Opinião

'Reserva de crédito' pode ser aceita em garantia do juízo para opor embargos à execução fiscal

Autor

  • Cláudio Tessari

    é advogado tributarista doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul mestre em Direito pelo Centro Universitário Ritter dos Reis especialista em Gestão de Tributos e Planejamento Tributário Estratégico pela PUC-RS sócio do Instituto de Estudos Tributários sócio do Instituto Brasileiro de Direito Processual membro da Comissão Especial de Direito Tributário da OAB-RS e autor do livro Holdings: Planejamento Sucessório Gestão Patrimonial e Tributária.

16 de fevereiro de 2024, 20h45

De acordo com as disposições do artigo 49 da Lei 11.101/2005, estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos, sendo daí excluídos os créditos tributários, na medida em que não há tributo sem lei que o institua e, em decorrência, não há exclusão tributária sem obediência à legalidade (artigo 150, I, da CF c/c 97, do CTN).

No mesmo sentido são as disposições constantes dos artigos 187, do CTN e 29, da Lei nº 6.830/1980 ao determinarem, respectivamente, que “a cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento” e que “a cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, concordata, liquidação, inventário ou arrolamento”.

Por tais razões é que de acordo com a legislação de regência da matéria não há possibilidade de:

  • concessão de recuperação judicial sem apresentação de certidão negativa de débito tributário (CND) ou certidão positiva com efeitos de negativa (CPDEN) (artigo 57, da Lei 11.101/2005);
  • suspensão da prática de atos constritivos em relação à empresa em recuperação judicial, em sede ação de execução fiscal (artigo 6º, § 7º, da Lei 11.101/2005, antes da sua revogação expressa perpetrada pela Lei 14.112/2020).

Mas, diante da afetação do Tema Repetitivo 987 pelo Superior Tribunal de Justiça, ou seja, desde 27 de fevereiro de 2018, estavam suspensas as práticas de atos constritivos no bojo de execuções fiscais de créditos tributários movidas contra empresas em recuperação judicial.

Contudo, o Superior Tribunal de Justiça, 1ª Seção, por unanimidade votos, deferiu a remoção da submissão dos recursos especiais 1.694.261/SP, 1.694.316/SP, 1.760.907/RJ, 1.757.145/RJ, 1.768.324/RJ e 1.765.854/RJ ao regime dos recursos repetitivos, com fulcro nas disposições constantes do artigo 256-O, § 5º, do seu regimento interno[1], que tratavam da questão referente à “possibilidade da prática de atos constritivos, em face de empresa em recuperação judicial, em sede de execução fiscal de dívida tributária e não tributária”, razão pela qual se cancelou “o Tema Repetitivo 987, nos termos do voto do ministro relator Mauro Campbell Marques” [2] em relação ao qual se faz referência ao seguinte excerto:

Na verdade, cabe ao juízo da recuperação judicial verificar a viabilidade da constrição efetuada em sede de execução fiscal, observando as regras do pedido de cooperação jurisdicional (art. 69 do CPC/2015), podendo determinar eventual substituição, a fim de que não fique inviabilizado o plano de recuperação judicial. Constatado que não há tal pronunciamento, impõe-se a devolução dos autos ao juízo de execução fiscal, para que adote as providências cabíveis. Isso deve ocorrer inclusive em relação aos feitos que hoje encontram-se sobrestados em razão da afetação do Tema 987. (REsp n. 1.694.261-SP (2017/0226694-2), STJ, 1ª Seção, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, j. 26.06.2021, v.u., DJe 28.06.2021, Documento 2074732)[3]

Assim sendo, a partir de 28 de junho de 2021, as “execuções fiscais retomaram a marcha processual com a prolação de despachos determinando que, em razão do cancelamento do tema repetitivo, os contribuintes” em recuperação judicial “atendessem” o que está previsto na Lei de Execução Fiscal, no sentido de:

  • a) nos termos do “artigo 8º” realizar “o pagamento da dívida” ou;
  • b) apresentem “garantira nos termos do artigo 9º (penhora, fiança, seguro e depósito) à Execução para fins de oposição de Embargos à Execução”[4].

Para defender o cancelamento da submissão dos referidos recursos especiais ao regime dos recursos repetitivos, a Fazenda Nacional argumenta que:

  • a) “em razão da afetação do Tema Repetitivo 987 e da suspensão dos casos análogos, em âmbito nacional, houve a paralisação dos feitos” sendo que “em análise realizada em novembro/2020 (…) constatou-se que as empresas em recuperação judicial possuem um estoque inscrito em Dívida Ativa de, no mínimo, R$ 106.516.175.646,61” sendo que destes “R$ 8.932.453.944,04 (…) encontram-se com exigibilidade suspensa”[5];
  • b) a Lei 14.112/2020 ao revogar o § 7º do artigo 6º, da Lei 11.101/2005, e incluir o § 7º-B, no referido artigo, admitiu “a competência do juízo da recuperação judicial para determinar a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial até o encerramento da recuperação judicial” e determinou que tal atividade “será implementada mediante a cooperação jurisdicional, na forma do artigo 69 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil)”[6].

A legislação processual civil — artigo 69 — referida no § 7º-B do artigo 6º, da Lei 11.101/2005 e na parte final do voto — condutor do aresto — proferido pelo ministro Mauro Campbell Marques nos autos do REsp 1.694.261-SP, estabelece que “o pedido de cooperação jurisdicional deve ser prontamente atendido, prescinde de forma específica e pode ser executado como: (…) estabelecimento de procedimento para: (…) IV — a efetivação de medidas e providências para recuperação e preservação de empresas” (artigo 69, § 2º, IV), sendo importante referir que tal dispositivo não possui correspondente legislativo no Código de Processo Civil de 1973.

Assim sendo, com base numa interpretação sistemática tanto da legislação de regência da recuperação judicial (artigo 6º, § 7º-B, da Lei 11.101/2005), quanto da Constituição (artigo 170, parágrafo único) e do Código de Processo Civil de 2015 (artigo 69, § 2º, IV), tal “instituto não tem como objetivo a cobrança de créditos tributários, mas sim a busca de conferir efetividade ao princípio da função social do empresário e da empresa e sua necessária preservação”[7].

Cabe ressaltar, ainda, que o modelo de processo cooperativo que passou a ser adotado pela legislação processual brasileira — Lei 13.105/2015, artigo 6º — autoriza o “juiz a exercer os poderes de adaptação de procedimentos processuais e que tais poderes servem para fomentar e preservar os direitos fundamentais das partes”[8].

Nesse sentido, é ver-se que durante uma recuperação judicial é possível estabelecer reserva de crédito que pode ser classificado em dois gêneros: um que possui expressa “previsão legal (artigos 6º, §3º, 10, 4º e 16, todos, da Lei 11.101/05), e outro, não obstante não tenha previsão legal específica na Lei 11.101/05, decorre de uma interpretação sistemática da Lei 11.101/05 em conjunto com o artigo 5º, XXXV, da Constituição”[9].

Tipo de reserva de crédito Aplicação Fundamento legal
Decorrente de ação não sujeita ao procedimento de recuperação judicial ou falência Em relação às ações ilíquidas ou ações trabalhistas, para que se faça a reserva do valor do crédito, quando do pagamento a respectiva classe Art. 6º, § 3º, da Lei 11.101/2005
Objetivando evitar a perda do direito ao rateio na falência Para o exercício do direito de voto em assembleia na hipótese de credor habilitado Art. 10, § 4º, da Lei 11.101/2005
No âmbito da impugnação judicial Credor que objetiva incluir o seu crédito; devedor que busca excluir o crédito de um credor; credor que almeja excluir o crédito de outro credor Art. 16, da Lei 11.101/2005

Contudo, importantíssimo ressaltar que “a cobrança judicial do crédito tributário” (artigo 187, do CTN) e “a cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública” é que não estão sujeitas a habilitação em falência ou recuperação judicial, ou seja, a lei não veda de forma expressa que a “reserva de crédito” seja oferecida e aceita, apenas e tão somente, como garantia do juízo, exclusivamente para fins de oposição dos embargos à execução fiscal por empresas em recuperação judicial, sem inviabilizar a continuidade da atividade e o cumprimento do plano de recuperação judicial na medida em que, diga-se mais uma vez, o ente tributante não está sujeito à habilitação de seu crédito na “cobrança judicial”, leia-se, quando do julgamento de improcedência com trânsito em julgado nos autos dos embargos à execução fiscal.

Diante de tudo que foi exposto e considerando que tanto as disposições constantes do § 7º-B do artigo 6º, da Lei 11.101/2005, quanto o voto condutor do v. aresto proferido nos autos do REsp 1.694.261-SP, determinam, autorizam e reconhecem “a competência do juízo da recuperação judicial para determinar a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial até o encerramento da recuperação judicial” com base na “cooperação judicial, na forma do artigo 69” do CPC e na possibilidade do Juiz exercer poderes de adaptação de procedimentos processuais (artigo 6º, do CPC),  entendemos possível e conveniente, tanto sob o aspecto legal quanto constitucional, que: 

  • a) seja aplicado o instituto da reserva crédito às execuções fiscais de crédito tributário de empresas em recuperação judicial, com fulcro nas disposições constantes do artigo 6º, § 3º, da Lei 11.101/2005 ou em sede de interpretação sistemática da referida legislação;
  • b) para que o valor correspondente à referida reserva de crédito possa ser oferecido e aceito como uma das formas de garantia do juízo (artigo 9º, da Lei da Execução Fiscal), para fins de oposição dos embargos à execução fiscal pelas empresas em recuperação judicial;
  • c) sem inviabilizar a continuidade da atividade e o cumprimento do plano de recuperação judicial na medida em que o ente tributante não está sujeito à habilitação de seu crédito na “cobrança judicial”, ou seja, quando do julgamento de improcedência com trânsito em julgado nos autos dos embargos à execução fiscal.

[1] Art. 256-O. Desafetado o processo da sistemática do recurso repetitivo, deverão constar da decisão ou do resultado do julgamento as consequências desse ato e sua motivação. (…) § 5º Caso seja cancelado o tema, os processos suspensos em todo o território nacional retornarão seu curso normal.

[2] Disponível em: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?p=true&novaConsulta=true&quantidadeResultadosPorPagina=10&i=1&pesquisa_livre=Tema+987. Pag. 17. Acesso em: 22 jan. 2024.

[3] Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=2074732&num_registro=201702266942&data=20210628&formato=PDF. Acesso em: 22 jan. 2024.

[4] TEDESCHI, Daniella Maria Alves. Solução urgente para execuções fiscais após cancelamento do Tema 987 do STJ. Revista Eletrônica Consultor Jurídico – Conjur. 20 mai. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mai-20/daniella-tedeschi-solucao-execucoes-cancelar-tema-987/. Acesso em: 22 jan. 2024. ISSN 1809.2829.

[5] Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=2074732&num_registro=201702266942&data=20210628&formato=PDF. Pag. 14. Acesso em: 22 jan. 2024.

[6] Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=2074732&num_registro=201702266942&data=20210628&formato=PDF. Pags. 15/16. Acesso em: 22 jan. 2024.

[7] TESSARI, Cláudio. ALLEGRETTI, Eduardo Augusto. Críticas à utilização do instituto da recuperação judicial para cobrança de créditos tributários. Revista de Direito Tributário Contemporâneo. vol. 8. ano 2. p. 167-168. São Paulo: Ed. RT, set-out. 2017, ISSN 2525-4626.

[8] TESSARI, Cláudio. Os poderes do juiz de adaptação de procedimentos processuais no âmbito do CPC/15 como uma forma de preservar os direitos fundamentais das partes. Revista de Processo – RePro. vol. 278. ano 43. p. 55. São Paulo: Ed. RT, abril 2018. ISSN 0100-1981.

[9] VEIGA, Alex Stochi. Reserva de Crédito na Lei de Falências e Recuperações Judiciais. Disponível em: https://www.linkedin.com/pulse/reserva-de-cr%C3%A9dito-na-lei-fal%C3%AAncias-e-recupera%C3%A7%C3%B5es-alex-stochi-veiga/?originalSubdomain=pt. 09 abr. 2020. Acesso em: 22 jan. 2024.

Autores

  • é doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), mestre em Direito pela UniRitter Laureate International Universities, especialista em Gestão de Tributos e Planejamento Tributário Estratégico pela PU-CRS, professor visitante de vários cursos de pós-graduação lato sensu, sócio do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), sócio do Instituto de Estudos Tributários (IET), membro da Comissão Especial de Direito Tributário da OAB/RS e advogado tributarista.

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