Opinião

'Coisa julgada' e sua 'eficácia preclusiva': duas faces de uma mesma moeda

Autor

  • Rodrigo Nery

    é doutorando e mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) (com ênfase em Direito Processual Civil) pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Baiana de Direito pesquisador do Grupo de Pesquisa CNPq/UnB Processo Civil Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC) integrante e orador da primeira equipe da UnB na 1ª Competição Brasileira de Processo (CBP) e advogado.

19 de fevereiro de 2024, 17h26

Por muitos anos a doutrina brasileira distingue a “coisa julgada” da “eficácia preclusiva da coisa julgada”.

Enquanto a coisa julgada estaria restrita à questão objeto de decisão, a eficácia preclusiva da coisa julgada, que seria um fenômeno distinto, atingiria, nos termos do artigo 508 do CPC, “todas as alegações e as defesas que a parte poderia opor tanto ao acolhimento quanto à rejeição do pedido”.

O artigo 508 não utiliza a expressão “eficácia preclusiva da coisa julgada”, mas a doutrina assim rotula o fenômeno instituído por esse dispositivo [1].

Em recente livro que publiquei, intitulado “Repensando a coisa julgada e os motivos da decisão” [2], assim como em posterior artigo publicado na Revista de Processo [3], defendi a necessidade de superação da distinção entre “eficácia preclusiva da coisa julgada” e a própria “coisa julgada”, no Brasil [4].

Considerando as dimensões do relevante espaço deste veículo digital, farei uma exposição resumida das razões que sustentam esse meu posicionamento, com vistas a propiciar reflexões.

A primeira delas reside na constatação de que a distinção entre “coisa julgada” e “eficácia preclusiva da coisa julgada”, no Brasil, encontra-se numa tentativa de se justificar a necessidade de se tornar preclusos extraprocessualmente possíveis argumentos que poderiam ter sido arguidos e não foram, no transcorrer da demanda.

Por causa uma da histórica associação da coisa julgada ao objeto do julgamento, à res depois de ter sido iudicata, conforme lecionava Chiovenda [5], parte da doutrina do CPC de 1939 já defendia que não poderia se falar de coisa julgada sobre argumentos que não foram analisados no julgamento [6].

Dizia-se que, ontologicamente, isso se configuraria como um julgamento implícito, conclusão essa que não seria a melhor escolha para os juristas daquela época (e nem para os da época atual).

Entretanto, independente de ser ou não considerada como um julgamento implícito, a coisa julgada necessitava da “eficácia preclusiva” para se manter. Se os argumentos que fundamentaram a decisão pudessem ser questionados com base em outros argumentos que não foram alegados no processo, a coisa julgada perderia toda a sua força e não cumpriria o seu papel de estabilizar as discussões judiciais.

Natureza “panprocessual”
Em vista disso, era importante então a mudança da lente que analisava o fenômeno. Foi o que fez Machado Guimarães, o autor que tornou célebre a concepção da eficácia preclusiva da coisa julgada como um fenômeno de natureza “panprocessual”. [7]

Ao invés de Machado Guimarães considerar que teria havido julgamento implícito ou coisa julgada, nas hipóteses de preclusão de argumentos não alegados no processo, esse autor considerou que essa preclusão se daria em razão de um conceito por ele rotulado de “eficácia preclusiva da coisa julgada” [8].

É de se destacar que Machado Guimarães adotou um conceito de eficácia preclusiva já existente, aplicável também a outros fenômenos processuais e defendeu a projeção dessa eficácia para fora do processo a fazer com que ela tivesse uma natureza “panprocessual” [9].

A visão de Machado Guimarães tornou-se conhecida por ter sido aplicada, com algumas alterações, por Barbosa Moreira, o seu mais célebre discípulo [10].

Essa explicação histórica que foi feita tem a finalidade de evidenciar o receio da doutrina daquele tempo ao não chamar de “coisa julgada” a “eficácia preclusiva da coisa julgada”: entendiam que, se fosse rotulada como coisa julgada, a preclusão dos argumentos não alegados no processo se configuraria como um julgamento implícito, isso porque, naquele período (e ainda hoje há autores que defendem, de forma fundamentada, claro, posicionamento semelhante) havia uma confusão ontológica entre coisa julgada e a própria decisão [11].

Outro motivo para a explicação acima reside no fato de que o autor da ideia de eficácia preclusiva “panprocessual” era também um teórico que tinha uma noção de coisa julgada que oscilava entre o direito material e o direito processual. Para saber mais sobre essa noção, basta a leitura do célebre artigo desse jurista (Machado Guimarães), aqui já citado em rodapé: “Preclusão, coisa julgada, efeito preclusivo” [12].

Distinção da coisa julgada não faz mais sentido
Nesse cenário, percebe-se então que o conceito de “eficácia preclusiva da coisa julgada” surgiu de um contexto teórico bem diferente do que existe atualmente, também tendo relação com uma noção de coisa julgada completamente diferente da noção adjetiva (processual) que temos hoje [13].

Para se ter uma simples ideia, o próprio Barbosa Moreira tinha uma visão de coisa julgada distinta da visão de Machado Guimarães [14] e, mesmo assim, aplicou a concepção desse último a respeito da eficácia preclusiva da coisa julgada, tornando-a ainda mais popular na doutrina nacional.

Nessa toada, se antes fazia sentido justificar a distinção entre “coisa julgada” e “eficácia preclusiva da coisa julgada” com o temor de se dizer que, caso fossem consideradas como um fenômeno só, haveria res iudicata (e, na visão daquela época, julgamento implícito) daquilo que não foi decidido, hoje, com o avanço teórico das visões sobre o conceito, esse receio não mais se justifica.

Portanto, não faz mais sentido dizer que a preclusão da possibilidade de alegar argumentos que poderiam ter sido arguidos e não foram se daria em razão de outro fenômeno, que não a própria coisa julgada.

A coisa julgada torna indiscutível toda a decisão para extinguir a possibilidade de rediscussão da questão decidida, seja com base nos argumentos trazidos nos autos, seja com base em argumentos que poderiam ter sido trazidos mas não foram (artigo 508 do CPC).

Fracionar conceitualmente o fenômeno é tornar a sua compreensão mais complexa, isso sem que subsistam razões válidas para tanto, tendo em vista a marcante dependência que a “coisa julgada” tem com a “eficácia preclusiva da coisa julgada”. Sem a eficácia preclusiva, a coisa julgada não atinge a sua finalidade.

E para finalizar: quando defendo que a coisa julgada torna indiscutível toda a decisão, refiro-me à indiscutibilidade para manter incólume a questão decidida na decisão.

Com a coisa julgada, toda a decisão se torna indiscutível no que diz respeito à manutenção da indiscutibilidade da questão que foi decidida.

Quando se fala em indiscutibilidade da questão que foi decidida, em razão da coisa julgada, não é possível a alteração de nenhum elemento contido na decisão, quando a modificação desse elemento puder alterar a decisão que houve sobre a questão [15].


[1] Por todos: BONATO, Giovanni. Algumas considerações sobre coisa julgada no novo código de processo civil brasileiro: limites objetivos e eficácia preclusiva. In: DIDIER JR, F.; CABRAL, A. P. (coord.). Coisa julgada e outras estabilidades processuais. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 200; DIDIER JR.; F. BRAGA, P.S; OLIVEIRA, R.A. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. v. 2. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 549.

[2] NERY, Rodrigo. Repensando a coisa julgada e os motivos da decisão. Londrina, PR: Thoth, 2022.

[3] Volume 333, novembro de 2022.

[4] NERY, Rodrigo. Repensando a coisa julgada e os motivos da decisão. Londrina, PR: Thoth, 2022, p. 213-219.

[5] CHIOVENDA, Giuseppe. Cosa giudicata e preclusione. Saggi di diritto processuale civile (1894-1937). Volume terzo. Milano: Giuffrè editore, 1993, p. 234-235.

[6] Por exemplo: GUIMARÃES, Luiz Machado. Preclusão, coisa julgada, efeito preclusivo. In:Estudos de direito processual civil. Rio de Janeiro-São Paulo: Jurídica e Universitária, 1969, p. 21.

[7] O autor utiliza a palavra “panprocessual”, de fato. Sobre o tema, cf. GUIMARÃES, Luiz Machado. Preclusão, coisa julgada, efeito preclusivo. In:Estudos de direito processual civil. Rio de Janeiro-São Paulo: Jurídica e Universitária, 1969, p. 15

[8] Idem.

[9] Idem.

[10] MOREIRA, José Carlos Barbosa. A eficácia preclusiva da coisa julgada material no sistema do processo civil brasileiro. In:Temas de Direito Processual, 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1988, passim

[11] Sobre o tema, Cf. NERY, Rodrigo. Repensando a coisa julgada e os motivos da decisão. Londrina, PR: Thoth, 2022, p. 218.

[12] GUIMARÃES, Luiz Machado. Preclusão, coisa julgada, efeito preclusivo. In:Estudos de direito processual civil. Rio de Janeiro-São Paulo: Jurídica e Universitária, 1969.

[13] Sobre as noções mais recentes, no Brasil, a respeito da coisa julgada, cf. NERY, Rodrigo. Repensando a coisa julgada e os motivos da decisão. Londrina, PR: Thoth, 2022, p. 109-148.

[14] Sobre o tema, cf. NERY, Rodrigo. Repensando a coisa julgada e os motivos da decisão. Londrina, PR: Thoth, 2022, p. 218.

[15] Sobre o tema, cf. NERY, Rodrigo. Repensando a coisa julgada e os motivos da decisão. Londrina, PR: Thoth, 2022, p. 242.

Autores

  • é doutorando e mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) com ênfase em Direito Processual Civil, pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Baiana de Direito, membro do Grupo de Pesquisa Processo Civil, Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos (CNPq FD/UnB) e da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC).

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