Opinião

Decreto de indulto pode piorar a situação carcerária no Brasil

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

21 de fevereiro de 2024, 6h10

Causou perplexidade  em boa parte dos operadores do Direito que atuam na área de execução penal em nosso país as regras inseridas no Decreto nº 11.846, assinado pelo presidente Lula em 22 de dezembro de 2023.

Elas que previram a concessão de indulto natalino a pessoas condenadas a pena de multa, ainda que não quitada, independentemente da fase executória ou do juízo em que se encontre, aplicada isolada ou cumulativamente com pena privativa de liberdade, desde que não supere o valor mínimo para o ajuizamento de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, estabelecido em ato do ministro de Estado da Fazenda, ou que não tenham capacidade econômica de quitá-la, ainda que supere o referido valor (artigo 2º, X).

A primeira ponderação a ser feita é que a utilização do indulto se volta, historicamente, para o abrandamento das penas privativas de liberdade com o intuito de diminuir o contingente de pessoas reclusas no sistema penitenciário nacional.

Ora, sendo a pena de multa dívida de valor, não passível de conversão em restrição de liberdade em nosso sistema jurídico, é de se perquirir sobre a adequação e cabimento do instituto do indulto em relação às sanções de natureza pecuniária.

Fundamento do decreto
De nossa parte, entendemos, como o fez a ex-procuradora-geral da República Raquel Elias Ferreira Dodge [1], que a Constituição não permite seja o indulto utilizado como meio de abrandar ou anular o dever de reparar o dano causado pelo crime ou de exonerar-se das penas patrimoniais sentenciadas pelo juiz, como um favor a apenados.

O indulto só pode atingir penas corporais, relativas à prisão. Não as penas alternativas, porque estas não ensejam clamores humanitários justificadores da clementia principis.

Spacca

Se ultrapassada tal objeção, é preciso destacar que o decreto em comento trouxe como exclusivo fundamento para a sua edição “a tradição, por ocasião das festividades comemorativas do Natal, de conceder indulto às pessoas condenadas ou submetidas a medida de segurança e de comutar penas de pessoas condenadas”, não mencionando a existência de qualquer tipo de estudo ou motivação outra para o ato.

Ora, em termos financeiros, as multas penais constituem receitas que integram obrigatoriamente o planejamento orçamentário da União, não sendo possível a renúncia a tais valores sem o cumprimento das rigorosas exigências colocadas pela própria Constituição e pelas leis de responsabilidade financeira e fiscal, sob pena de invalidade.

Se é fato que o presidente da República possui razoável margem de discricionariedade para a edição de decretos de indulto, também o é que esse poder não é ilimitado, subordinando-se a mandamentos constitucionais cuja observância pode ser sindicada pelo Poder Judiciário e, entre tais balizas, está o artigo 113 do ADCT, que estabelece que toda proposição normativa ensejadora de renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro [2].

Como compensar as perdas de arrecadação?
Sabe-se que os valores das penas de multa constituem uma das principais receitas do Fundo Penitenciário Nacional [3], que se destina, sobretudo, à construção, reforma, ampliação e aprimoramento de estabelecimentos penais, manutenção dos serviços e realização de investimentos penitenciários, incluindo  a informação e segurança (artigo 2º da Lei Complementar 79/94).

Sendo notórias a fragilidade e deficiência do nosso sistema penitenciário (inclusive dos presídios federais, como demonstrou a recente fuga de condenados em Mossoró), onde cada real de investimento tem potencial para fazer a diferença para melhor, é de se indagar: como serão compensadas as perdas milionárias de arrecadação decorrentes do perdão às penas de multa impostas aos condenados pela prática de crimes ? Qual será o impacto de tal medida na realidade do sistema prisional brasileiro ? Certamente positivo não o será…

O quadro de perplexidade mais se evidencia se levarmos em consideração que o sobredito decreto foi editado apenas três dias após a publicação do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito da ADPF 347 [4], que reconheceu que “há um estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário brasileiro, responsável pela violação massiva de direitos fundamentais dos presos”, impondo a obrigação da União, ante a situação precária das penitenciárias, a não contingenciar verbas do Fundo Penitenciário Nacional!

Em arremate, o precedente inserto no supracitado decreto de indulto constituiu um duro golpe na recente política ministerial construída nacionalmente para dar efetividade à sanção pecuniária criminal e, consequentemente,  aportar mais recursos ao Fundo Penitenciário Nacional, objetivando a melhoria da situação dos detentos em nosso país [5].

Conclusão
O exemplo dado pelo Poder Executivo com as referidas previsões no decreto de indulto em nada contribui para a melhoria da segurança pública no Brasil e, ao revés,  serve de desestímulo ao adimplemento das sanções legitimamente impostas pelo Poder Judiciário, desacreditando o sistema de justiça nacional.

Como consignou, com perspicácia,  o ministro Luiz Roberto Barroso em seu voto na ADI 5.874 / DF [6]:

O indulto tem duas finalidades, como vimos: descongestionar o sistema penitenciário e fins humanitários.
Porém, a pena de multa não produz nenhum impacto sobre o encarceramento. Portanto, aqui, falta causa para justificar o indulto da pena de multa.
E vem o decreto presidencial e diz que está dispensado da multa e, se não tiver pago, também tem direito ao indulto.
A pergunta mais óbvia é: Quem nessa vida vai pagar a pena de multa se basta esperar o final do ano para receber o indulto?

Esperamos  que a resposta a tal disparate seja dada o quanto antes pelas instâncias competentes do nosso país.

 


[1] Petição inicial da ADI 5.874/DF.

[2] Como ponderou monocraticamente o ministro Gilmar Mendes em sede de exame cautelar: “Se considerarmos que a exigência de estimativa de impacto orçamentário e financeiro passa a compor as normas constitucionais relativas ao processo legislativo, caso não seja apresentada a referida estimativa, a legislação aprovada padeceria de vício de inconstitucionalidade formal” (ADPF 662, monocrática, Ministro Gilmar Mendes).

[3] Em consulta ao Portal da Transparência, a título de exemplo, no ano de 2021 foram arrecadados, em benefício do Funpen, R$ 32.055.440,39 de multas – https://portaldatransparencia.gov.br/url/1100b64a – Acesso em 16 de fevereiro de 2024.

[4] ADPF 347, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: LUÍS ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 04-10-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n  DIVULG 18-12-2023  PUBLIC 19-12-2023.

[5] Recomendação CNMP nº 99/2023 –  Recomenda aos ramos e às unidades do Ministério Público a adoção de medidas extrajudiciais e judiciais para a cobrança da pena de multa prevista na alínea “c” do inciso XLVI do art. 5º da Constituição Federal e no art. 49 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); e dá outras providências.

[6] ADI 5874, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Relator(a) p/ Acórdão: ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 09-05-2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-265  DIVULG 04-11-2020  PUBLIC 05-11-2020.

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