Dignidade e acolhimento

Resolução para presos LGBTQIA+ é avanço, mas deve sofrer resistência

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27 de abril de 2024, 9h52

Especialistas entendem que resolução pró-direitos de presos LGBTQIA+ é um avanço

O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) publicou no dia 26 de março a Resolução Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+ 2/2024, que estabeleceu parâmetros nacionais para o acolhimento de pessoas LGBTQIA+ no sistema carcerário.

O texto da resolução assegura às pessoas autodeclaradas mulheres e homens transexuais, travestis e pessoas não binárias o direito de escolher uma unidade prisional masculina ou feminina para cumprir a sentença. E também a possibilidade de ficar em uma ala específica para pessoas LGBTQIA+ na prisão escolhida.

Estudiosos do assunto ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico enxergam a medida de maneira positiva, mas admitem que será difícil aplicá-la. O ministro Sebastião Reis Jr., do Superior Tribunal de Justiça, acredita que o Estado terá problemas para colocar a resolução em prática em razão da falta de estrutura do sistema prisional, tanto no aspecto físico quanto pela falta de pessoal com treinamento adequado para lidar com a questão.

“Outro ponto é a resistência não só de parte substancial da sociedade, que é resistente a qualquer direito em favor do preso, seja ele LGBT ou não, como do meio político, refratário, em boa parte, a qualquer avanço no tratamento de pessoas LGBT. Por coincidência, vi hoje, para mostrar as dificuldades práticas na aplicação dessa resolução, a notícia de apresentação pelos deputados Rodrigo Valadares (União Brasil) e Júlia Zanatta (PL) de decreto legislativo que tem por objetivo sustar a medida”, diz o ministro.

Um dos magistrados brasileiros mais atentos aos dramas do sistema prisional do país, Reis Jr. é autor do livro Translúcida (Amanuense, 2023), obra que reúne fotos de sua autoria de pessoas transgênero recolhidas em estabelecimentos penais, além de reflexões sobre o tema em formatos variados — contos, estudos técnicos e poemas.

O ministro vê com preocupação a possibilidade de resistência à resolução, já que seu conteúdo cuida de outras questões, além do direito de escolha da unidade prisional. “O Judiciário, e agora o Executivo, tem avançado na garantia do direito das pessoas LGBT recolhidas ao sistema prisional, mas o avanço é lento e difícil.”

Necessidade de monitoramento

Camila Galvão Tourinho, coordenadora do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, também acredita que a medida é positiva, mas ela também entende que haverá forte resistência das autoridades penitenciárias. Por isso, a defensora acredita que será necessário um monitoramento ativo do sistema de Justiça para garantir o direito dos presos.

Um outro ponto da resolução destacado por Camila é o que veta o uso de alas e celas destinadas às pessoas LGBTQIA+ para a aplicação de medidas disciplinares, ou para a separação de acusados de crimes contra a dignidade sexual.

Já o advogado e conselheiro do CNPCP Alexander Barroso destaca que, conforme as novas regras, basta a autodeclaração para que o detento passe a ser reconhecido como uma pessoa LGBTQIA+. Assim, não será mais necessária a apresentação de documentos ou a cirurgia de redesignação sexual para comprovar pertencimento ou identidade.

“O Estado brasileiro tem o dever de acolher e proteger essas pessoas. Era premente que o CNPCP, juntamente com o CNLGBTQIA+, atualizasse essa resolução, adequando-a à realidade atual da nossa sociedade. O trabalho de revisar normas que necessitam ser alteradas garante dignidade à população LGBTQIA+ privada de liberdade e inclui um marco civilizatório no nosso rol de normativos”, defende Barroso.

Regras conflitantes

Além da provável resistência do sistema prisional, normas estaduais também podem atrapalhar a aplicação da resolução do CNPCP. Um exemplo: recentemente, a Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo editou a Resolução 27/2024, que instituiu parâmetros para o atendimento à população LGBTQIA+ privada de liberdade.

“Apesar de se tratar de normativa que avança em relação à norma anterior (Resolução SAP 11/2014), ela prevê que a manifestação de vontade da pessoa presa quanto a seu local de custódia deve ser submetida à análise da Coordenação da SAP ou da direção da unidade prisional, conferindo amplo poder à autoridade administrativa, sem prever mecanismo de imediato controle judicial, o que contraria o teor da Resolução CNJ 348/2020 e da Resolução Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+ nº 2/2024”, explica Camila Tourinho.

Para a defensora, esse tipo de conflito entre normas demandará a atuação dos órgãos do sistema de Justiça para garantir que o Judiciário atue nos casos em que a manifestação da vontade da pessoa presa for contrariada por decisão administrativa.

Outro ponto da Resolução 27/2024 da SAP paulista que pode criar conflitos é o artigo 9º, que determina que as regras de alocação de pessoas LGBTQIA+ em unidades prisionais conforme sua manifestação de vontade devem ser “compatibilizadas” com o artigo 21 da Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869), que define como crime a manutenção de pessoas “de ambos os sexos” em uma cela.

“Esse dispositivo vem sendo historicamente utilizado pela SAP para deixar de inserir mulheres transexuais não operadas em unidade prisional de perfil de acordo com a sua identidade de gênero, como ocorreu no caso concreto que deu ensejo à decisão do Supremo Tribunal Federal na Rcl. 60.580/SP, que fixou o entendimento de que a cirurgia não é requisito para a transferência de mulher transexual a unidade feminina”, pondera a defensora.

Segundo Camila, o dispositivo da Lei de Abuso de Autoridade deve receber interpretação conforme a Constituição, caso contrário resultará em evidente discriminação às pessoas LGBTQIA+ que se manifestarem pelo cumprimento da pena em unidade prisional de perfil diverso de seu sexo biológico.

Algum otimismo

O advogado e professor de Direito da Execução Penal José Flávio Ferrari encara a aplicação da resolução de modo mais otimista. “Apesar de não ser um arco-íris, a norma deposita sobre a pessoa um mínimo poder de escolha para a própria garantia contra maior marginalização, evitando exposição a risco de violência, maus-tratos ou abusos físicos, mentais ou sexuais”, afirma ele.

Para Ferrari, um dos temas mais controversos do documento diz respeito à possibilidade de falsidade da autodeclaração do apenado. Contudo, mesmo essa questão foi tratada corretamente na resolução, em seu entendimento.

“Nesse caso, será instaurado procedimento para apurar a falsidade, com respeito ao contraditório e à ampla defesa, medida necessária diante dos possíveis desastres criminais da autodeclaração falsa. A apuração será feita por vários profissionais com o objetivo de verificar se a autodeclaração da pessoa privada de liberdade não corresponde à sua vivência, experiências e/ou reconhecimento social como pessoa LGBTQIA+.”

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