Riscos climáticos, mercado segurador e recursos para reconstrução
29 de agosto de 2024, 8h00
Crise climática
Segundo o mais recente Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), de 2023, o aumento da temperatura da superfície global é um dado inexorável, atribuível à ação humana histórica e tendencialmente não sujeito a mudança significativa. Neste sentido, ao corroborar os relatórios anteriores, tem-se como consenso e confiabilidade a conclusão de que “atividades humanas, principalmente através das emissões de gases de efeito estufa, inequivocamente causaram o aquecimento global, com a temperatura da superfície global atingindo um valor 1,1ºC mais alto entre 2011-2020 do que no período de 1850-1900”. Afirma ainda que “as emissões globais de gases de efeito estufa continuarão a aumentar, com contribuições históricas e contínuas desiguais decorrentes do uso insustentável de energia, do uso da terra e da mudança no uso da terra, dos estilos de vida e dos padrões de consumo e produção entre regiões, entre países e dentro deles, e entre indivíduos” [1].
Os extremos climáticos, seja por chuvas, secas e ventos fortes serão permanentes. Mas o problema, para ser resolvido, não passa pela contenção da ação climática, sabidamente inevitável, ao menos no curto e médio prazo.
Nosso olhar, para uma cultura de prevenção, deve se voltar à redução de vulnerabilidades, isto é, preparação, em termos de infraestruturas e demais ações de mitigação e adaptação, para que os extremos climáticos não nos atinjam com tamanha violência e destruição. Por certo, há muitos caminhos a seguir: ações efetivas pelo poder público, com investimento em infraestruturas (embora cada vez mais nos decepcionemos com as históricas omissões); realocação de populações em situação de vulnerabilidades e de ocupação de áreas de risco (tais como APPs ou áreas alagáveis); incremento do sistema de Defesa Civil, enfim, inúmeras soluções, que não comportam neste texto [2].
Há uma rota que demanda devida atenção: desenvolver e fortalecer um sistema efetivo de seguros para fazer frente aos riscos climáticos, democraticamente abrangente, que, à luz da genial ideia do mutualismo, permita constituir reservas financeiras para fazerem frente às necessidades de reconstrução das famílias, patrimônios, empregos e riquezas.
Embora pouco se fale (e muitas vezes seja mal compreendido), o mercado segurador tem um papel fundamental na resposta e na reconstrução em face de desastres climáticos. Para ilustrar — valendo-nos de dados ainda não conclusivos – em relação às cheias, enchentes e inundações de maio no Rio Grande do Sul, segundo a Confederação Nacional dos Municípios, os prejuízos rondam a casa dos R$ 12 bilhões [3], sendo que o mercado segurador, ainda com base em dados preliminares, pagou em indenizações, para os sinistros do referido período, algo muito próximo dos R$ 4 bilhões [4].
Ou seja, segundo dados acima, cerca de 1/3 das perdas foram indenizadas pelos seguros, nos seus mais diversos ramos (automóvel, residencial, empresarial, agrícola etc), o que evidencia o potencial dos modelos de seguros como forma eficiente de “reconstrução de vidas”.
Paradoxalmente, no entanto, a verdade é que a imensa maioria da população e dos patrimônios não possuem quaisquer seguros no Brasil! Apenas para exemplificar, nossa frota de veículos com seguro gira em torno de 30%, enquanto os seguros residenciais estão na casa de 11%, apenas, segundo dados da CNSeg (Confederação Nacional das Seguradoras) [5].
Tamanho volume de indenizações caracteriza o chamado “aumento de sinistralidade”, o que é deveras preocupante para uma operação securitária. Estima-se, segundo a Susep (Superintendência de Seguros Privados), que a sinistralidade no Rio Grande do Sul, em maio, teve um aumento de 192% [6], o que, se por um lado mostra o vigor e a eficiência dos seguros, por outro lado demonstra risco à sustentabilidade de qualquer operação empresarial.
O caminho é aumentar a massa segurada, ampliando a abrangência de vidas e patrimônios resguardados (cobertos), de modo a aumentar o potencial de reservas, por um lado, mas também de promover a salutar e necessária dissipação dos riscos, evitando-se a concentração, requisitos elementares para o equilíbrio de um empreendimento.
Proposta legislativa
Em tramitação na Câmara dos Deputados desde maio de 2022, o Projeto de Lei 1.410/2022 está justificado à luz da percepção de que “desastres naturais têm sido cada vez mais frequentes e severos em decorrência das mudanças climáticas, causando danos humanos, materiais e ambientais”, uma vez que tais eventos “têm um elevado custo econômico, que se soma ao sofrimento pela perda de vidas”, exemplificando que “segundo levantamento da Confederação Nacional dos Municípios”, “entre os anos de 2012 e o 1º semestre de 2017, os desastres naturais causaram mais de R$ 244,9 bilhões de prejuízos no Brasil, com 53,6 milhões de pessoas afetadas, o que corresponde a 25% da população brasileira”. Os seguros, neste cenário, surgiriam como “instrumento hábil a dar suporte às ações de respostas a desastres, bem como a induzir medidas de adaptação às mudanças do clima” [7].
Diante destas premissas, em linha gerais, o projeto de lei delineia a forma e o âmbito de incidência do modelo de seguros proposto, prevendo: (1) quanto à forma de incidência, um modelo compulsório de seguros, na forma do artigo 2º, combinado com o artigo 16; e (2) quanto ao âmbito de incidência, delimita os riscos àqueles eventos definidos como “desastre natural relacionado a chuvas”, caracterizado como “aquele reconhecido como calamidade pública pela autoridade competente e classificado no sistema de informações e monitoramento de desastres como inundação, enxurrada ou alagamento”, na forma do artigo 3º e 4º.
Adicionalmente, ao tratar do prêmio, fixa diretrizes importantes, seja para promover uma distribuição equitativa entre os “contribuintes”, seja para evitar o chamado moral hazard, estabelecendo que: quanto à distribuição equitativa das contribuições (prêmio), que “o valor do prêmio será baseado no produto do valor venal do imóvel pela alíquota do imóvel”, na forma do artigo 6º, caput, bem como que a “alíquota do imóvel será majorada, na forma do regulamento, nas áreas em que o plano diretor municipal indicar como suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos” (artigo 6º, § 1º); acrescentando ainda que “o imóvel ocupado exclusivamente por morador de baixa renda terá alíquota reduzida” (artigo 6º, § 2º), enquanto o “imóvel ocupado exclusivamente por família inscrita no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), do Governo Federal, cuja renda familiar mensal per capita seja inferior ou igual a meio salário-mínimo nacional, será isento do pagamento do prêmio” (artigo 6º, § 3º). Já quanto ao denominado moral hazard, dispõe que “o pagamento de indenização não é devido ao morador que ofereça recusa injustificável de desocupação do imóvel após notificação da autoridade competente sobre risco iminente”, na forma do artigo 8º.
O projeto de lei avança no sentido de que a proposta deverá ser estruturada em um modelo privado de seguros, quando dispõe que “seguro será administrado por seguradora regularmente habilitada perante a Superintendência de Seguros Privados ou por consórcio de seguradoras habilitadas para essa finalidade específica”, na forma do artigo 9º.
Não obstante o estabelecimento de um modelo privado, estipula regras de destinação do prêmio (artigo 10º), sendo 70% para o “fundo comum destinado ao custeio e pagamento das indenizações do seguro”; 20% para o “Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (Lei 11.124/2005)”; 5% para a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, que deverá aplicar os valores exclusivamente em “programas destinados à prevenção de desastres e à adaptação às mudanças do clima”; e 5% à seguradora ou pool de seguradoras, como remuneração pelo serviço.
Merecem destaque, ainda, os pressupostos para pagamento das indenizações, seja em caso de danos pessoais, seja em caso de danos materiais. Neste sentido, em suma: quanto aos danos pessoais, dispõe no artigo 11 que estes compreendem as indenizações por morte (e) por invalidez permanente, total ou parcial, fixando os requisitos do direito a indenizações nos artigos 12 a 14; enquanto aos danos materiais, propõe o projeto de lei que o pagamento “será efetuado mediante comprovação de moradia no local afetado pelo desastre e do dano decorrente, baseado em laudo técnico emitido por profissional habilitado”, na forma do artigo 15.
Um registro final refere-se à disposição contida nos parágrafos únicos dos artigos 11 e 15, quando dispõem que as indenizações — por danos pessoais e materiais, respectivamente — serão pagas “a moradores de baixa renda ocupantes de áreas sem registro nos mesmos valores, condições e prazos dos demais casos”, ou seja, equiparam-se a segurados ou beneficiários, com direito a serem indenizados, grupos de pessoas que não contribuíram para a formação do “fundo comum destinado ao custeio e pagamento das indenizações do seguro”.
Seguros obrigatórios e os “problemas” da solidariedade
Esta proposta legislativa, tal como qualquer outra, naturalmente comporta críticas e aprimoramentos. Enquanto contribuição, merece destaque a proposta do mercado segurador de melhorias no PL 1.410/2022, para um seguro social de catástrofes [8].
Os seguros obrigatórios são compulsórios por força de lei [9], sendo muito comum a instituição desse tipo de obrigação nos seguros de responsabilidade civil. Diferentemente dos seguros facultativos, muito mais voltados aos interesses e à proteção do segurado e de seu patrimônio, nos obrigatórios há uma alteração do foco, cuja preocupação está na proteção da coletividade, difusamente considerada.
Trata-se, aqui, de situação destacada de cumprimento de uma função social pelos seguros, evidenciando-se o viés da solidariedade. Solidariza-se a obrigação de reparar os danos. Deste modo, “não se trata, portanto, de condenar alguém individualizado a ressarcir um prejuízo, mas sim de transferir para toda a sociedade ou para um setor desta, uma parte do prejuízo” [10].
Por outro lado, a obrigatoriedade pode trazer inconvenientes relacionados aos incentivos a determinados comportamentos não desejados pela massa de segurados (moral hazard), ou seja, toda a sociedade, na medida em que pode gerar a falsa segurança de que, ao deter um seguro para “danos causados por desastres naturais” que os protejam, deixem de tomar medidas de cautela e prudência [11], como evitar ocupação de áreas de riscos, áreas alagáveis, ou ainda, serem omissos em relação ao autocuidado, não investindo em estruturas públicas ou privadas de contenção e prevenção a eventos extremos.
É neste sentido que adverte a justificativa ao projeto de lei aqui abordado, quando ressalva que “essa transferência de risco, todavia, poderia gerar um efeito colateral adverso ao incentivar as pessoas a permanecerem em locais suscetíveis a desastres”. O denominado moral hazard, no entanto, pode ser mitigado ou evitado com a estipulação de obrigações acessórias ou com mecanismos de bloqueio aos incentivos indesejados, tais como: (1) majorar a alíquota quando a unidade habitacional estiver inserida em área categorizada como suscetível à ocorrência de desastres”, quando então o seguro “pode oferecer um incentivo à prevenção e redução de riscos, por exemplo, induzindo ou desincentivando ocupação em determinadas áreas, a depender do risco associado”; (2) afastar o direito ao recebimento de indenização “quando houver recusa injustificável de desocupação do imóvel após notificação da defesa civil, a fim de evitar que, por uma falsa sensação de segurança promovida pelo seguro, os moradores se recusem a abandonar os imóveis quando solicitado” [12].
Embora a sugestão de mecanismos como redução do prêmio (como incentivo) ou de perda de direito ao seguro (como desincentivo), resta ainda o problema operacional de, em um sistema amplo de seguros para desastres climáticos, realizar tais distinções individuais, muito especialmente quando a temática dos seguros para desastres está associada a outras políticas de enfrentamento aos desastres, tais como os sistemas de defesa civil e das áreas protegidas.
O desafio é alcançar um ponto ótimo de simetria informativa, colaboração e manutenção de prudência, de modo a garantir equidade de condições entre as partes, para manter saudável e equilibrada a dinâmica contratual e para que o segurado aja com diligência no evitamento da ocorrência de um sinistro ou de redução de suas perdas [13].
[1] Sexto Relatório de Avaliação (AR6) do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC). Disponível em português o Relatório Síntese, em https://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/sirene/publicacoes/relatorios-do-ipcc.
[2] Sobre o tema em específico e correlatos, com maior profundidade analisamos em nosso livro: SARAIVA NETO, Pery. Seguros Ambientais: elementos para uma política de garantias de reparabilidade de danos ambientais estruturada pelos seguros. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019.
[3] https://cnm.org.br/comunicacao/noticias/balanco-das-chuvas-no-rio-grande-sul-aponta-para-r-12-2-bilhoes-em-prejuizos-financeiros.
[4] https://cnseg.org.br/noticias/volume-de-indenizacoes-de-seguros-no-rio-grande-do-sul-chega-a-quase-r-4-bilhoes.
[5] https://www.fenacor.org.br/noticias/no-brasil-mais-de-70-dos-veiculos-nao-tem-seg.
[6] https://www.gov.br/susep/pt-br/central-de-conteudos/noticias/2024/julho/reflexo-da-tragedia-no-sul-sinistralidade-nos-seguros-de-danos-salta-em-maio-para-66-1.
[7] Da Justificação ao PL 1.410/2022.
[8] https://cnseg.org.br/noticias/setor-segurador-apresenta-propostas-para-desastres-naturais-em-audiencia-publica-na-camara-dos-deputados
[9] No Brasil, os seguros obrigatórios possuem previsão em normas esparsas, e em especial no artigo 20 do Decreto-Lei 73/1966.
[10] FACCHINI NETO, Eugênio. Da responsabilidade civil no novo Código. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 182.
[11] Neste sentido, BRUGGEMAN, Véronique; FAURE, Michael; Heldt, Tobias. Seguros contra catástrofes: medidas de estímulo do governo para impulsionar os mercados de seguros diante de eventos catastróficos. In: WINTER DE CARVALHO, Delton; FARBER, Daniel A. Estudos aprofundados em direito dos desastres: interfaces comparadas. Curitiba, Appris, 2019, p. 269 e ss.
[12] Da Justificação ao PL 1.410/2022.
[13] WINTER, Ralph A. Optimal insurance under moral hazard. In: DIONE, Georges (Edit.) Handbook of insurance. Norwell: Kluwer Academic Publishers, 2000, p. 155-183.
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