Opinião

'AbinGate' e nosso entulho autoritário

Autores

  • André Jorgetto

    é advogado graduado em Direito pelo Largo São Francisco da Universidade de São Paulo (FD/USP) graduando em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia e Letras e Ciências Humanas da mesma instituição (FFLCH/USP).

  • Eduardo Samoel Fonseca

    é advogado doutorando mestre em Processo Penal pela PUC-SP especialista em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha) e em Ciências Criminais pela PUC-MG professor universitário de Direito Penal e Processo Penal e ex-presidente da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB-SP (subseção Penha de França).

  • Anderson Bezerra Lopes

    é advogado mestre em Processo Penal pela Universidade de São Paulo (USP) especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) graduado em Direito pela PUC-SP e membro do departamento de Amicus Curiae do IBCCrim.

3 de fevereiro de 2024, 15h18

A vinda a público do uso do órgão de inteligência do Estado, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), para monitoramento de cerca de 30 mil cidadãos (dentre eles autoridades públicas) deveria causar, no mínimo, o mesmo nível de consternação e ojeriza que os ataques que resultaram na efeméride do 8 de Janeiro. No mínimo.

Segundo apurado pela Polícia Federal, foi empregado o uso do software “First Mile“, permitindo-se a geolocalização clandestina de pessoas por meio dos sinais de celulares.

Outra burla tão ou mais séria foi com relação aos direitos da personalidade de todas as pessoas monitoradas consistentes na geolocalização e no livre direito de ir e vir, este impactado na medida em que seu trânsito é vigiado pelo Estado [1].

Por ser direito fundamental já incluso no rol de direitos da personalidade porque contemplados no direito à privacidade e à intimidade [2], a sua relativização precisa de ordem judicial, sendo vedada às autoridades agirem de ofício.

Inclusive, a Lei nº 9.883/1999, que criou o Sistema Brasileiro de Inteligência do qual a Abin faz parte, expressamente reforçou a necessidade de observação aos direitos e garantias individuais (artigo 1º, §1º), não havendo nenhum tipo de escusa para a vigilância empreendida por parte dos membros da agência:

“§ 1º O Sistema Brasileiro de Inteligência tem como fundamentos a preservação da soberania nacional, a defesa do Estado Democrático de Direito e a dignidade da pessoa humana, devendo ainda cumprir e preservar os direitos e garantias individuais e demais dispositivos da Constituição Federal, os tratados, convenções, acordos e ajustes internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte ou signatário, e a legislação ordinária.”

Até mesmo numa análise retroativa, não é possível justificar a constitucionalidade do monitoramento feito pela Abin.

Aplicando a fórmula alexyiana da regra da proporcionalidade[3], a atuação do órgão de inteligência não atinge os requisitos cumulativos da  (1) adequação, (2) necessidade e (3) proporcionalidade “stricto sensu”: numa relação meio-fim, o rastreamento atinge o objetivo de saber a geolocalização dos alvos (requisito 1), mas não se mostra necessário (afinal qual a justa causa?) e tampouco proporcional (a violação ao direito fundamental dos alvos ocorre em benefício do quê? Ou seja, a monitoração da geolocalização das pessoas pelo Estado se daria em função de que e de quem?) (requisitos 2 e 3 não atendidos).

Golpe institucional?
Arriscar as respostas a tais perguntas da motivação dessa operação de vigilância sistemática (requisito 2) e dos reais beneficiados dela (requisito 3) nos coloca diante de uma verdade inconveniente: o rascunho de um golpe institucional e tentativa de instauração da exceção.

Isso simplesmente porque o aparato de vigilância é um pré-requisito para a repressão, sendo importante saber a rede de relações de determinadas pessoas, a frequência com a qual se encontram e os respectivos locais. Isso tudo é passível de ser depreendido da geolocalização sem necessidade de invasão dos dispositivos. Eis aqui a sensibilidade do caso “AbinGate”.

Em verdade, ao observar a atuação em comento, a agência operou tal qual o finado Serviço Nacional de Informações (o SNI da ditadura militar, criado em 1964 pela Lei nº 4.341/1964):

“Art 3º Ao Serviço Nacional de Informações incumbe especialmente:

a) assessorar o Presidente da República na orientação e coordenação das atividades de informação e contra-informação afetas aos Ministérios, serviços estatais, autônomos e entidades paraestatais;

b) estabelecer e assegurar, tendo em vista a complementação do sistema nacional de informação e contra-informação, os necessários entendimentos e ligações com os Governos de Estados, com entidades privadas e, quando fôr o caso, com as administrações municipais;

c) proceder, no mais alto nível, a coleta, avaliação e integração das informações, em proveito das decisões do Presidente da República e dos estudos e recomendações do Conselho de Segurança Nacional, assim como das atividades de planejamento a cargo da Secretaria-Geral dêsse Conselho;

d) promover, no âmbito governamental, a difusão adequada das informações e das estimativas decorrentes.”

Doutrina do inimigo interno
Isso permite entrever, em plena democracia, a permanência da doutrina do inimigo interno, que atravessou os diferentes diplomas de crimes contra a segurança nacional presentes na legislação adjetiva (Decreto-Lei nº 314/1967, Decreto-Lei nº 898/1968, Lei nº 6.620/1978 e Lei nº 7.170/1983), hoje incorporados ao Código Penal pela Lei nº 14.197/2021 [4].

É curioso que, na atual ordem constitucional, aqueles que mais atentaram contra a soberania nacional, reciclem materialmente uma doutrina que põe o Estado contra seu próprio povo, comprovando que eles não aprenderam com os erros do passado.

Da mesma forma que o professor Gilberto Bercovici (2010) identificou na estrutura administrativa brasileira um resquício da ditadura no capítulo de livro intitulado “O direito constitucional passa, o direito administrativo permanece: a persistência da estrutura administrativa de 1967″, é possível aproveitar e estender a reflexão para o campo do direito penal, submetendo os tipos penais à crítica — tema este que merece uma análise à parte.

Apesar de todos os esforços do país, das reformas e da constitucionalização das instituições, reputamos que a causa do risco permanente da exceção reside na transição que nunca foi devidamente realizada — um risco que se mostrou real com os acontecimentos que vieram à tona até culminarem no 8 de Janeiro.

Trânsito dos militares
Desde o começo, os militares estiveram à frente e controlaram a velocidade da transição para a democracia, fazendo-o através de alterações no regramento eleitoral de modo a garantir os parlamentares governistas ocuparem assentos com cada vez menos número de votos (Lamounier 1988: 107).

Tal controle dos votos e da competitividade de eleições foram um expediente da ditadura para regular a velocidade da transição para a democracia, pois imprimiram gradualismo no processo em curso, fazendo-o de modo formal, abstrato e incerto, sem vincular o governo de modo substantivo com nenhum compromisso concreto, gerando o que Bolívar Lamounier chamou de “descompressão”.

Lei da Anistia
Por seu turno, no campo da Justiça de transição, a Lei da Anistia (Lei nº 6.683/1979) que beneficiou os militares e as sucessivas confirmações da sua duvidosa constitucionalidade pelos tribunais superiores (há o julgamento da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal e do REsp 1.798.903/RJ pelo Superior Tribunal de Justiça) selaram o pacto e preservaram os agentes da repressão, os quais mantiveram incólumes. Dessa forma, o Poder Judiciário, ele próprio, fechou o “direito à justiça”, este compreendido como responsabilização dos agentes violadores de direitos humanos a serviço do Estado (Quinalha 2013: 146)[5].

Assim, muito à vontade, os militares de alta patente transitam entre a caserna e governo. O jornalista Fabio Victor, em O Poder Camuflado (2022) mostrou uma teia cruzada de interesses no governo Bolsonaro com agentes e ex-agentes ocupando cargos não só no governo e nas estatais, mas também na iniciativa privada e em nichos de intensa atividade regulatória e de advocacy (cap. 14, “Um governo de (e para) militares”). O espraiamento deles na administração direta e indireta e nas entidades não é trivial porque naturaliza a introjeção da racionalidade militar em um governo civil.

Nessa perspectiva, o caso apelidado aqui de “AbinGate” nos alerta para a retomada da agenda de aprimoramento da democracia, revendo criticamente a nossa peculiar transição, seus erros e acertos. É inadmissível o funcionamento da agência emulando o SNI e monitorando sem justa causa a localização de cidadãos, independentemente de seu diretor Alexandre Ramagem ter agido espontaneamente (de ofício) ou a mando (de quem?).

Escalada golpista
Em verdade, a leitura dos fatos políticos relacionados é, no mínimo, perturbadora. Colocados conjuntamente: o caso “AbinGate”, a tentativa de sitiar a capital no dia da diplomação do presidente Lula em 12/12/2022, a minuta do golpe encontrada na residência do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, a tentativa de explodir uma bomba no aeroporto de Brasília na véspera do Natal de 2022[6] e às portas da posse presidencial e o ato final do Oito de Janeiro evidenciam o curso de uma trama de assalto ao Estado, de repulsa à Constituição e saudosismo da ditadura.


Referências

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015.

BERCOVICI, Gilberto. “‘O direito constitucional passa, o direito administrativo permanece’: a persistência da estrutura administrativa de 1967” in: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Orgs.). O que resta da ditadura – A exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010, pp. 77-90.

LAMOUNIER, Bolívar. “O ‘Brasil autoritário’ revisitado: o impacto das eleições sobre a abertura” in: STEPAN, Alfred (org.). Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, pp. 83-134.

QUINALHA, Renan. Justiça de Transição: Contornos do conceito. São Paulo: Outras Expressões; Dobra Editorial, 2013.

VICTOR, Fabio. Poder Camuflado: Os militares, e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.


I Inclusive, até o Decreto nº 7.627/2011 que regulamenta a monitoração eletrônica, no seu art. 6º, assegura o sigilo dos dados da pessoa monitorada[!], limitando o acesso aos servidores expressamente autorizados e que tenham necessidade de saber em virtude das suas atribuições (art. 7º).

[2] A nosso ver, a inserção pela Emenda Constitucional nº 115/2022 apenas torna extreme de dúvidas o debate acerca da natureza e simplesmente não inova na matéria, porque trata-se de direito já positivado.

[3] Método aplicável ante à colidência abstrata entre institutos de mesmo “status” porque previstos no mesmo diploma legal, i.e., direito à intimidade/privacidade x vigilância.

[4] Esse caráter do inimigo interno é formalmente verificado na leitura dos diferentes tipos penais que, na sua grande maioria, têm como objetivo preservar a integridade do Estado, seja procurando garantir a incolumidade das autoridades, aderência da população ao regime ou a unidade do território, estipulando crimes cujo sujeito ativo é um agente interno. Materialmente, a pesquisa do Projeto Brasil: Nunca Mais coordenada por Dom Paulo Evaristo Arns e Comissão Nacional da Verdade mostraram como foi na prática aplicada a política de segurança do Estado e o famigerado “ORVIL” produzido pelo próprio regime faz um perfil dos inimigos políticos, dando concretude aos destinatários das normas penais.

[5] Somado a este, o autor apresenta outros três eixos que integram a Justiça de Transição: (1) o direito à reparação (indenizações pecuniárias); (2) o direito à memória (políticas de registro e reconhecimento); e (3) o direito à verdade (acesso às informações; onde entram as comissões da verdade) (Quinalha 2013: 144-5).

[6] Com ecos do método do frustrado atentado do Riocentro.

Autores

  • advogado graduado em Direito pelo Largo São Francisco da Universidade de São Paulo (FD/USP), graduando em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da mesma instituição (FFLCH/USP).

  • é advogado criminal, doutorando, mestre em Processo Penal pela PUC-SP, especialista em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha) e em Ciências Criminais pela PUC-MG, professor universitário de Direito Penal e Processo Penal e ex-presidente da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB-SP (subseção Penha de França)

  • é advogado criminalista, mestre em Processo Penal pela Universidade de São Paulo, especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/IBCCrim, graduado em Direito pela PUC-SP, coordenador do Caderno de Jurisprudência e editor-assistente do Boletim IBCCrim.

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