Opinião

Supremo reage de forma eficaz à 'mitridização' da democracia

Autor

  • Thiago Aguiar de Pádua

    é doutor em Direito professor da Faculdade de Direito da UnB (Universidade de Brasília) autor dos livros O Common Law Tropical: o Caso Marbury v. Madison Brasileiro (Ed. D’Plácido 2023 no prelo); Ao vencedor o Supremo: o STF como Partido Político 'sui generis' (Ed. D’Plácido 2021); A Balzaquiana Constituição (Trampolim Jur. 2018) ex-assessor de ministro do STF e advogado em Brasília e Santa Catarina.

17 de fevereiro de 2024, 14h28

A palavra mitridização, bem me recordo, a ouvi pela primeira vez num texto de Agripino Grieco, temido crítico literário dos anos 1950, justificando já se encontrar ‘vacinado’ ou imunizado contra qualquer tipo de veneno, a partir da prevenção feita pelo editor José Olímpio sobre os riscos de se fazer crítica sobre um escritor canônico como Machado de Assis  (Grieco, 1969, p. 9).

A palavra remonta ao antigo rei turco Mitrídates 6º, que entre 132 e 63 (a. C) governou o Reino do Ponto, antigo Estado helenístico localizado ao norte da Península da Anatólia (atual Turquia). Há uma variante de versões sobre o fato que vincula seu nome à expressão contemporânea.

Alguns relatos dizem que o rei, ainda adolescente, teria presenciado o assassinato de seu pai (de mesmo nome) por envenenamento durante um banquete, motivando sua prática posterior de tomar pequenas doses diárias de veneno até seu organismo se fortalecer contra doses letais do próprio veneno.

O rei Mitrídates comandou exércitos em batalhas memoráveis e, de acordo com lendas frequentemente recordadas, foi um dos maiores inimigos do império romano.

Mas após sua derrota para Pompeu, Mitríades teria feito uma tentativa de suicídio, claro, por envenenamento, mas sem qualquer efeito em razão de sua imunidade, motivando a ordem a um de seus soldados para que tirasse sua vida pelo corte da espada. A narrativa está inserida na peça de Jean Racine (Mitrídates, de 1673), bem como na ópera de Mozart (Mitridate, rei de Ponto, de 1770).

Assim, mitridizar (ou mitridização) se refere ao processo através do qual se realiza a progressiva sensibilização do organismo por ampliativas doses de veneno até o desenvolvimento de anticorpos específicos para o veneno utilizado, tendo por consequência a imunidade, inclusive para doses elevadas. Expressão apropriada pela linguagem científica.

Momento histórico
O atual momento histórico nos permite observar que as instituições brasileiras, notadamente o Supremo Tribunal Federal, têm sido eficazes em reagir à reiterada mitridização de nossa democracia constitucional, vale dizer, num país acostumado a golpes de estado civil-militares camuflados de eufemismos de todo tipo, como regime, revolução e democracia relativa (1889, 1930, 1937, 1945, 1955, 1964) ou tentativas de golpe (1891-4, 1922, 1932, 1935, 1938, 1956, e mais recentemente em 2022-23).

Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Observado o golpe como “veneno” de dose potencialmente letal para a democracia constitucional, a metáfora nos permite vislumbrar que isso também permite a reação orgânica.

Não se pode julgar a eficácia de um golpe pela (ausência de) inteligência de seus participantes. Recordemos que o famoso livro de Curzio Malaparte sobre as “técnicas do golpe de Estado” classificou Hitler de “um golpista fracassado” após o Putsch da Cervejaria de 1923, antes de fazer a advertência de que a combinação  entre o uso da força e eventuais concessões e astúcias não passam de “semi-ditaduras”, sem que seja possível legitimá-las em caso de êxito (1928, p. 159).

Todos os golpes (consumados ou tentados) permitem ao país o risco de sobreviver, por óbvio, contra a vontade dos golpistas. Por isso a legislação precisa punir a tentativa de maneira severa, pois uma vez consumada a intentona golpista não haverá democracia constitucional que permita o gozo de direitos, e nem se pode falar em anistia, pois sua mecânica esteve presente ao longo de nossa história republicana como ferramenta que jamais serviu ao propósito da pacificação, mas apenas ao encorajamento de renovadas tentativas que explicam um contexto tão profundamente golpista entre nós.

Componentes grotescos da tentativa de golpe de Estado
O cenário sobre o qual a história brasileira terá de lidar envolve um passado golpista bastardo e inglório, que possui componentes caricatos e grotescos, nem todos ligados aos mesmos personagens, mas unidos por um evidente e mesmo propósito, que passou perto de invadir o Supremo no sequestro cívico do inesquecível 7 de setembro dos últimos três anos de governo (2020-23), com ameaças perenes ao sistema eleitoral e à cúpula do poder judiciário.

Isso sem contar peças surreais, como “minutas de golpe” com proposta de estado de defesa na sede do TSE em poder do ex-ministro da justiça do governo anterior, junto a outra minuta contendo proposta de estado de sítio com decretação de GLO, envolvendo manipulação populacional em frente aos quartéis, depredação da sede da polícia federal em Brasília na data da diplomação do presidente eleito, tentativa de explosão terrorista do aeroporto de Brasília antes da posse do novo chefe do executivo, fuga de avião do ex-chefe de estado nos últimos dias de mandato com destino a Miami, de maneira não ortodoxa, poucos dias antes da depredação brutal das sedes dos 3 poderes no dia 8 de janeiro, e sua volta após o “escândalo das joias” que poderia ensejar pedido de prisão do ex-chefe de estado no exterior.

Não se esquecerá a instrumentalização da Abin para, mediante uso indevido das instituições, espionar inimigos e mesmo aliados, com a absurda monitoração de juízes da Suprema Corte e até do presidente do Legislativo com intenção de aprisiona-los após o golpe.

Em reposta aos que defendem tais atos, dizendo que não se realiza golpe de estado com “velhinhos” (em referência aos acampados nos quartéis) e “papel” (de maneira a relativizar as minutas de golpe), só podemos recordar que a métrica das tentativas de golpe e dos atos de conspiração e insurreição preparatórios de tentativa punível não é a altura dos amantes do saber e do conhecimento, e nem indica QI acima da média, antes o contrário, mas também poderíamos dizer que muitas vezes a sorte, e também o acaso, permitem o livramento dos anos de chumbo.

Os atos golpistas equivalem, como dito, a mitridização da democracia constitucional que vem sobrevivendo e se fortalecendo, mas não morreu e nem morrerá desta vez! Como na canção de Belchior, “Sujeito de sorte”: “Ano passado eu morri; mas esse ano eu não morro”. Assim estão dizendo as instituições brasileiras.

 

Referências
Grieco, Agripino. Viagem em torno a Machado de Assis. São Paulo: Martins, 1969.

Malaparte, Curzio. Técnica del Golpe de Estado. México DF: Editora Latino Americana, 1928.

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