Opinião

"Lesa pátria" e os desafios na defesa do Estado Democrático

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1 de fevereiro de 2024, 15h14

Passado pouco mais de um ano desde o evento dos criminosos ataques à capital federal em janeiro de 2023, ainda acompanhamos os inúmeros desdobramentos das investigações e dos processos no âmbito da assim chamada “operação lesa-pátria”.

Claro que a justiça não é, muito menos deveria ser, razão de entusiasmo ou entretenimento, porém, como já nos alertava Guy Debord, é preciso enfrentar a realidade de que operações policiais e processos de grande repercussão tenham se convertido também em algum tipo incomum de espetáculo e fonte de abastecimento da opinião pública, sempre ávida por novidades.

Entre tantas outras tragédias noticiadas nos jornais e redes, espremidas entre relatos de guerras, catástrofes e outros eventos, a sensação que fica, porém, é a de que mesmo as notícias mais impactantes relacionadas ao 8 de janeiro e seus desdobramentos já não são mais capazes de atrair a mesma atenção ou entusiasmo dos espectadores.

Momento é crucial
Contudo, fica o alerta: é exatamente quando uma grande operação sai das primeiras páginas, quando entra em seu modo “automático” é que devemos permanecer atentos ao que acontece em seu interior e nos bastidores, já que seguirá sem muitos observadores atentos seu inevitável curso.

Toda ação um dia chega ao fim e, embora seja impossível estimar o tamanho dessa operação ou o que dela ainda virá, certo é que o Judiciário, no caso o Supremo Tribunal Federal, PGR, PF e tantos outros órgãos envolvidos, não dão sinais de querer que ela esmoreça. No que têm toda razão.

Por mais que os atos mereçam resposta e exemplar punição — afinal, não se trata apenas de patrimônio público vandalizado, mas de verdadeira “intentona” golpista — necessário se faz acompanharmos atentos e diligentes a condução do caso e a resposta estatal.

Estamos, sem dúvida, diante de um momento crucial para o Estado Brasileiro, afinal, pode-se dizer que a condução (e conclusão) dessa operação, não coloca à prova apenas nossas instituições democráticas, mas nossa própria democracia.

Historicamente, durante nossos longos períodos autoritários, o país contou com uma típica legislação de exceção, quase sempre travestida sob a famigerada concepção de segurança nacional, como na lei de 1935 do Estado Novo ou com Decreto-Lei nº 898 de 1969 editado durante os anos de chumbo do regime militar.

Instrumentos de força e censura
Ocorre que tais legislações, sem qualquer vocação ou inclinação democrática, sempre trabalharam em favor dos golpes que as gestaram e dos regimes autoritários que as conceberam, utilizadas como poderosos instrumentos de força, controle e até censura.

Nos anos pós-redemocratização, sob o manto da Constituição de 1988, o antigo espírito de exceção, oculto sob a forma da Lei nº 7.170/83 e ultrapassada ideia de segurança nacional, continuava pairando como um velho fantasma, perigoso, porém incapaz de assombrar nossa jovem e audaciosa democracia.

Fato, porém, é que o Estado de Direito convive com a sombra permanente do Estado de exceção. Essa é uma lição deixada pela história e uma advertência da ciência política moderna que, infelizmente, ainda parece insuperável.

Eis que episódios recentes, ainda anteriores aos eventos de 8/1/2023 fizeram então acordar a velha LSN da sepultura, na verdade, foi invocada, conjurada, e por quem menos se deveria esperar: nossa própria corte constitucional.

Em um arroubo de lucidez e raro timing legislativo, o Congresso editou e aprovou, em tempo quase recorde, uma nova legislação, dessa vez, não mais sob o espectro da ultrapassada e assombrosa doutrina da segurança nacional, mas sob égide da democracia.

Falo aqui da Lei nº 14.197, de 1º de setembro de 2021 a qual incluiu no nosso Código Penal um novo título dedicado aos crimes contra o Estado Democrático de Direito, além de revogar expressamente a antiga, e por várias vezes repaginada, Lei de Segurança Nacional.

Deixando aqui de lado o fato curioso — e no mínimo irônico — de que tal legislação democrática foi incluída em um Código Penal de 1940, concebido sob um regime autoritário e ainda vigente apesar de algumas reformas, tudo isso nos faz retomar o argumento anteriormente posto, o de que estamos em um momento definidor e crucial.

Se golpes, tentados ou consumados, são eventos infelizmente comuns em nossa conturbada história política, dessa vez contamos um arcabouço legal novo e próprio em defesa do valor Estado Democrático de Direito e não mais “segurança nacional”. A alguns pode parecer preciosismo teórico, mas a verdade é que se trata de uma verdadeira e importante reorientação de princípios.

Reação a golpes e ataques antidemocráticos
Contudo, fica a questão prática: como democracias devem agir e reagir a tentativas golpes e investidas antidemocráticas?

Sem querer adentrar na análise aprofundada dos tipos penais incluídos pela reforma legislativa, que incluiu os artigos 359-I a 359 – T ao Código Penal, temos aqui algumas figuras importantes que incluem desde atentados à soberania, investidas contra o regular funcionamento das instituições — como é o caso da tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito (359-L) e da tentativa de golpe de Estado (359-M) — e até a defesa do próprio processo eleitoral, mecanismo central de nossa democracia.

Enfrentar um projeto de golpe e tentativa de ruptura institucional sob um regime democrático — ainda que em inegável processo de consolidação —, mais que um desafio, é uma ocorrência de evidente ineditismo na história brasileira.

Assim é que, colocados, todos nós, diante de um evento aterrorizante, um acontecimento tão concreto quanto absurdo, de milhares de pessoas envolvidas, direta e indiretamente, com uma grotesca tentativa de golpe ou, no mínimo, um gravíssimo ataque às nossas instituições e ao que representam, como reagirão as bravas e sobreviventes instituições brasileiras?

Especialmente do ponto de vista do Direito Penal, fica aqui a questão: como identificarmos a conduta e delimitarmos a participação e responsabilidade de cada um dos envolvidos. Trata-se de uma tarefa difícil, não apenas de vinculação de um sujeito ao resultado, mas de identificação de nexo causal, dolo e efetiva participação ou contribuição aos eventos.

Resta inegável que tal tarefa — da investigação ao julgamento — é um esforço descomunal e grandioso. Mais do que isso, não há dúvidas de que a apuração e individualização de condutas e da medida de reponsabilidade de cada um dos evolvidos — presentes ou não na Praça dos Três Poderes — é uma tarefa bastante difícil. Difícil, porém indispensável.

Ora, a dificuldade e os desafios de uma operação dessa grandeza não podem levar ao abandono das fórmulas legais e das regras procedimentais sob o risco de repetirmos tristes fatos recentes de nossa história jurídica. O propósito de fazer justiça não pode se converter em um desejo de vingança institucional levando a investigações atropeladas, acusações genéricas, imputações descuidadas e processos intentados e conduzidos de forma açodada.

Defesa das instituições
O Estado, e mais especialmente o Poder Judiciário, imbuído, neste momento da história, da missão de defender as instituições e de passar a limpo os tristes eventos ocorridos, deve pautar-se pela estrita observância da lei, dos postulados e princípios que norteiam uma ordem jurídico-democrática.

Assim, em que pese a necessária continuação da operação e o avanço das investigações em suas múltiplas frentes e inquéritos, importante que toda e qualquer medida estatal — da decretação de medidas de natureza cautelar ao julgamento dos réus — sejam tomadas com o máximo cuidado a fim de evitar generalizações, desmedidas e, principalmente, eventuais e possíveis excessos ou abuso na condução do procedimento, o que, sob um Estado de direito e uma ordem democrática não pode ser tolerado.

Estamos, por assim dizer, “estreando” uma legislação totalmente nova e novos tipos penais. Esta é a primeira vez que os assim chamados crimes contra o Estado Democrático de Direito são aplicados na prática e seja lá o que for feito deles, estamos a fazer história, definir diretrizes e balizas — inclusive jurídicas — para o futuro.

Obviamente que todos desejamos nunca mais experimentarmos tais eventos, nem mesmo precisarmos aplicar tais artigos. Contudo, a efetividade desta lei depende não apenas da aplicação de seus dispositivos, mas, da observância dos valores e princípios de uma ordem jurídica democrática. Que o façamos, portanto, sob as garantias e balizas da Constituição de 1988, do Estado Democrático de direito e do devido processo, sob pena de, mais uma vez, darmos tom e contorno de exceção àquilo que em tese, deveria ser um mecanismo de defesa.

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