Opinião

Lei 14.737/2023 e o direito a acompanhante: por uma interpretação adequada

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20 de fevereiro de 2024, 7h03

A ementa da Lei nº 14.737, de 27 de novembro de 2023, que altera a Lei Orgânica da Saúde, anuncia o seu objetivo: ampliar o direito da mulher de ter acompanhante nos atendimentos realizados em serviços de saúde público e privados”.

Nas discussões, na publicação e na divulgação — oficial e jornalística — da nova lei, só se veem votos de louvor, inexistindo, por ora, maiores discussões quanto a um aspecto potencialmente restritivo, previsto no §4º do artigo 19-J.

Com efeito, houve importantes ampliações ao direito a acompanhante.

Antes, com a redação dada pela Lei nº 11.108/2005, o direito a acompanhante restringia-se ao trabalho de parto, ao parto e ao pós-parto imediato — que, segundo a Portaria nº 2.418/2005 do Ministério da Saúde (MS), abrange o período de até dez dias após o parto.

Com a nova redação, o direito a acompanhante abrange toda ordem de “consultas, exames e procedimentos realizados em unidades de saúde públicas e privadas” (artigo 19-J, caput).

Ampliou-se, ademais, a proteção às mulheres nos casos em que a paciente esteja impossibilitada de realizar a livre indicação de acompanhante (artigo 19-J, §1º) ou o atendimento envolva qualquer tipo de sedação ou rebaixamento do nível de consciência (19-J, §2º e §2º-A).

A determinação de que se mantenha aviso informando sobre o direito a acompanhante, em local visível, já havia sido incluída pela Lei nº 12.895/2013. Andou bem a nova lei ao substituir o termo “hospitais” (espécie) por “unidades de saúde” (gênero), no que ampliou o âmbito de incidência da norma (19-J, §3º).

Restrição
O busílis, conforme adiantado, reside no §4º do artigo 19-J, incluído pela lei em questão. Estabeleceu-se que, em caso “de atendimento realizado em centro cirúrgico ou unidade de terapia intensiva com restrições relacionadas à segurança ou à saúde dos pacientes, devidamente justificadas pelo corpo clínico, somente será admitido acompanhante que seja profissional de saúde”.

Trata-se de uma nova disposição restritiva, antes inexistente, pela qual se impede, em determinadas hipóteses, a livre indicação de acompanhante por parte da mulher.

Diante da disposição restritiva de um direito que já carecia de maior efetividade — sobretudo, mas não só, para as mulheres mais vulnerabilizadas e usuárias do sistema público de saúde —, há que se prevenirem abusos e má interpretações.

A crítica central, a ser posteriormente detalhada, deve ser dirigida à cláusula genérica: “restrições relacionadas à segurança ou à saúde dos pacientes, devidamente justificadas pelo corpo clínico”. A falta de indicação de hipóteses concretas, ainda que de modo exemplificativo, confere uma discricionariedade indesejada ao “corpo clínico”.

Como se sabe, a norma, entre outros objetivos humanitários, visa a coibir violações que possam ocorrer durante “consultas, procedimentos e exames”, que seriam perpetradas, vale dizer, pelo próprio “corpo clínico”.

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Ademais, as próprias instituições de saúde têm utilizado a cláusula para realizar a negativa prévia e genérica de acompanhante, notadamente em procedimentos de saúde, por fundamentos ilegítimos.

Isso porque, no caso de cirurgias e procedimentos mais arriscados, como o parto, o direito a acompanhante de confiança serve para a verificação, inclusive, de possíveis abusos e erros médicos.

Não se cuida de presumir a má-fé. É inegável, entretanto, que o direito da paciente a acompanhante, por vezes, contrapõe-se a um interesse do corpo clínico e do próprio ente público ou privado em se resguardar de possíveis problemas jurídicos.

Violência obstétrica
Vale rememorar que um dos objetivos da previsão do direito a acompanhante, conforme a redação inicial do artigo 19-J, era coibir a violência obstétrica, tema que tem sido enfrentado de forma crescente nas comunidades nacional e internacional.

Basta ver a declaração da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre “prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde”, de 2014. Além disso, o Comitê Cedaw já responsabilizou o Brasil no caso Alyne da Silva Pimentel Teixeira, ocasião em que recomendou o respeito, entre outros, ao direito à informação sobre os procedimentos adotados e ao direito a acompanhamento familiar.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), utilizando o termo “violência obstétrica”, condenou, recentemente, a Argentina (caso Britez Arce) e a Venezuela (caso Balbina Rodriguez Pacheco). No último caso, a vítima relatou que “foi submetida a uma série de procedimentos equivocados e contra sua vontade que levaram ao rompimento do útero e a uma hemorragia interna, além de ter ficado com inúmeras sequelas[1].

Não precisa de tanto, contudo, para a caracterização da violência obstétrica: o tratamento desumanizado, ou qualquer manifestação de abuso psicológico, é suficiente. Veja-se o exemplo, que tomou as manchetes nacionais, de um famoso médico que teria destratado a paciente na presença do seu marido, acompanhante do parto, tendo se tornado réu pela suposta prática de lesão corporal e de violência psicológica contra a mulher [2].

Toma-se a violência obstétrica, pois, como o indicador por excelência da necessidade de acompanhante às mulheres em consultas, exames e procedimentos de qualquer natureza.

E cumpre afirmar: a própria negativa do direito a acompanhante em parto, cuja necessidade se depreende também de aspectos psicológicos e afetivo-emocionais, caracteriza violência obstétrica.

O exemplo da violência obstétrica, portanto, demonstra que é um equívoco atribuir ao corpo clínico ampla discricionariedade para impedir o acompanhamento por pessoa de confiança.

A redação genérica dá azo a interpretações amplas e arbitrárias, que podem, com a restrição indevida ao direito a acompanhante, implicar abusos e violações aos direitos das mulheres.

É dizer: a lei que visa a impedir erros e abusos, ao fim e ao cabo, pode ser utilizada para garantir os erros e os abusos do corpo clínico das instituições públicas e privadas de saúde.

Interpretação adequada da norma
Diante disso, o presente ensaio tem como objetivo contribuir, singelamente, para uma interpretação adequada do artigo 19-J, §4º, da Lei Orgânica da Saúde.

Para tanto, há que se levar a sério todos os elementos constantes no dispositivo legal, que devem ser interpretados restritivamente, em se tratando de cláusula excepcional e limitativa da fruição de direito.

De início, cumpre assentar que o texto legal faz referência a dois tipos de instalações: “centro cirúrgico” e “unidade de terapia intensiva”. Em outras unidades, como nos centros obstétricos ou centros de parto normal, não se permite a restrição ao direito a acompanhante, inexistindo hipótese legal para tanto.

A negativa, aqui, dependeria de outras normas válidas, que prevejam, por exemplo, restrições de circulação em razão de doenças infectocontagiosas.

De mais a mais, não basta que se trate de “centro cirúrgico” ou de “unidade de terapia intensiva”. Deve-se verificar, caso a caso, “restrições relacionadas à segurança ou à saúde dos pacientes, devidamente justificadas pelo corpo clínico”.

Fica excluída, de pronto, a possibilidade de negativa genérica e anterior, por parte de instituições públicas e privadas, do direito a acompanhante. Depreende-se que a justificativa há de ser individualizada e realizada, exclusivamente, pelo corpo clínico.

A título de exemplo, as secretarias de saúde ou as direções das unidades de saúde não têm a atribuição de, por meio de seus representantes, impedir o exercício do direito, tampouco de maneira abstrata ou genérica.

É exigível que a restrição, que deve ser devidamente justificada pelo corpo clínico, seja reduzida a termo, em que constem os motivos técnico-científicos relacionados à saúde ou à segurança dos pacientes, com a subscrição dos profissionais de saúde responsáveis.

A exigência de que a negativa dada pelo corpo clínico seja por escrito e fundamentada é imprescindível para possibilitar posterior controle. Assim, os declarados motivos atinentes à saúde ou à segurança poderão ser contestados pela análise de um terceiro profissional de saúde.

Em eventual ação judicial de reparação de danos, por exemplo, as justificativas do corpo clínico poderão ser analisadas e infirmadas por um médico perito.

As “restrições relacionadas à segurança ou à saúde dos pacientes”, com efeito, devem ser postas à prova. É um conceito indeterminado e que enseja uma análise técnica e especializada.

Também por isso, espera-se uma regulamentação abalizada por parte do MS, a evitar arbitrariedades interpretativas em desfavor das pacientes.

Por ora, a Nota Informativa nº 1/2023-DGCI/SAPS/MS dá-nos um direcionamento importante, ao asseverar que “a excepcionalidade descrita no §4º, se aplica às situações de risco à saúde, como doenças infectocontagiosas (a exemplo da Covid-19) e outras situações de comprometimento imunológico que requeiram restrição de contato e/ou isolamento”.

Vale apontar a importante noção de “excepcionalidade” bem destacada pela nota — afirmada e reafirmada no presente ensaio. Dá-se, ademais, um exemplo do que, razoavelmente, restringiria o direito a acompanhante: a necessidade de isolamento em razão de doenças infectocontagiosas, como a Covid-19.

Cumpre esclarecer que nem todo caso de Covid-19 enseja, automaticamente, a negativa do direito a acompanhante. Veja-se, nesse sentido, a Nota Técnica nº 9/2020-COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS, que estabelece, nos pontos 2.3 e 2.4, as permissões e as vedações em caso de paciente ou acompanhante testado positivo.

Aquela nota informativa, pois, deve ser interpretada em conjunto com as normas já existentes sobre o tema.

A par de tal direcionamento, pode-se indicar uma situação que, juridicamente, não é motivo apto para negar o direito a acompanhante: a insuficiência das instalações. Principalmente no sistema público de saúde, é uma justificativa que aparece com frequência.

Com efeito, há um dever em manter instalações adequadas, cumprindo-se as normas técnicas atinentes, a exemplo da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 50 da Anvisa (2002) e da RDC nº 36 da Anvisa (2008) — esta última para serviços de atenção obstétrica e neonatal.

Afinal, como estabelece o artigo 5º da RDC nº 50 da Anvisa, a inobservância das normas técnicas “constitui infração à legislação sanitária federal”.

Em tais normas, que se aplicam a instituições públicas e privadas, existem disposições acerca da dimensão e de outras características das instalações, além do que, especificamente, fazem referência à necessidade de permissão de acompanhante de livre escolha da mulher.

Especialmente quanto ao parto, vale destacar que não mais se consideram adequadas as salas coletivas de parto e pré-parto, que podem dificultar o exercício do direito a acompanhante por motivos de espaço e privacidade.

Segundo a RDC nº 36 da Anvisa, norma derrogatória da RDC nº 50 da Anvisa, o ambiente apropriado é o quarto PPP (pré parto, parto e pós parto), que é individualizado e garante a privacidade da gestante/parturiente/puérpera, bem como cuja configuração comporta acompanhante.

Desse modo, a insuficiência das instalações, eventualmente utilizada como justificativa pelo corpo clínico, não constitui motivo legítimo para a negativa do direito a acompanhante, abrindo espaço para a discussão acerca da responsabilidade civil da instituição de saúde.

Ao final, a redação do §4º dispõe que, mesmo nas hipóteses de restrição, ainda assim, será admitido acompanhante que seja profissional de saúde. Isto é, a despeito de justificativa legítima do corpo clínico, na forma legalmente posta, resta a possibilidade de um acompanhante profissional de saúde.

Não se confunda: em todo caso, a paciente terá uma pessoa a acompanhar, ainda que, no limite, por indicação da própria unidade de saúde, nos termos do §2º (“[…] caso a pessoa não indique acompanhante, a unidade de saúde responsável pelo atendimento indicará pessoa para acompanhá-la, preferencialmente profissional de saúde do sexo feminino […]”).

A parte final do §4º vai além e constitui uma hipótese preferencial e anterior à do §2º: a paciente, nos casos excepcionais restritivos, poderá indicar um profissional de saúde à sua livre escolha, a exemplo de um parente médico ou enfermeiro.

Embora seja relevante a presença de uma profissional de saúde do sexo feminino, na forma do §2º, os problemas práticos apresentados no início deste ensaio remanescem: a presença de uma enfermeira indicada pela unidade — provavelmente subordinada à instituição de saúde ou conhecida do corpo clínico — pode não ser suficiente para coibir e reclamar as violações que venham a ocorrer durante o procedimento médico, tampouco para conferir um adequado apoio de ordem psicológica ou afetivo-emocional.

Daí a importância de, nos casos excepcionalíssimos de restrição, ainda assim, a paciente indique um profissional de saúde de sua confiança para o acompanhamento de consulta, exame ou procedimento.

Conclusão
Diante do exposto, fica evidente a necessidade de uma análise rigorosa de todos esses elementos trazidos na cláusula de exceção, obstando a potência restritiva do §4º do artigo 19-J.

Sem se estabelecerem balizas rígidas para interpretação do texto legal, a nova lei, a pretexto de ampliar, reduziria de modo relevante a abrangência do direito a acompanhante para gestantes, parturientes e puérperas: daria com uma mão para tirar com a outra.

Afinal, o direito a acompanhante, além de um direito por si só, é imprescindível para evitar a violação a diversos outros direitos relacionados: saúde, integridade física, integridade psicológica, liberdade sexual, planejamento familiar, honra, informação etc.

A cultura de preservação dos direitos das mulheres há de acompanhar os avanços normativos, superando-se o descompasso entre norma e realidade, no esforço sisifiano em direção aos objetivos fundamentais da República — por uma redução de danos ante as contradições insuperáveis do nosso sistema.

 


[1] MARTINS, Elisa. Corte IDH condena Venezuela por violação de direitos em caso de violência obstétrica: Balbina Rodríguez Pacheco teve sequelas físicas e psicológicas após cesariana há 25 anos. JOTA, 04 de dezembro de 2023. Disponível em: https://www.jota.info/coberturas-especiais/direitos-humanos/corte-idh-condena-venezuela-por-violacao-de-direitos-em-caso-de-violencia-obstetrica-04122023

[2] RODRIGUES, Rodrigo. ‘Olha aqui, toda arrebentada’: influencer Shantal diz que foi vítima de violência obstétrica de médico durante parto em SP. Portal G1, 12 de dezembro de 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/12/12/olha-aqui-toda-arrebentada-influencer-shantal-diz-que-foi-vitima-de-violencia-obstetrica-de-medico-durante-parto-em-sp.ghtml

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