Opinião

A "lei da turba": a advertência de Abraham Lincoln

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  • é advogado mestrando em Segurança Pública Cidadania e Direitos Humanos (UERR) especialista em Direito Público e ex-membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais (CFOAB).

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26 de abril de 2025, 13h21

Abraham Lincoln, em Springfield, Illinois (1838), proferiu um dos seus mais brilhantes discursos. Ele se referiu incisivamente ao crescente desrespeito pela lei que permeava o país e a disposição de substituir o julgamento sóbrio dos tribunais por paixões selvagens e furiosas.

Reprodução

Esse alerta se refere aos efeitos do que chamou de “lei da turba”, pois, quando os homens decidem enforcar “assassinos”, devem se lembrar de que, na confusão que geralmente acompanha tais transações, terão a mesma probabilidade de enforcar ou queimar alguém que não seja um “assassino”.

E não apenas isso. Os inocentes — aqueles que sempre se opuseram às violações da lei em todas as suas formas —, assim como os culpados, caem vítimas dos estragos da lei da turba; e assim continua, passo a passo, até que todos os muros erguidos para a defesa das pessoas sejam pisoteados e desconsiderados.

A lei da turba começa sob o pretexto de enforcar os “bandidos”. Depois, já não se tem mais noção em diferenciá-los e, no fim das contas, ela passa a ser um fim em si mesma.

8 de janeiro de 2023

Antes e após o resultado final das eleições de 2022, manifestantes se reuniram com o objetivo de externar o seu descontentamento com a derrota do então presidente da República. Da estratégia inicial de fechamento das rodovias, passou-se a alardar a convocação das Forças Armadas como a última trincheira contra os resultados das urnas, invocando a Constituição para que os militares fossem utilizados sob o fundamento do artigo 142.

As manifestações passaram a se concentrar em frente aos quartéis justamente com esta finalidade: que as Forças Armadas garantam a lei e a ordem do país. Intervenção militar já! Uma típica insurreição, que em certa medida pode ser comparada, embrionariamente, com ações graves ocorridas nos Estados Unidos, que ocasionaram a invasão do Capitólio, ou ainda mais desastrosas, como a situação de Mianmar (2020), em que militares do país alegaram fraude eleitoral e decretaram estado de emergência por um ano, fechando, assim, o Parlamento.

É aqui que precisamos relembrar as enfáticas palavras de John Adams, segundo presidente dos EUA, ao dizer que “a democracia é um regime que garante a manutenção de suas balizas mesmo na inconstância do povo e da vontade de um presidente. A inconstância do povo se refere ao revés eleitoral que sofreu nas urnas”. (SOUTO, SUPREMA CORTE DOS EUA. 2019, p. 100).

Spacca

Isso, embrionariamente, resultou nos eventos do dia 8 de janeiro de 2024 que, notadamente, extrapolaram os limites do que podemos constitucionalmente entender como exercício da liberdade de expressão. Tais eventos resultaram em prisões e ações penais propostas pela Procuradoria-Geral da República, visando a punir os envolvidos e supostos arquitetos dos atos ilícitos, passando tais processos a tramitarem na Suprema Corte do país.

Desses processos, resultaram diversas condenações criminais, de modo a estabelecer um padrão punitivo elevado (pena máxima), sem aferição de distinções que pudessem indicar critérios a possíveis “turbadores” e lideranças políticas que incitaram ou fomentaram a cooptação das Forças Armadas a um golpe de estado.

Anistia

A partir disso, cresceu no Congresso, especialmente na Câmara dos Deputados, o debate sobre a utilização do instituto da anistia. Aparentemente, pode-se visualizar o interesse de extensão dessa medida a todos aqueles que estejam presos, processados ou condenados por atos decorrentes do dia 8 de janeiro.

A justificação nasce de uma possível desproporcionalidade (dosimetria) das penas e da condição subjetiva de determinadas pessoas envolvidas, que supostamente se limitaram a depredar o patrimônio público ou a praticar atos conexos, sem vinculações, em tese, com o comportamento doloso de romper com a ordem democrática.

Internalizo essa proposta, inicialmente, como um instrumento de atuação legítima do Parlamento, desde que se promova um debate sério e responsável que possa conduzir à análise de cada caso e aferir possíveis distorções técnicas, de modo a estabelecer o equilibro e a justa medida da individualização das penas, cumprindo-se a missão constitucional de punir os depredadores e os mentores da tentativa de rompimento das instituições e da ordem democrática com rigidez peculiar, distinguindo-se daqueles agiram por desinformação, engajamento emocional ou imaturidade política.

Por isso, o rigor deve se voltar especialmente aos que tentaram coaptar as Forças Armadas para dela fazer um instrumento poder, como se a democracia fosse um jogo que só uma determinada pessoa pudesse ganhar.

Considerações finais

O enredo dessa história demonstra, com clareza, que a advertência de Abraham Lincoln sobre a “lei da turba” deve ser aplicada com especial rigor ao Estado-Juiz. Em um regime fundado na Constituição, não se pode admitir que o próprio Poder Judiciário, diante da gravidade de determinados atos, abandone o seu papel contramajoritário e se alinhe a uma lógica de punição indistinta e emocional.

A tentação de reagir com severidade homogênea pode parecer, em um primeiro momento, uma resposta proporcional e necessária. Mas, em verdade, ela compromete os pilares da ordem constitucional, ao enfraquecer o princípio da individualização da pena, o devido processo legal e a presunção de inocência — conquistas civilizatórias que não podem ser relativizadas mesmo diante de crises institucionais.

O verdadeiro teste de fidelidade à Constituição se dá justamente quando ela precisa proteger os direitos daqueles que dela parecem indignos. O Estado democrático de direito se sustenta não apenas na força da lei, mas na legitimidade das decisões judiciais e na confiança que elas são capazes de gerar, inclusive — e especialmente — quando julgam seus próprios opositores.

Os desígnios da democracia repousam no poder de persuasão das decisões judiciais e, sobretudo, na confiança social que elas são capazes de preservar, especialmente quando o Estado-Juiz se vê diante daqueles que o desafiam ou se colocam como seus inimigos.

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Referências

Lincoln, Abraham, 1809-1865 – Discursos 2. Presidentes – Estados Unidos – Biografia 3. Estados Unidos – Política e governo, 1815-1861 I. Lincoln, Abraham, 1809-1865 II. Bernstein, R. B. III. Furieri, Flávio

SOUTO, João Carlos. Suprema Corte dos Estados Unidos: principais decisões — 3. ed. — São Paulo: Atlas, 2019.

Autores

  • é diretor de Previdência do RPPS-RR, advogado, mestre em Cidadania e Direitos Humanos (UERR), especialista em Direito Público, ex- membro da Comissão de Estudos Constitucionais do CFOAB.

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