Porte proibido

Corte do Havaí declara que 'espírito de Aloha' está acima da Constituição dos EUA

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11 de fevereiro de 2024, 10h31

O Tribunal Superior do Havaí decidiu que o porte de arma em lugares públicos, sem licença estadual, é proibido, contrariando decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos. A fundamentação teve três pilares: 1) a corte discorda da interpretação da Suprema Corte sobre o porte de arma; 2) com base nos princípios do federalismo, a Constituição estadual prevalece sobre a federal; 3) a corte honra o “espírito do Havaí” na interpretação das leis e, é claro, esse é um fundamento excepcional.

Tribunal contrariou Suprema Corte em caso que envolve porte de arma em lugares públicos

“No Havaí, o espírito de Aloha inspira a interpretação constitucional. Quando esta corte exerce o poder em benefício da população e no cumprimento de suas responsabilidades, obrigações e serviços ao povo, nós podemos contemplar e afirmar a força da vida e considerar o espírito da Aloha”, diz a decisão do caso State of Hawaiʻi vs. Christopher L. Wilson, que rejeita a decisão de 2022 da Suprema Corte em New York State Rifle & Pistol Association v. Bruen.

Aloha é uma palavra mística na história havaiana. Mais do que uma saudação corriqueira, ela interpreta a coordenação entre a mente e o coração. Expressa o amor, a afeição, a paz, a simpatia, a piedade, a clemência, a compaixão, a bondade, a gentileza e a amabilidade. É a força que sustenta a existência, dizem pesquisadores. Em relação aos conflitos, é uma referência à maneira amistosa de se resolver problemas em oposição ao uso de armas.

“O espírito de Aloha não combina com o estilo de vida idealizado pelas instituições federais, que permitem ao cidadão andar por aí com armas mortíferas, durante suas atividades cotidianas. A história das Ilhas Havaianas não inclui uma sociedade em que pessoas armadas circulam pela comunidade, com a intenção de combater os objetivos mortais dos outros”, escreveu o relator da decisão unânime, ministro Todd Eddins.

O interesse do governo em reduzir a violência por armas de fogo, por meio de regulamentações razoáveis da compra, posse e porte de armas, tem preservado a paz e a tranquilidade no Havaí um estado com a segunda menor taxa de mortes por armas no país, de acordo com a instituição Centers for Disease Control (a menor taxa é de Massachusetts).

“O livre direito de portar armas em público degrada outros direitos constitucionais. O direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade abrange o direito de circular livremente, com segurança, paz e tranquilidade. Leis que regulam o uso de armas em público preservam a liberdade e promovem esses direitos.”

‘Não subscrevemos a interpretação da Suprema Corte’
O caso perante o Tribunal Superior do Havaí se refere à prisão de Christopher Wilson, em 2017, por portar uma arma de fogo carregada sem a devida licença do estado. Wilson ganhou a disputa nos tribunais inferiores, que se fundamentaram na decisão da Suprema Corte sobre porte de arma.

À época, os ministros afirmaram que a exigência do estado de Nova York de comprovação de uma necessidade especial para portar arma em lugares públicos violava a 14ª Emenda da Constituição por proibir cidadãos cumpridores da lei de exercer seus direitos de autodefesa. Os magistrados fizeram uma interpretação da Segunda Emenda, que garante o direito ao uso de armas de fogo.

A decisão ainda afirmou que o direito de portar armas em público, para defesa pessoal, é profundamente enraizado na história do país, e que nenhum outro direito constitucional requer comprovação de uma necessidade especial para exercê-lo.

Os magistrados do Tribunal Superior do Havaí declararam que concordam que a história e a tradição devem ser avaliadas na interpretação de leis e da Constituição. Mas também devem ser levadas em conta as circunstâncias que as precederam e outros dispositivos dos instrumentos jurídicos. “Por isso, diferentemente da Suprema Corte, não subscrevemos a teoria interpretativa de que nada mais importa.”

A decisão do tribunal superior também empresta uma fala da série da HBO The Wire para mostrar como a decisão da Suprema Corte é obsoleta: “The thing about the old days, they are the old days” (“A coisa sobre velhos tempos é que eles são velhos tempos”). Para o tribunal, à medida em que o mundo gira, não faz sentido para a sociedade contemporânea jurar fidelidade à cultura, às realidades, às leis e à compreensão da Constituição da era fundadora.

O texto da Segunda Emenda
O tribunal do Havaí afirma que, em referência ao direito do cidadão de usar armas para legítima defesa, o texto do artigo I, seção 17, da Constituição estadual espelha o texto da Segunda Emenda da Constituição federal. Eles se diferenciam apenas por duas vírgulas e três letras maiúsculas. Ambos dizem:

“Sendo uma milícia bem regulamentada necessária para a segurança de um estado livre, o direito do povo de manter e portar armas não deve ser violado.”

O tribunal superior do Havaí interpreta esse texto de forma diferente da Suprema Corte. Para os ministros, a Suprema Corte distorceu o significado da palavra milícia, conferindo a um indivíduo o direito de portar armas em público. Mas, na verdade, “não há direito individual para isso”, diz a decisão.

Ambas as cláusulas do artigo I, secção 17, e da Segunda Emenda utilizam linguagem com matizes militares ‘milícia bem regulamentada’ (well regulated militia) e ‘portar armas’ (bear arms). Para os magistrados do Havaí, os termos têm conotação coletiva.

“Em contraste, não há qualquer palavra que mencione um direito pessoal de portar armas letais em lugares públicos para uma possível legítima defesa. A Constituição federal emprega (o termo) ‘milícia’ para significar uma força militar estadual irregular que pode ser convocada pelo governo federal para combater invasões externas ou insurreições internas.”

“Nenhuma palavra na constituição estadual ou na federal descreve um direito individual. Nenhuma palavra menciona autodefesa”, diz a decisão do tribunal do Havaí.

Federação prevalece
A decisão da Suprema Corte em New York State Rifle & Pistol Association v. Bruen, “esnobou os princípios do federalismo”, segundo a decisão do Tribunal Superior do Havaí. “No entanto, a Suprema Corte dos Estados Unidos não retira dos estados toda a soberania para aprovar as tradicionais leis do poder policial, destinadas a proteger a população.”

“Portanto, interpretamos a Constituição do Havaí em primeiro lugar. E podemos não levar em consideração a Constituição dos Estados Unidos. Se o exame das leis e da Constituição do estado não resolverem o problema, as cortes devem, então, consultar a Constituição dos Estados Unidos.”

Quando os dois contêm disposições semelhantes, o Havaí pode optar por não acompanhar a interpretação da Suprema Corte, diz a decisão.

“A Declaração dos Direitos copiou e colou direitos anunciados em Constituições estaduais. Por mais de um século, os direitos estabelecidos nas constituições estaduais eram os únicos direitos executáveis contra governos”, diz a decisão.

“O povo do Havaí tem direito a uma interpretação independente das garantias constitucionais do Estado. Isso significa que este tribunal — e não a Suprema Corte dos EUA — conduz a interpretação da Constituição do Havaí. Se ignorarmos esse dever, não cumpriremos o nosso juramento de defender a Constituição do Havaí.”

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