Controvérsias Jurídicas

A CF e os reflexos da dignidade da pessoa humana sobre o Direito Penal

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  • é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

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1 de agosto de 2024, 8h00

A Constituição de 5 de outubro de 1988 operou uma profunda transformação na dogmática penal, elevando-a de seu limitado patamar positivista para a submissão direta aos princípios constitucionais que regem cada um dos diferentes ramos do ordenamento jurídico, em especial, o Direito Penal. O exato alcance da norma não pode mais ser obtido com a interpretação meramente gramatical. A Carta Magna, em seu artigo 1º, redefiniu nosso perfil político-constitucional como um Estado Democrático de Direito e, em seu inciso III, inseriu o princípio da dignidade humana como vetor hermenêutico, impondo releitura do ordenamento jurídico.

“Sendo o Brasil um Estado Democrático de Direito, por reflexo, seu direito penal há de ser legítimo, democrático e obediente aos princípios constitucionais que o informam, passando o tipo penal a ser uma categoria aberta, cujo conteúdo deve ser preenchido em consonância com os princípios derivados deste perfil político-constitucional. Não se admitem mais critérios absolutos na definição dos crimes, os quais passam a ter exigências de ordem formal (somente a lei pode descrevê-los) e material (o seu conteúdo deve se ajustar aos princípios constitucionais derivados do Estado Democrático de Direito)[1].

A tipicidade deixa o conceito formal da Teoria Clássica, retratada no Tratado de Ernst Von Beling de 1906, ou do finalismo tecnicista da fase inicial de Welzel, para assumir uma função social, refletindo a missão do Direito Penal de atender às metas ditadas pela política criminal do Estado [2]. Com isso, adequação típica deixa de ser uma mera subsunção formal do fato à descrição legal do crime. O Estado Democrático de Direito exige um conteúdo material para a existência do crime. Assim, ainda que a conduta corresponda à descrição contida na lei, somente haverá crime se ela tiver uma carga interna de lesividade.

Revolução

Em nosso Curso de Direito Penal, desde as primeiras edições, havíamos antecipado essa verdadeira revolução constitucional da ciência criminal em todos os seus aspectos: “Pode-se, então, afirmar que do Estado Democrático de Direito parte o princípio da dignidade humana, orientando toda a formação do direito penal. Qualquer construção típica, cujo conteúdo contrariar e afrontar a dignidade humana, será materialmente inconstitucional, posto que atentatória ao próprio fundamento da existência de nosso Estado. Cabe ao operador do Direito exercer controle técnico de verificação da constitucionalidade de todo tipo penal e de toda adequação típica, de acordo com o seu conteúdo. Afrontoso à dignidade humana, deverá ser expurgado do ordenamento jurídico[3].

Spacca

Deste modo, qualquer resultado interpretativo que leve a uma solução contrária à dignidade humana, afigura-se inconstitucional. Como lembra Jescheck: “El principio del Estado de Derecho determina la protección de la dignidad humana como norma fundamental de todo el sistema de valores de nuestra Constitución (art. 1 I GG)[4]. Na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello: “Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa ingerência a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra[5].

Nulidade absoluta

Como já tivemos a oportunidade de escrever em nosso Curso de Processo Penal, a nulidade por violação direta a princípio constitucional é absoluta: Nesse caso, a formalidade violada não está estabelecida simplesmente em lei, havendo ofensa direta ao Texto Constitucional, mais precisamente aos princípios constitucionais do devido processo legal[6]. Marco Antonio Marques da Silva observa com precisão que a dignidade da pessoa humana é “o reconhecimento constitucional dos limites da esfera de intervenção do Estado na vida do cidadão” [7].

A partir da CF de 1988, portanto, o ordenamento jurídico assistiu a uma passagem do positivismo hermético e formal para um principiologismo sistêmico, influenciado pela nova visão trazida pelo funcionalismo teleológico de Claus Roxin. Ampliaram-se as exigências impostas ao princípio da legalidade. Previsto no artigo 5º, XXXIX, da CF (“não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”), tal princípio impõe ao legislador a tarefa de descrever os crimes com todos os seus elementos. Como ensina Cernicchiaro, “o tipo exerce função de garantia. Logicamente, o tipo há de ser preciso para que a ação seja bem identificada” [8].

Exigência de ofensividade

A partir da nova dogmática penal, o juízo de tipicidade informado por essa nova perspectiva da reserva legal passa a exigir também conteúdo material, social e ontológico. Para que determinada conduta seja considerada crime, não basta apenas a sua subsunção ao tipo legal, exigindo-se também que a ação tenha conteúdo de crime. O comportamento criminoso deve ser socialmente relevante e provocar efetiva lesão ao bem jurídico. É a exigência de ofensividade, derivada da máxima nullum crimen sin iniuria.

Como ensina Luiz Flávio Gomes: “Significa descobrir qual é o bem jurídico protegido e se ele foi concretamente afetado (lesado ou posto em perigo). Só assim pode-se falar em tipicidade” [9]. A moderna fundamentação constitucional estabeleceu freios democráticos ao poder punitivo do Estado, limitando-o às situações de real perigo ou lesão a bens jurídicos relevantes. A função do Direito Penal é proteger os valores mais relevantes da sociedade, não podendo servir como pauta ideológica ou política.

Nilo Batista, ao enfocar a perspectiva funcionalista do Direito, observa que “as condutas desviadas que não afetam qualquer bem jurídico não pertencem ao âmbito da tutela penal [10]. Lembrando novamente a lição de Luiz Flávio Gomes: “Não se afina com nosso direito positivo a postura doutrinária que procura fundamentar o injusto penal, exclusiva ou prioritariamente, no desvalor da ação. Fundamental é a existência do resultado” [11].

Damásio de Jesus também entende que o Direito Penal só deva ser aplicado quando a conduta ofende um bem jurídico, provocando-lhe um dano ou um perigo real, concreto (nullum crimen sine injuria) [12]. A atuação repressivo-penal pressupõe que haja um efetivo e concreto ataque a um interesse socialmente relevante, isto é, um real perigo ao bem jurídico [13]. “Por ello, el castigo no deberá ser un homenaje gratuito a la ética, religión o al sentimiento de venganza, sin una amarga necesidad [14].”

Ultima ratio

O Direito Penal não tutela todos os bens jurídicos, apenas aqueles cuja violação é considerada mais grave, não alcançando condutas de escassa lesividade: a intervenção somente ocorre nos casos que possuam algum tipo de gravidade. A isso dá-se o nome de caráter fragmentário do Direito Penal [15]. Daí decorre a subsidiariedade, pois o Direito Penal só deve atuar quando os controles formais e sociais se revelarem ineficazes para essa tutela. Sua intervenção só deve operar quando fracassarem as demais barreiras protetoras do bem jurídico predispostas por outros ramos do Direito (ultima ratio) [16].

Além disso, tem por finalidade exclusiva a proteção de bens jurídicos, não se prestando a tutelar a moral, a religião, uma determinada ideologia nem tampouco a invadir o âmbito do direito administrativo. “O direito penal pode e deve ser conceituado como um conjunto normativo destinado à tutela de bens jurídicos, isto é, de relações sociais conflitivas valoradas positivamente na sociedade democrática[17].

O abuso do Direito Penal ou o atropelo de regras processuais para atingir objetivos políticos ou pessoais, revela nada menos do que desprezo à Constituição brasileira e ao Estado Democrático de Direito. Konrad Hesse assinala que “(..) aquilo que é identificado como vontade da Constituição deve ser honestamente preservado, mesmo que, para isso, tenhamos de renunciar a alguns benefícios, ou até a algumas vantagens justas. Aquele que não se dispõe a esse sacrifício, malbarata, pouco a pouco, um capital que significa muito mais do que todas as vantagens angariadas, e que, desperdiçado, não mais será recuperado[18].

 


[1] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 2024, p. 49.

[2] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal cit, p. 122 a 124.

[3] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 2024, p. 50.

[4] JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal: Parte General. 3ª ed. Barcelona: Bosch, 1981, p. 34.

[5] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Admiistrativo. 15ª ed. SP: Malheiros, 2006, p. 451.

[6] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. SP: Saraiva. 31ª ed. 2024, p. 444.

[7] SILVA, Marco Antonio Marques da. Acesso à Justiça Penal e Estado Democrático de Direito.  1ª ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p. 5.

[8] CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Direito penal na Constituição. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 14.

[9] GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Ofensividade no Direito Penal. SP: RT, 2002, p. 103.

[10] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro, 2007, p. 92-94.

[11] GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Ofensividade no Direito Penal. SP: RT, 2002p. 62.

[12] ESTEFAM, André; JESUS, Damásio de. Parte Geral. 37. ed. São Paulo: Saraiva, 2020. E-book. p. 56

[13] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 28 ed. São Paulo: Saraiva, 2024. p. 62.

[14] BATARRITA, Asúa, Reinvindicación o superación del programa de Beccaria, en El pensamiento penal de Beccaria: su actualidad, Bilbao, Universidad de Deusto, 1990, p. 20.

[15] ESTEFAM, André; JESUS, Damásio de. Parte Geral. 37. ed. São Paulo: Saraiva, 2020. E-book. p. 56.

[16] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990. p. 84.

[17]. GOMES, Luiz Flávio. Princípio da ofensividade no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 43.

[18] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad Gilmar Mendes. Porto Alegre: Sergio. A. Fabris, Editor, p. 22 (a obra de Walter Burckhardt, citada pelo jurista alemão, é Kommentar der Schweizerichen Bundesverfassung, de 1931)

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

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