se percebido na prática forense, talvez seja importante lembrar o que a legislação estabelece sobre o assunto.

O artigo 7º, inciso II, da Lei nº 8.906/1994, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil, prevê como direito do advogado “a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia”.

Portanto, a lei é expressa e absolutamente clara ao proibir o acesso às comunicações do advogado. E para que não reste qualquer dúvida, a redação do § 6º do mencionado artigo 7º do Estatuto da Advocacia, incluído ao diploma legal por meio da Lei nº 11.767, de 2008, preconiza que:

§ 6o Presentes indícios de autoria e materialidade da prática de crime por parte de advogado, a autoridade judiciária competente poderá decretar a quebra da inviolabilidade de que trata o inciso II do caput deste artigo, em decisão motivada, expedindo mandado de busca e apreensão, específico e pormenorizado, a ser cumprido na presença de representante da OAB, sendo, em qualquer hipótese, vedada a utilização dos documentos, das mídias e dos objetos pertencentes a clientes do advogado averiguado, bem como dos demais instrumentos de trabalho que contenham informações sobre clientes.

Ou seja, o ordenamento jurídico excepciona a inviolabilidade do sigilo profissional tão somente na hipótese de existirem indícios de autoria e materialidade da prática de crime pelo próprio advogado. Em outras palavras, apenas será possível o acesso às comunicações do advogado quando houver indícios de que ele tenha cometido um crime.

Contudo, mesmo nessa hipótese, veda-se “a utilização dos documentos, das mídias e dos objetos pertencentes a clientes do advogado averiguado, bem como dos demais instrumentos de trabalho que contenham informações sobre clientes”, e, ainda, exige-se que o acesso seja necessariamente precedido por decisão judicial motivada e “mandado de busca e apreensão, específico e pormenorizado, a ser cumprido na presença de representante da OAB”.

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Entreve à garantia de ampla defesa
Como se não bastasse, diversos outros dispositivos legais existentes na legislação brasileira traduzem essa proteção recaída sobre o sigilo profissional entre advogado e cliente: artigo 207 do CPP; artigo 154 do CP; artigo 7º, XIX, e 34, VII, da Lei nº 8.906/94; artigo 5º, XIV, e 133, da CF. Além disso, não há dúvida de que o acesso às conversas estabelecidas entre advogado e cliente vilipendia frontalmente à garantia constitucional à ampla defesa (artigo 5º, LV, CF).

Por consequência desta clareza do ordenamento jurídico, a jurisprudência nacional é remansosa ao resguardar o sigilo profissional, evidenciando-se, por diversos motivos, a decisão relativamente recente prolatada pelo ministro Alexandre de Moraes no julgamento da Reclamação Constitucional nº 57.996/SP.

No caso paradigma, impugnou-se a decisão proferida pelo Juízo da 2ª Vara Regional de Competência Empresarial e de Conflitos Relacionados à Arbitragem do Foro Especializado do Estado de São Paulo, por meio da qual teria sido determinada ampla busca e apreensão de correspondências eletrônicas de todos os diretores, administradores e gestores do Grupo Americanas, inclusive com seus advogados internos e externos, o que, na visão do reclamante, violaria o decidido na ADI 1.127.

No julgamento, o eminente ministro do STF salientou que:

“O alcance da proteção legal, descrita pela inviolabilidade da correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, tem por fim garantir não só ao advogado a inviolabilidade no exercício de sua função (art. 133, CF), mas também à parte representada a efetivação da ampla defesa (art. 5º, LV, CF).
 […]
 A inviolabilidade das comunicações e de dados examinada sob o entendimento da ADI 1.127 visa a proteção do exercício da advocacia como instrumento para a concretização dos direitos e garantias constitucionais individuais, tendo por finalidade a proteção da relação dos advogados com os seus representados.”

Em razão disso, concluiu que na decisão reclamada “não houve suficiente preservação de eventual comunicação havida entre integrantes da administração e do corpo técnico da empresa investigada e os advogados, em desrespeito ao princípio constitucional da inviolabilidade do advogado”, de modo que se estaria publicizando “aquilo que somente diz respeito aos interlocutores que, por reconhecimento do alcance constitucional do direito à ampla defesa técnica, somente poderá tornar-se público por decisão daqueles próprios”.

Nesse sentido, é esclarecedora a doutrina de Paulo Lôbos (2024):

“Desde tempos imemoriais compreendeu-se que, sem a garantia do sigilo profissional, a advocacia, como múnus público, teria minados seus próprios fundamentos. O sigilo profissional não existe em razão do advogado, ou até mesmo de seu cliente, mas sim da sociedade. É do interesse geral que cada pessoa humana, empresa ou entidade tenha assegurado que o de mais íntimo e reservado recebido pelo advogado não extravase para o espaço público. É do interesse da administração da justiça, para que esta não seja comprometida, que pessoas, empresas e entidades não soneguem informações ao seu defensor, com receio de vê-las divulgadas.”

Conclui-se, assim, que seria absolutamente insustentável o exercício da advocacia como instrumento de concretização de direitos e garantias sem que efetivamente se preservasse o segredo profissional entre advogado e cliente.

À vista disso, a violação desta importante prerrogativa deve ser repelida com rigor pelo Poder Judiciário, de modo a inequivocamente desestimulá-la, independentemente da gravidade dos fatos apurados e de quem a tenha cometido. Afinal, o acesso às conversas estabelecidas entre advogado e representado, além de se tratar de uma manobra evidentemente desleal, reveste-se de manifesta ilegalidade e, portanto, deve ser punida.

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