Opinião

Regular para seguir em frente

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29 de abril de 2024, 6h09

Nunca a humanidade enfrentou tantas mudanças simultâneas, radicais e rápidas como nos tempos atuais. A revolução digital está transcendendo fronteiras e levando para além das redes sociais uma onda de mudanças nas relações sociais e trabalhistas, inundando os campos da economia e da política para além das artes e da cultura — ou seja, tudo o que molda o próprio comportamento humano e estabelece parâmetros para a vida comunitária.

Os novos tempos exigem novas regras, novos pactos e, sobretudo, uma compreensão ampla dos novos caminhos e desafios que se desenham no horizonte após esse tsunami de novidades. O grande desafio não é entrincheirar as instituições, mas domar a onda de transformações que nos prepara para surfar nos novos desafios e alcançar as imensas oportunidades trazidas pela era da inovação digital em termos de promover maior e melhor integração entre as nações e seus povos.

O Parlamento Europeu aprovou uma Lei sobre Inteligência Artificial (IA), um documento longo e um tanto complexo, em 13 de março. No Brasil, há poucos dias, o Senado começou a discutir um projeto de lei para estabelecer um Marco Regulatório da IA, enquanto a Câmara dos Deputados criou um grupo de trabalho para debater a regulação das redes sociais.

O Brasil também passou a defender a necessidade de regulação internacional das plataformas digitais perante organismos internacionais (G20 e ONU). Em vigor há dez anos, a lei do regime civil do uso da internet (Lei 12.965, de 23/4/2014) tem algumas normas contestadas e está prestes a ter sua constitucionalidade apreciada pelo STF.

A Justiça Eleitoral vem revendo e endurecendo a regulamentação da utilização de IA e redes sociais nas campanhas eleitorais, aprendendo a cada eleição.

Apesar desse contexto, ainda há muito a ser feito. Quando as normas jurídicas estão em vigor, ou são muito novas, ou as antigas sofrem com desafios jurídicos, há dificuldades em sua implementação e, sobretudo, podem ter se tornado obsoletas diante de mudanças tão bruscas e rápidas.

Quanto às novas propostas, elas às vezes enfrentam resistências, seja de empresas que se sentem ameaçadas, seja dos usuários de boa-fé, seja daqueles que abusam das ferramentas digitais para distorcer mensagens, especialmente políticas.

Diante da penetração e predominância da internet na vida de cidadãos, empresas e governos, uma primeira onda de regulação visou tutelar minimamente os direitos, garantias e deveres de seu uso. São os chamados marcos civis básicos.

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Na medida em que o mundo digital tem se tornado cada vez mais baseado no acesso, tratamento e leitura de dados, uma segunda onda de regulação tem sido movida para cuidar da proteção do sigilo e da integridade dos dados individuais. Regular o funcionamento das próprias redes sociais sempre foi um tremendo desafio nas democracias e engloba diferentes aspectos, inclusive de soberania nacional.

O advento do uso intensivo da inteligência artificial generativa criou um novo desafio regulatório. A Europa fez enormes e recentes progressos neste domínio, e a sua experiência deve ser conhecida e debatida noutras regiões.

A influência decisiva das redes sociais e dos aplicativos de mensagens na política, nas eleições e nas disputas de poder também está exigindo iniciativas regulatórias em todo o mundo. Há muitas perguntas para discutir e responder.

Qual a responsabilidade das redes sociais pelo conteúdo que seus usuários postam? As empresas argumentam que são simplesmente “meios”, plataformas usadas por terceiros para a disseminação de opiniões e conteúdos. Mas será que eles são realmente apenas um ambiente onde todos postam o que querem?

Qual é o papel e o peso dos algoritmos de distribuição e visibilidade de mensagens? Quais são os critérios desses algoritmos para distribuir mensagens para mais ou menos usuários? O funcionamento e os parâmetros desses algoritmos não deveriam ser públicos e transparentes para garantir que grupos de opinião ou mensagens não sejam arbitrariamente beneficiados ou prejudicados?

Uma rede social tem a obrigação de ser politicamente “neutra”? Ou, como jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão, os meios de comunicação podem adotar posições políticas de sua escolha?

A polêmica que serve de pano de fundo para essas questões é: a liberdade de expressão é um valor absoluto? Ou deveria ser relativa, para que a democracia e a sociedade se protejam de claras ameaças? A tradição cultural dos países, em alguma medida, dita os limites: qualquer cidadão é livre para expressar o racismo? Ou incitar crimes? Ou promover a derrubada violenta de governos? Ou infringir outros aspectos da liberdade e dos direitos individuais?

O paradoxo de Popper se materializa: as sociedades devem ser tolerantes com os intolerantes que pregam a extinção da tolerância e da liberdade?

Monopólio ou oligopólio

Grandes redes sociais e aplicativos de mensagens são empresas que exigem uma grande quantidade de capital para se estabelecer e liderar. De certa forma, eles operam em  ambiente que tendem ao monopólio ou oligopólio.

Eles estão organizados em estruturas transnacionais. Isso dificulta o estabelecimento de padrões aceitáveis de operação e prestação de contas, já que as empresas são divididas em partes interdependentes, mas legalmente isoladas.

Acreditamos que é essencial entender e regular o uso e abuso da internet em geral, abordar as plataformas e redes sociais como várias outras atividades econômicas e sociais são reguladas, especular sobre as consequências de futuras aplicações da inteligência artificial e especular sobre as consequências de futuras aplicações da inteligência artificial generativa, entre outras questões.

São diferentes temas, objetos e objetivos que o mundo digital tem em comum. Talvez uma abordagem ainda mais inovadora seria reunir num único ato, num código, toda esta regulamentação necessária, mas complexa, diversa e provavelmente divergente. Sem dúvida, facilitaria tanto para os agentes públicos quanto para o setor privado encontrar todas as regulamentações, das mais básicas às mais específicas, em um único ato jurídico: um código do mundo digital de um país.

Série de encontros

É preciso mais discussão. Se os problemas já são bem conhecidos, alternativas e soluções precisam ser apontadas. O Fibe (Fórum de Integração Brasil-Europa) inaugura em 2024 uma nova série de encontros que visam discutir as transformações provocadas pela revolução digital e discutir caminhos para restaurar a integração, o progresso e o bem-estar.

O primeiro fórum será neste dia 3 de maio, em Madri, dedicado ao tema “Revolução Digital e Democracia”, realizado com o apoio do IDP e FGV Conhecimento, organismos multilaterais como OEI, Sige e Casa de America, mais a Embaixada brasileira na Espanha, reunindo agentes públicos e especialistas, brasileiros, espanhóis e demais europeus, de diferentes perfis e origens.

Enfim, é um primeiro passo para dar subsídios às decisões dos países e sociedades para estabelecer melhores regras e padrões, monitorar seu funcionamento e responsabilizar aqueles que não cumprem a lei. Já passa a hora de se discutir e se regulamentar o mundo digital como já se faz com o mundo analógico.

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