Opinião

Os avanços da consensualidade no Supremo: uma corte multiportas

Autor

  • Trícia Navarro Xavier Cabral

    é juíza de Direito no Tribunal de Justiça do Espírito Santo pós-doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) doutora em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) mestre em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e juíza auxiliar da Presidência do CNJ.

15 de abril de 2024, 16h20

Comemorou-se no dia 25 de março de 2024 o bicentenário do constitucionalismo no Brasil, quando entrou em vigor a Constituição Política do Império do Brazil (1824), primeira da história brasileira, que foi imposta por dom Pedro 1º e vigorou por 65 anos. A Carta estabeleceu diversos direitos individuais e criou o Supremo Tribunal de Justiça, atualmente Supremo Tribunal Federal.

Pedro Américo/Reprodução

Nela continha um dispositivo disruptivo até para os dias atuais: “Art. 161. Sem se fazer constar, que se tem intentado o meio da reconciliação, não se começará Processo algum[1]. Assim, o ajuizamento de uma demanda era condicionado à tentativa prévia de autocomposição pelas partes.

Nada mais moderno, sensato e racional. Essa previsão constitucional sinalizou a prevalência da consensualidade sobre a contenciosidade. Infelizmente, o texto não se manteve nem no âmbito constitucional, nem no processual.

O Poder Judiciário brasileiro alcançou o número de aproximadamente 83 milhões de processos em tramitação [2], comprometendo a celeridade e a eficiência da prestação jurisdicional, realidade que ainda é agravada pelo baixo custo da judicialização no país.

Esse diagnóstico afeta não só a ordem interna e o sistema de Justiça, mas também os investimentos externos no Brasil, conforme constatado no Doing Business [3], relatório realizado pelo Grupo Banco Mundial que avalia o ambiente de negócio em 190 economias, tendo o Brasil ficado na posição 124 do ranking.

Em 2021, foi publicado um relatório subnacional do Brasil, que incluiu a verificação em 27 localidades brasileiras. Um dos marcadores foi a avaliação do sistema de justiça, especialmente para a execução de contratos.

Entre as principais constatações, estão problemas com o tempo e o custo das disputas judiciais, a falta de gestão processual, a necessidade de aumento de acordos, celeridade nos julgamentos e redução do acervo processual.

Os obstáculos ao acesso à justiça são objeto de estudos desde a década de 60, com destaque ao Projeto de Florença coordenado por Mauro Cappelletti, em colaboração com Bryant Garth e Nicolò Trocker, em que restaram sistematizadas ondas renovatórias [4] capazes de enfrentar as barreiras identificadas.

O tema continua sendo alvo de atenção no mundo contemporâneo, conforme se extrai do Global Access to Justice Project, que possui o objetivo fundamental de pesquisar e identificar soluções práticas para melhorar o acesso à justiça, formando uma rede internacional de pesquisadores advindos de todas as partes do mundo, e em uma escala global sem precedentes [5].

Richard Susskind, ao refletir sobre o futuro da Justiça, afirma que a plena aptidão de um sistema para promover o acesso à Justiça reclama não apenas a resolução dos dissentimentos emergentes (dispute resolution), mas também a capacidade de minorar sua escalada (dispute containment); prevenir novos conflitos em campos específicos (dispute avoidance) e promover o aprimoramento da sociedade para a consciência legal (legal health promotion) [6].

Incremento da consensualidade no STF

Na última década, importantes modificações legislativas têm transformado o nosso sistema jurídico em uma Justiça multiportas, que contempla diferentes métodos e ambientes de resolução de conflitos [7], com priorização à solução consensual.

Esse novo formato de resolução de disputas deve ser promovido em todos os graus de jurisdição, inclusive no âmbito do Supremo Tribunal Federal, que também enfrenta intensa judicialização. De acordo com o painel estatístico do Corte Aberta, o tribunal possui um acervo de 21.953 processos em tramitação, com uma produtividade altíssima de decisões pelos ministros [8].

Reprodução/STF

A boa notícia é que a jurisdição constitucional brasileira também tem se modernizado, o que inclui a progressiva receptividade ao princípio da consensualidade, de matriz constitucional. Embora pouco percebido, o preâmbulo da Constituição de 1988 prestigia de forma evidente a solução consensual dos conflitos, na busca de uma “[…] sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias […]”.

Assim, o Supremo Tribunal Federal, ao lado do exercício da atividade jurisdicional tradicional (adjudicatória), tem promovido importantes inovações nos casos que lhe são submetidos, com especial ênfase ao incremento da consensualidade.

Na Presidência do ministro Luís Roberto Barroso, por meio do Ato Regulamentar nº 027 de 12 de dezembro de 2023, foi criada uma estrutura vinculada à Secretaria-Geral denominada Assessoria de Apoio à Jurisdição (AAJ) que, como o próprio nome indica, objetiva assessorar a Presidência e os gabinetes de ministros.

Ela é composta por três órgãos: (1) Núcleo de Processos Estruturais e Complexos (Nupec); (2) Núcleo de Solução Consensual de Conflitos (Nusol); e (3) Núcleo de Análise de Dados e Estatística (Nuade). Essa interdisciplinaridade e comunhão de expertises já vem apresentando resultados importantes no tratamento de controvérsias perante o STF.

O Nusol visa implementar soluções consensuais de conflitos processuais e pré-processuais, bem como promover a cooperação judiciária do STF com os demais órgãos do Poder Judiciário. O núcleo pode atuar, por exemplo: 1) no auxílio à triagem de processos que, por sua natureza, permitam a solução pacífica; 2) na realização ou no apoio à realização de sessões de conciliação ou mediação, ou com o uso de outro método adequado de tratamento de controvérsias, por solicitação do Relator; e 3) na promoção da cooperação judiciária, sempre consensual, entre STF e demais órgãos do Poder Judiciário, bem como com outros atores do sistema de justiça e da sociedade civil organizada.

Panorama dos acordos

A atuação dialogada da corte tem propiciado um considerável aumento de acordos no âmbito do STF, o que pode ser constatado por meio dos painéis que atualmente são disponibilizados no site [9]. Até dezembro de 2023, o STF havia registrado o total de 31 acordos. Em 2024, somente até abril, já foram catalogados 12 acordos cíveis, isso desconsiderando os acordos de não persecução penal que também constituem forma de consensualidade e vem sendo fomentada no Supremo.

Não obstante, observa-se o uso de diferentes técnicas autocompositivas, como conciliação, mediação, calendário processual, voto conjunto, entre outras.

Como exemplos, cite-se o acordo formulado na ADI nº 7.486, de relatoria do ministro Dias Toffoli, que trata dos concursos da Polícia Militar do Estado do Pará, cujos editais constavam restrições à participação de mulheres no certame. Após audiência de conciliação, o Estado do Pará concordou em prosseguir nas etapas do certame mediante a exclusão da limitação de gênero. Com a homologação do acordo, destravou-se o concurso, evitando-se prejuízos aos quadros da Polícia Militar.

No ARE 1.380.067, de relatoria do ministro André Mendonça, durante a audiência de conciliação as partes celebraram um calendário processual, solicitando a suspensão do feito para o estabelecendo de comunicação direta e extrajudicial para a troca de documentos e informações aptos a subsidiar uma tentativa de acordo.

A ADPF 635 [10], de relatoria do ministro Edson Fachin, que trata da letalidade policial no Rio de Janeiro, pode ser considerada um case interessante nessa temática. Os autos foram encaminhados aos Núcleos de Solução Consensual de Conflitos e de Processos Estruturais e Complexos para, por meio do diálogo, auxiliar o Relator a monitorar o cumprimento das determinações ao estado do Rio de Janeiro.

Foi designada uma audiência de contextualização, de conteúdo eminentemente técnico, com objetivo de colher informações e esclarecimentos para subsidiar a tomada de decisão, alinhando as expectativas dos envolvidos, sem prejuízo de propiciar alguns consensos acerca de pontos específicos.

Ademais, em setembro de 2023, o ministro Gilmar Mendes, relator do Recurso Extraordinário (RE) 1.366.243, com repercussão geral (Tema 1.234) [11], criou uma comissão que analisa fornecimento de medicamentos pelo SUS para tentar buscar um consenso entre os entes federados e a sociedade sobre o assunto.

Uma última inovação no tema da consensualidade tem sido os votos conjuntos feitos pelos ministros do STF, como ocorreu no julgamento do segundo referendo de medida cautelar na ADI 7.222, que trata do piso salarial nacional da enfermagem, em que os ministros Luís Roberto Barroso (relator) e Gilmar Mendes (vistor) apresentaram “voto complementar conjunto” [12]. Também na ADI 2.943, que versa sobre o poder de investigação penal pelo Ministério Público, houve apresentação de voto conjunto pelos ministros Edson Fachin (relator) e Gilmar Mendes.

Evidencia-se, portanto, que o Supremo Tribunal Federal tem se consagrado com uma corte multiportas, propiciando inovação e modernidade no âmbito da jurisdição constitucional.

 


[1] BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brazil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm. Acesso em: 29 mar. 2024.

[2] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Painel de estatística CNJ. Disponível em: Estatísticas do Poder Judiciário (cnj.jus.br). Acesso em: 1º dez. 2023.

[3] WORLD BANK GROUP. Subnational Doing Business in Brazil 2021. Disponível em: https://subnational.doingbusiness.org/en/reports/subnational-reports/brazil.  Acesso em: 07 abr. 2023.

[4] MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; SILVA, Larissa Clare Pochmann da. Acesso à justiça: uma releitura da obra de Mauro Capelletti e Bryant Garth a partir do Brasil 40 anos depois. Revista Quaestio Iuris, 8(03), 1827–1858. https://doi.org/10.12957/rqi.2015.19385 . Acesso em: 1º dez. 2023.

[5] GLOBAL ACCESS DO JUSTICE PROJECT. Visão Geral do Projeto. Disponível em: Visão Geral do Projeto – Global Access to Justice Project. Acesso em: 1º dez. 2023.

[6] SUSSKIND, Richard. Online courts and the future of Justice. United Kingdon: Oxford University Press, 2019, p. 66-70.

[7] NAVARRO, Trícia. Justiça Multiportas. Indaiatuba: FOCO, 2024.

[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Corte aberta. Disponível em: STF | Corte Aberta | Painéis estatísticos. Acesso em 7 abr. 2024.

[9] Confira: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Núcleo de Solução Consensual de Conflitos (NUSOL). Disponível em: Supremo Tribunal Federal (stf.jus.br). Acesso em: 30 mar. 2024.

[10] O assunto foi tratado em outro artigo pela autora, em coautoria com Matheus Casimiro, denominado Consensualidade em processos estruturais: a experiência do Supremo Tribunal Federal. No prelo.

[11] Cf.: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Comissão que analisa fornecimento de medicamentos pelo SUS fará novas reuniões em abril e maio. Disponível em: Supremo Tribunal Federal (stf.jus.br). Acesso em: 30 mar. 2024.

[12] Confira: GUERREIRO, Mário Augusto Figueiredo de Lacerda; BARBOSA NETO, Dorotheo. Voto conjunto no Supremo Tribunal Federal. Disponível em: Guerreiro e Barbosa: Voto complementar conjunto no STF? (conjur.com.br). Acesso em: 30 mar. 2024.

Autores

  • é pós-doutora em Direito pela USP, doutora em Direito Processual pela Uerj, mestre em Direito Processual pela Ufes, juíza de Direito no TJ-ES, em exercício no cargo de juíza auxiliar do gabinete da Presidência do STF e responsável pelo Núcleo de Solução Consensual de Conflitos, professora da graduação e do gestrado da Ufes, membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). e membro do Instituto Iberoamericano de Derecho Procesal (IIDP).

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