Opinião

Importância do advogado para garantia de saúde no Brasil

Autor

  • Cláudio Castello de Campos Pereira

    é advogado sócio da Castello de Campos & Gazarini Dutra Sociedade de Advogados especializado em Direito Civil pela GV Law e membro efetivo da Comissão de Estudos Sobre Planos de Saúde e Assistência Médica da OAB-SP.

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9 de fevereiro de 2024, 18h24

A Constituição de 1988 [1] estabeleceu os fundamentos e princípios da República Federativa do Brasil, incluindo, entre seus fundamentos, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, conforme delineado em seu artigo 1º.

Visa objetivos claros, como construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, e promover o bem de todos, conforme o artigo 3º.

Além disso, estabeleceu os direitos e garantias fundamentais, individuais, coletivos e sociais, através dos artigos 5º, 6º e 7º, enfatizando o direito social à saúde no artigo 6º.

Saúde como direito e dever
No título da Ordem Social, reitera a saúde como direito de todos e dever do Estado, conforme o artigo 196, e permite que a iniciativa privada participe da assistência à saúde, conforme o artigo 199, sempre vinculada aos princípios e regras do ordenamento constitucional e da legislação ordinária.

Essa vinculação é essencial, pois o direito à saúde é um dos mais elevados direitos fundamentais, essencial para o respeito à dignidade humana. A República Federativa do Brasil, ao adotar o sistema capitalista, não o fez de maneira desenfreada, mantendo a livre iniciativa e a valorização do trabalho como fundamentos da República, ao lado da dignidade da pessoa humana e da cidadania, como reforçado pelo artigo 170.

A Lei Federal nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, veio reiterar a saúde como um direito fundamental, promovido pelo dever do Estado, e estabeleceu princípios para as ações e serviços públicos de saúde, incluindo aqueles prestados pela iniciativa privada que integram o SUS, seguindo as diretrizes do artigo 198 da Constituição Federal.

Este arcabouço legal assegura que a prestação de serviços de assistência médica pelo setor privado seja considerada um serviço público, sujeito tanto às normas de direito público quanto às de responsabilidade civil, enfatizando a eficiência, continuidade e igualdade perante os usuários como princípios norteadores.

Abordagens em outros países
Contrastando com outras Constituições de países desenvolvidos, observa-se uma variedade de abordagens no que tange à garantia do direito à saúde. Por exemplo, a Constituição dos Estados Unidos [2] não menciona explicitamente o direito à saúde como um direito constitucional, refletindo uma abordagem mais liberal e centrada no mercado para a prestação de serviços de saúde.

A responsabilidade pelo acesso à saúde é, em grande parte, deixada ao indivíduo e ao mercado, com intervenções governamentais específicas, como o Medicare [3] e o Medicaid [4], destinadas a segmentos vulneráveis da população.Na Alemanha, a Lei Fundamental (Grundgesetz) [5] estabelece um sistema de segurança social e implica a garantia do bem-estar social, incluindo a saúde, como um princípio orientador do Estado de bem-estar social.

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Hospital, médico, plano de saúde

O sistema de saúde alemão é caracterizado por um modelo de seguro de saúde obrigatório, no qual a prestação de serviços de saúde é realizada tanto por entidades públicas quanto privadas, mas sob rigorosa regulamentação e coordenação governamental, garantindo acesso universal.

No Reino Unido, o direito à saúde é efetivado principalmente através do National Health Service (NHS) [6], criado pela legislação do Parlamento britânico. Embora a Constituição não escrita do Reino Unido não especifique o direito à saúde de forma expressa, o NHS representa um compromisso do governo com a prestação de serviços de saúde universais e gratuitos no ponto de uso, financiados por impostos, refletindo um modelo de bem-estar social robusto.

Essas diferenças refletem as diversas filosofias políticas e sociais que moldam a governança e a prestação de serviços de saúde em cada país. Enquanto o Brasil adota uma abordagem constitucional explícita para garantir o direito à saúde como um dever do Estado e um direito de todos, países desenvolvidos variam entre sistemas de bem-estar social com forte intervenção e regulamentação estatal, como na Alemanha e no Reino Unido, e modelos mais liberais e baseados no mercado, como nos Estados Unidos.

Essa diversidade sublinha a complexidade das políticas de saúde e a importância de contextos históricos, culturais e econômicos na definição das estratégias para garantir o acesso à saúde.

Judicialização da saúde e o papel da advocacia
O acesso constitucional à saúde de qualidade no Brasil enfrenta obstáculos, incluindo disparidades socioeconômicas, financiamento inadequado e gestão ineficiente, afetando a disponibilidade e a qualidade dos serviços de saúde.

A judicialização evidencia a luta por tratamentos e a importância de políticas que considerem aspectos sociais como educação e saneamento. Nesse contexto, a advocacia é vital para assegurar esse acesso, mediante ações judiciais e a aplicação da legislação de saúde.

A atuação do advogado no Brasil, especialmente no que tange à garantia dos direitos à saúde, é concebida não apenas como uma profissão, mas como uma função pública essencial, cujo acesso deve ser amplamente garantido pela sociedade. Essa visão é sustentada pelo Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei nº 8.906/1994)[7], que no artigo 2º, parágrafo 1º, estabelece o advogado como indispensável à administração da justiça.

Neste contexto, as prerrogativas dos advogados emergem como ferramentas vitais para a proteção e efetivação dos direitos fundamentais, incluindo o direito à saúde, assegurado pela Constituição de 1988 em seu artigo 196.

Importância das prerrogativas
O direito à saúde, consagrado constitucionalmente, demanda uma atuação jurídica ativa para sua efetivação, em que as prerrogativas dos advogados, como o acesso irrestrito a documentos em órgãos públicos (artigo 7º, XIII, da Lei nº 8.906/1994 [8]), assumem um papel crucial.

Essas prerrogativas permitem que os advogados atuem de maneira eficaz na defesa dos interesses de seus constituintes, sejam eles indivíduos ou coletividades, frente a possíveis omissões ou atos ilegais praticados pelo Estado ou por entidades privadas na área da saúde.

Advocacia e a efetivação dos direitos da saúde 
Há muitos exemplos que demonstram a essencial função do advogado na efetivação dos direitos da saúde. O papel do advogado na garantia do acesso a medicamentos e terapias de alto custo, seja em demandas contra o SUS ou contra o sistema de saúde suplementar, é um exemplo da vital importância no contexto da efetivação dos direitos à saúde no Brasil.

Diante da complexidade e da alta especificidade das legislações que regem tanto o sistema público quanto o privado de saúde, os advogados se posicionam como intermediários essenciais na luta pelos direitos dos pacientes, especialmente aqueles que necessitam de tratamentos e medicamentos não disponibilizados rotineiramente ou negados por questões burocráticas ou de custo.

Na esfera do SUS, a atuação jurídica muitas vezes se faz necessária para assegurar o cumprimento do princípio da universalidade e da integralidade do acesso à saúde, previstos na Constituição Federal de 1988 e na Lei nº 8.080/1990, que institui o SUS [9].

Os advogados recorrem a instrumentos legais como mandados de segurança, ações civis públicas e ações de obrigação de fazer para garantir que os pacientes tenham acesso aos tratamentos de que necessitam, fundamentando-se na jurisprudência e na legislação que asseguram o direito à saúde como um direito fundamental.

Defesa do consumidor
No que tange ao sistema de saúde suplementar, a atuação do advogado se dá na defesa dos consumidores contra negativas de cobertura por parte das operadoras de planos de saúde. Utilizando-se do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990)[10] e da Lei dos Planos de Saúde (Lei nº 9.656/1998) [11], os advogados buscam assegurar que as operadoras cumpram com as obrigações contratuais e legais, fornecendo os medicamentos e terapias necessários para o tratamento de seus clientes.

Isso muitas vezes envolve disputas judiciais sobre a interpretação de cláusulas contratuais e a aplicação da legislação pertinente à cobertura de procedimentos e medicamentos de alto custo.

Em ambos os contextos, a atuação do advogado é fundamentada em uma compreensão profunda dos direitos humanos e do direito à saúde, exigindo uma abordagem que combine conhecimento técnico jurídico com sensibilidade social e ética.

Outras frentes
Os advogados, ao defenderem o acesso a medicamentos e terapias de alto custo, não apenas contribuem para a melhoria da qualidade de vida dos pacientes, mas também promovem a justiça social e o respeito aos direitos fundamentais, desempenhando um papel crucial na garantia de um sistema de saúde mais equitativo e acessível a todos os cidadãos.

Um outro exemplo está na desafiadora defesa dos direitos dos pacientes com transtornos mentais, que representa um dos campos mais desafiadores e necessários da prática jurídica, onde a advocacia emerge como um instrumento crucial na garantia de um tratamento humanizado e adequado.

A complexidade inerente à saúde mental exige que os advogados estejam não apenas bem instruídos nas nuances legais, mas também sensíveis às questões éticas e humanas que envolvem o cuidado psiquiátrico e psicológico. Este papel se torna ainda mais relevante diante de um histórico global de marginalização e tratamento inadequado desses pacientes.

Através da atuação jurídica, advogados podem assegurar o cumprimento dos direitos fundamentais dos pacientes, promovendo ações que visem à implementação de políticas de saúde mental baseadas em evidências, ao respeito pela autonomia e à participação ativa dos pacientes em suas trajetórias de cuidado.

A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei nº 13.146/2015) [12] e a Lei Paulo Delgado (Lei nº 10.216/2001) [13], que regulamenta os direitos das pessoas com transtornos mentais, fornecem o arcabouço legal para essa atuação, desafiando os advogados a serem defensores de uma abordagem mais justa e empática no tratamento da saúde mental.

Um caso emblemático que ilustra o papel da advocacia na efetivação dos direitos de saúde é o julgamento dos embargos de divergência em recurso especial de número 1.886.929/SP [14], pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Decidiu por unanimidade que uma operadora de plano de saúde deve custear o tratamento com um medicamento prescrito pelo médico para uso “off-label”, ou seja, fora das previsões da bula.

A decisão enfatiza que, se o medicamento possui registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a recusa da operadora é abusiva, mesmo que tenha sido indicado pelo médico para uso “off-label” ou com caráter experimental. No caso específico, uma beneficiária do plano de saúde pleiteou o custeio do medicamento durante sua hospitalização para tratar complicações de uma doença autoimune.

A operadora argumentou que o medicamento não estava incluído no rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), mas as instâncias anteriores entenderam que o uso “off-label” não impede a cobertura, especialmente em casos sem substituto terapêutico.

Conclusão
A judicialização da saúde, apesar de controversa, tem se mostrado um mecanismo efetivo para a concretização do direito à saúde, destacando a importância das prerrogativas dos advogados neste processo.

Ações diretas de inconstitucionalidade, mandados de segurança e ações civis públicas são exemplos de instrumentos jurídicos utilizados pelos advogados para assegurar a implementação e o cumprimento das normativas de saúde.

Assim, a função do advogado, amparada por suas prerrogativas legais, constitui-se como um pilar fundamental no sistema de garantia de direitos, atuando como um catalisador para a efetivação das políticas públicas de saúde e para a proteção do direito à saúde no Brasil.

Neste cenário, é essencial reconhecer e valorizar a atuação da advocacia como uma função pública, indispensável para a promoção da justiça social e para a construção de um sistema de saúde mais justo e acessível a todos os cidadãos brasileiros.

A atuação do advogado é essencial para garantir os direitos à saúde no Brasil, amparada por prerrogativas legais, como o Estatuto da Advocacia e da OAB. Os advogados desempenham um papel crucial na defesa dos pacientes, incluindo o acesso a medicamentos de alto custo, seja contra o SUS ou o sistema de saúde suplementar.

Além disso, atuam na defesa dos direitos dos pacientes com transtornos mentais, promovendo tratamentos humanizados. Exemplos emblemáticos demonstram a importância do advogado na efetivação desses direitos, contribuindo para um sistema de saúde mais equitativo e acessível.

 


[1] Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm em 02/02/2024

[2] Constituição dos Estados Unidos da América. Arquivo Nacional dos Estados Unidos. Disponível em: http://www.archives.gov. Acesso em: 01/02/2024.

[3] Centers for Medicare & Medicaid Services. “Medicare.” U.S. Department of Health & Human Services. Disponível em: https://www.medicare.gov. Acesso em: 01/01/2024.

[4] Centers for Medicare & Medicaid Services. “Medicaid.” U.S. Department of Health & Human Services. Disponível em: https://www.medicaid.gov. Acesso em: 01/01/2024

[5] Alemanha. Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland (Lei Fundamental da República Federal da Alemanha). Bundesministerium der Justiz und für Verbraucherschutz. Disponível em: https://www.gesetze-im-internet.de/englisch_gg/. Acesso em: 01/01/2024.

[6] Reino Unido. National Health Service (NHS). “About the National Health Service (NHS).” NHS England. Disponível em: https://www.nhs.uk/about-the-nhs/. Acesso em 01/01/2024.

[7] Brasil. Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994. Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Diário Oficial da União. Em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8906.htm. Acesso em 02/02/2024.

[8] Brasil. Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994. Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Diário Oficial da União. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8906.htm . Acesso em: 02/02/2024.

[9] Brasil. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm. Acesso em: 02/02/2024.

[10] Brasil. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm. Acesso em: 02/02/2024.

[11] Brasil. Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998. Dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde. Diário Oficial da União. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9656.htm. Acesso em: 02/02/2024.

[12] Brasil. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/L13146.htm. Acesso em: 01/01/2024.

[13] Brasil. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm. Acesso em: 02/02/2024.

[14] STJ – EREsp: 1886929 SP 2020/0191677-6, Data de Julgamento: 08/06/2022, S2 – 2ª SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 03/08/2022

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