Opinião

Função econômica do contrato imobiliário e a função social da propriedade privada

Autores

  • Emerson Affonso da Costa Moura

    é advogado professor adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) mestre em Direito Constitucional e especialista em Direito Administrativo pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Líder dirigente do Observatório de Direito Administrativo (ODA) da UFRRJ.

  • Takeo Contao Abe

    é pesquisador do Centro de Pesquisa de Jurisdição Constitucional da UFRRJ.

21 de fevereiro de 2024, 15h24

Na teoria do Direito, as mais variadas escolas de pensamento, apesar das divergências, convergem em um ponto comum: a ordem jurídica é voltada à concretização de algumas finalidades, sejam elas comuns ou especiais.

Ainda que na teoria positivista estruturalista o fim geral da ordem coativa — de garantia da própria pacificação social — não exerça o mesmo papel que possui em determinadas teorias sociológicas — nas quais o Direito encontra sua existência e legitimidade no atendimento das funções daquela sociedade politicamente organizada —, é inevitável que o Direito como seu ordenamento normativo seja dirigido teleologicamente ao atendimento de objetivos que precisam ser consolidados no próprio sistema jurídico.

Considerando que o Direito é uma ordem dotada de unidade em que o sistema é estruturado de forma coerente e harmônica, tais finalidades devem ser compatibilizadas ainda que na interpretação jurídica, de modo que a busca pelo atendimento dos bens jurídicos tutelados não possa importar em antinomias normativas ou sacrifícios desmedidos.

Deve se garantir que sejam preservados os fins perseguidos pela ordem jurídica, ainda que naquele caso concreto eles possam se sujeitar a restrições condicionadas a determinados fatores. Afinal, na realização das finalidades jurídicas em uma ordem plural elas não serão absolutas ou plenamente realizadas, mas, igualmente, não podem ser excluídas e tão pouco ignoradas.

Função social
Neste viés, a tão referida função social — da propriedade, dos contratos, da empresa etc. — não deve ser considerada como um fim genérico da ordem jurídica ou uma condicionante ou limitação externa ou extrínseca aos direitos.

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Ao revés, assume o papel de adequar o atendimento dos interesses privados às necessidades coletivas, delimitando o conteúdo do próprio direito — enquanto posição jurídica singular — ao Direito — como ordenação daquelas finalidades da sociedade. Busca excluir dali as posições, ou situações jurídicas, que não se adéquam a tais escolhas fundamentais e, portanto, não são objeto de tutela do próprio sistema normativo enquanto regulador da ordem social.

Tema 982
No julgamento do Recurso Extraordinário 860.631-SP, que veicula o Tema 982 da repercussão geral (“Discussão relativa à constitucionalidade do procedimento de execução extrajudicial nos contratos de mútuo com alienação fiduciária do imóvel, pelo Sistema Financeiro Imobiliário — SFI, conforme previsto na Lei n. 9.514/1997”), o Supremo Tribunal Federal apontou como um dos fundamentos principais para a possibilidade de tal execução extrajudicial a função econômica dos contratos, sem discutir ou mesmo ponderar com outra finalidade sistêmico-jurídica, que é a função social no que tange ao atendimento à moradia.

Já tivemos a oportunidade de sustentar que a função social — seja dos contratos no caso ou mesmo da propriedade — corresponde a um feixe de finalidades que abrange uma dimensão social, econômica, ambiental e cultural, que se ligam a fins distintos das ordens pluralistas democráticas e se consagram nas cartas constitucionais do século 20, como o compromisso estatal de ordenar os sujeitos privados ao regular a ordem social e econômica, para o atendimento do objetivo revolucionário liberal de promoção da igualdade, no nosso caso, em um país de extremos, com a redução das desigualdades e busca por justiça social.

No caso do direito humano fundamental-social à moradia é um equívoco comum considerar que sua realização pelo Estado se limita à adoção de políticas públicas habitacionais para a população de baixa renda, pois, como qualquer direito fundamental, demanda posições negativas e positivas que envolvam a sua proteção e promoção aos titulares dos seus direitos em todo complexo de relações que abranjam o exercício da propriedade com o fim de habitação digna.

Assim, demanda uma regulação efetiva dos poderes públicos sobre relações temporárias — locações e comodatos — e permanentes — como financiamento público e privado de moradia.

No que tange ao caso referido, uma estrita análise da dimensão econômica dos contratos sem controvertê-la com os demais interesses envolvidos, além de forçar um revival do debate sobre a utilização adequada da técnica de ponderação dos interesses envolvidos para solução de hard cases pela corte constitucional com a controvérsia dos princípios, direitos e normas em geral envolvida, nos dificulta a compreensão do processo de tomada de decisão do STF em questões em que haja conflito entre interesses tipicamente econômicos e sociais.

É inexorável que a Corte Constitucional em outros julgados já adotou a título de uma análise da função econômica dos contratos ou da propriedade argumentos de índole preponderantemente consequencialista, vide, por exemplo, no conhecido caso da queima da palha da cana ou na reforma da lei trabalhista com a possibilidade de o empregado ter uma jornada inferior à mínima até então legal e, portanto, vencimentos inferiores ao direito constitucional ao salário mínimo.

O Supremo parece apontar para a utilização da técnica do pragmatismo jurídico, porém, sem trazer na argumentação jurídica — que dota de legitimidade a sua decisão — fundamentação capaz de sustentar as ilações que produz.

A partir de uma historiografia parcial dos precedentes da Lei 9.514/97 — sustenta a corte que é necessário conferir “segurança jurídica aos contratantes e maior estabilidade às relações jurídicas no mercado imobiliário nacional, fatores de influência a políticas governamentais de incentivo à moradia”.

Em nenhum momento é contrastado o fato de que o sistema de habitação nacional de fato corresponde a uma das políticas públicas instituídas para a garantia do direito à moradia, porém, em um modelo no qual os juros arbitrados são os mais elevados do mundo, em um país onde a ociosidade de imóveis já construídos é maior do que a demanda por aqueles que buscam moradia.

Com o advento da referida decisão, ao revés da proteção do direito à moradia, tem-se a possibilidade da garantia fidejussória ser executada extrajudicialmente, o que conduz a um instrumento célere e eficaz, com redução dos riscos para as instituições financeiras, porém, sem garantia durante a judicialização da proteção de sua habitação digna.

Há referência que a tomada de decisão permite a manutenção e proteção do Sistema Financeiro Imobiliário, todavia, sem a ponderação com a função social da propriedade, de modo a determinar a compatibilização sem sacrifícios desmedidos do último em relação ao primeiro.

Conclusão
São em questões em que há um tensionamento com sujeitos capazes de maior influencia e captura do processo democrático majoritário que a promoção dos direitos humanos-fundamentais demanda uma atuação contramajoritária das cortes constitucionais na tutela das minorias.

Em um país marcado por inúmeras assimetrias, em especial, em relação ao acesso à terra e à propriedade, onde a moradia precarizada e a exploração econômica são faces do mesmo fenômeno, a função social da propriedade assume relevo ímpar na correição da ação dos sujeitos privados.

Em decisões judiciais com hard cases, a ponderação adequada se demonstra necessária para garantir segurança jurídica e atendimento aos valores da ordem jurídica.

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