Opinião

Cursos de direito, modalidade EaD e sobrestamento do MEC

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4 de abril de 2024, 18h22

De tempos em tempos, são feitas críticas quanto à abertura de cursos de bacharelado em direito pelo Brasil [1]. Atualmente, segundo dados da Ordem dos Advogados do Brasil, existem cerca de 1.800 cursos de bacharelado em direito no Brasil [2].

Nesta toada, nos idos do ano de 2023, o ministro da Educação, Camilo Santana, por meio da Portaria n° 2.041/2023, sobrestou os processos de autorização de diferentes cursos superiores na modalidade a distância (EaD), dentre eles, o de bacharelado em direito, pelo prazo de 90 dias. Posteriormente, essa mesma portaria teve seu prazo prorrogado pela Portaria n° 158/2024.

Longe de analisar se tal sobrestamento se mostra correto e/ou errado, bem como se devem ser abertos novos cursos de bacharelado em direito, propõe-se uma abordagem diferente.

Ante o tema em voga perante a sociedade, transpondo-se para além dos círculos de juristas, se abre uma oportunidade essencial de pincelar o sistema regulatório da educação no ensino superior, ora existente, especificamente sobre a abertura de cursos, sobre o qual pessoas de direito privado se submetem para participar do ensino superior e que, em última instância, levam ao status quo atual.

O que diz a Constituição

Com essa premissa, deve-se analisar primeiramente a Constituição. De início, destaca-se que o vernáculo “educação” aparece 91 vezes na Carta Magna. Esse vernáculo, no texto constitucional, é quase um camaleão, no sentido de adquirir e transmutar-se em diferentes formas.

Por exemplo, o artigo 6 trata a educação como um direito social, o que por meio de uma hermenêutica sistêmica do ordenamento jurídico, permite sua classificação enquanto um direito individual do cidadão [3], atraindo a incidência do artigo 60, §4, inciso IV, o qual torna a educação uma cláusula pétrea do sistema, não sendo passível de alteração por parte do legislador.

Esse exemplo é importante, na medida que em sendo a educação (e o sistema constitucional existente sobre o tema) uma cláusula pétrea, o Estado, na figura do Ministério da Educação (MEC) e de seu ministro de Estado, para além dos respectivos gestores e funcionários públicos da federação, passa a ter um poder-dever amplo para regulação do ecossistema, conforme se evidencia pelos artigos 22, inciso XXIV, 87, 205 e 209, inciso I e II, os quais, respectivamente:

  • Atribui à União legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional;
  • Outorga poderes ao ministro para exercer orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da administração federal na área de sua competência, cumulado com a expedição de instruções para execução das leis, decretos e regulamentos;
  • Determina a promoção e incentivo da educação, em colaboração com a sociedade, sem prejuízo de classificar a mesma como direito de todos e dever do Estado; e
  • Subscreve a participação de pessoas jurídicas de ente privado em sua seara, desde que cumpridas as normas gerais da educação nacional, com autorização e avaliação por parte do poder público.

Vale fazer um breve parênteses quanto à promoção e incentivo da educação. Quando da Constituinte de 1987/88, existiu-se um lobby histórico de diferentes setores da sociedade civil, em prol de sua expansão [4], cabendo destacar para este estudo o lobby realizado por grupos educacionais.

Foi com a Constituição de 1967 que se previu a participação da iniciativa privada no ensino, o que coincidiu, segundo alguns estudiosos, com a diminuição de investimentos públicos no setor, o que ter-se-ia provocado uma precarização do ensino e levado a um vácuo, preenchido, justamente, pela participação destes grupos educacionais, refletindo posteriormente na expansão da participação da iniciativa privada na Constituinte de 1987/1988 [5].

Feito estes parênteses e retornando a Carta Magna atual, a Constituição também dispõe, em seu artigo 214 e respectivos incisos, uma série de diretrizes que devem ser observadas quando da elaboração do chamado plano nacional de educação, dentre elas a universalização do atendimento escolar.

Conclui-se, portanto, sobre a existência de um poder-dever em se realizar a universalização do ensino, correspondente a uma promoção e incentivo do mesmo, de modo que as pessoas jurídicas de direito privado possuem respaldo para realizarem atividades que, em ultima ratio, tenham como fim propiciar o ensino em todos os níveis educacionais, desde que atendidos os princípios e critérios estabelecidos pelo Estado. Essa característica é essencial para entender a razão para contemporaneamente, por exemplo, existir a atual quantidade de cursos de bacharelado em direito.

Sem prejuízo aos ditames da Constituição, quando o assunto é o ensino superior, há uma pormenorização a nível infraconstitucional.

O que diz a legislação federal sobre a educação no ensino superior

Em consonância com os ditames da Constituição, quando o assunto é regulação do ensino superior, deve-se observar algumas leis federais, importando analisar, acima de todas as outras, a Lei n° 9.439/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional — LDB), considerando o recorte temático deste artigo.

Primeiramente, a LBD proclama uma série de princípios (repetindo aqueles já previstos na Constituição), dentre eles:

  • Educação é um dever da família e do Estado, consubstanciada no princípio de liberdade e nos ideais de solidariedade humana;
  • Ensino ministrado por coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; e
  • Garantia do direito à educação e à aprendizagem ao longo da vida.

Em seu artigo 9°, estabelece uma série de responsabilidades ao Estado, dentre elas:

  • Assegurar um processo nacional de avaliação do rendimento escolar no ensino superior;
  • Garantir um processo nacional de avaliação das instituições de educação superior; e
  • Autorizar, reconhecer, credenciar, supervisionar e avaliar os cursos das instituições de educação superior e os estabelecimentos do seu sistema de ensino.

Paralelamente, a LDB também tem, por exemplo, disposições específicas para pessoas jurídicas de direito privado que desejam atuar no ensino superior, vide as disposições previstas nos artigos 7°, 45° e 46° com seus parágrafos, os quais afirmam, respectivamente:

  • Ensino livre à iniciativa privada, desde que atendidas as condições de cumprimento das normas gerais da educação nacional e do respectivo sistema de ensino, cumulado com a autorização de funcionamento e avaliação de qualidade pelo poder público, sem prejuízo a sua capacidade de autofinanciamento;
  • A educação superior ser ministrável em instituições de ensino superior, públicas e privadas, com variados graus de abrangência ou especialização; e
  • A autorização e o reconhecimento de cursos, bem como o credenciamento de instituições de educação superior, após o processo regular de avaliação, com renovação período, com penalidades, como a desativação de cursos, suspensão temporária de prerrogativas, dentre outros.

Assim, considerando o artigo 9° e 46° da LDB, o governo federal criou o Decreto n° 9.235/2017, o qual dispõe sobre o exercício das funções de regulação, supervisão e avaliação das instituições de educação superior e dos cursos superiores de graduação e de pós-graduação no sistema federal de ensino, ressaltando que para oferta de educação superior à distância, aplica-se, ainda, o Decreto n° 9.057/2017.

O Decreto n° 9.235/2017, por sua vez, trata expressamente das condições para que uma pessoa jurídica de direito privado possa ser credenciada para participar do ensino superior, tornando-se uma Instituição de Educação Superior (IES). Em linhas gerais, o artigo 18 afirma “o início do funcionamento de uma IES privada será condicionado à edição prévia de ato de credenciamento pelo Ministério da Educação”.

Para o pedido de credenciamento (artigo 20 do decreto supracitado), a mantenedora da IES deve apresentar:

  • Atos constitutivos, registrados no órgão competente;
  • Comprovante de inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas do Ministério da Fazenda;
  • Certidões de regularidade fiscal, perante a Fazenda Nacional;
  • Certidões de regularidade relativas à seguridade social e ao fundo de garantia por tempo de serviço;
  • Demonstração de patrimônio suficiente para assegurar a sustentabilidade financeira da IES;
  • Demonstrações financeiras, atestadas por profissionais competentes; e
  • Termo de responsabilidade, assinados pelos representantes legais da mantenedora.

Do lado da IES em si, conforme mesmo artigo, deve a IES apresentar os seguintes documentos:

  • Comprovante de recolhimento das taxas de avaliação externa in loc, realizada pelo Inep;
  • Plano de desenvolvimento institucional — PDI;
  • Regimento interno ou estatuto;
  • Identificação do corpo dirigente e da informação sobre a experiência acadêmica e profissional de cada um;
  • Comprovante de disponibilidade e regularidade do imóvel;
  • Plano de garantia de acessibilidade, bem como laudo técnico emitido por profissional ou órgão público competente; e
  • Atendimento às exigências legais de segurança predial.

Mesmo com a apresentação de todos esses documentos, o Ministério da Educação, através da Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior, deve apresentar um parecer final quanto ao credenciamento ou não da IES, cabendo destacar que com o parecer final, este será encaminhado à Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação (CNE), este responsável por deferir e/ou indeferir o credenciamento.

Apenas com uma IES credenciada, perante o Ministério da Educação, que ela pode requerer a autorização para funcionamento de um curso, sendo que com relação ao curso de direito, especificamente, o artigo 41 do decreto afirma

“a oferta de cursos de graduação em Direito, Medicina, Odontologia, Psicologia e Enfermagem, inclusive em universidades e centros universitários, depende de autorização do Ministério da Educação, após prévia manifestação do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e do Conselho Nacional de Saúde.”

Ou seja, não é necessário autorização da Ordem dos Advogados do Brasil para abertura do curso, tão somente da sua manifestação, apresentando um caráter consultivo e não vinculativo.

Spacca

Inclusive, o § 1° também aduz “§ 1º Nos processos de autorização de cursos de graduação em Direito serão observadas as disposições da Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994″, contudo, o Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil não tem disposições específicas, quanto à abertura de cursos de direito, razão pela qual existe, de tempos em tempos, a propositura de projetos de lei que modificam o caráter consultivo da OAB em um caráter vinculativo [6].

No mais, não uma regra estabelecida no Decreto n° 9.235/2017 ou no n° 9.057/2017 quanto ao Bacharelado em direito ser, necessariamente, presencial ou à distância, na medida que, segundo o Decreto n° 9.057/2017 (artigos 1°, 2° e 4°), para que um curso seja oferecido na modalidade a distância, deve-se observar, tão somente que:

  • Utilize-se meios e tecnologias de informação e comunicação, com pessoal qualificado, com políticas de acesso, acompanhamento e avaliações compatíveis;
  • Observe-se condições de acessibilidade, que devem ser asseguradas nos espaços e meios utilizados; e
  • Atividades presenciais (tutorias, avaliações, estágios, práticas profissionais e de laboratório e de defesa de trabalhos) sejam realidades na sede da IES, polos de educação à distância ou em ambiente profissional, conforme diretrizes curriculares nacionais.

Conclusões

Considerando todo o exposto e, sem necessariamente exaurir o tema, ante sua complexidade, infere-se que a Constituição em diferentes ocasiões explicita a promoção e incentivo da educação, de tal modo que tal incentivo e promoção caracteriza-se como uma cláusula pétrea do sistema. Ainda, permite a participação de pessoas jurídicas de direito privado, desde que cumpridas as normas gerais da educação nacional, com autorização e avaliação por parte do poder público.

Assim sendo, a LDB, com supedâneo constitucional, caminha no mesmo sentido, apresentando-se as regras para participação dessas pessoas jurídicas de direito privado que, em cumprindo as regras estabelecidas, passam a ser IES, com direito a requerer o credenciamento de cursos, dentre esses, o de bacharelado em direito, seja na modalidade presencial, seja na modalidade a distância.

Por fim, a despeito de existir participação da Ordem dos Advogados do Brasil no processo de abertura de cursos, sua participação é meramente consultiva, razão pela qual manifestações contra e/ou favoráveis ao credenciamento de novos cursos de bacharelado em direito não são vinculantes ao MEC.

 


[1] CONSULTOR JURÍDICO. OAB pedirá que MEC barre abertura de novos cursos de Direito por cinco anos. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-12/oab-mec-barre-novos-cursos-direito-cinco-anos/. Acesso em: 14 Mar. 2024

[2] ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Brasil tem 1 advogado a cada 164 habitantes: CFOAB se preocupa com qualidade dos cursos jurídicos. Disponível em: https://www.oab.org.br/noticia/59992/brasil-tem-1-advogado-a-cada-164-habitantes-cfoab-se-preocupa-com-qualidade-dos-cursos-juridicos. Acesso em: 14 de Março 2024

[3]BRANCO, PAULO GUSTAVO GONET. Cláusulas Pétreas. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/21/edicao-1/clausulas-petreas Acesso em: 14 Mar. 2024.

[4] COSTA, Lucas Nascimento Ferraz. Estratégias organizativas do lobby da educação na constituinte 87 – 88. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cp/a/fCFWyvCw8yMynm6pGq9vJWq/?lang=pt#:~:text=O%20constituinte%20destacou%20o%20lobby,%2C%2022%2F08%2F1988. Acesso em: 29 Mar. 2024.

[5] CENTRO DE REFERÊNCIAS EM EDUCAÇÃO INTEGRAL. Qual o legado da ditadura civil-militar na educação básica brasileira? Disponível em: https://educacaointegral.org.br/reportagens/ditadura-legou-educacao-precarizada-privatizada-anti-democratica/. Acesso em: 29 Mar. 2024.

[6] CÂMARA DOS DEPUTADOS. Proposta exige aval prévio da OAB para abertura de cursos de direito. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/692583-PROPOSTA-EXIGE-AVAL-PREVIO-DA-OAB-PARA-ABERTURA-DE-CURSOS-DE-DIREITO#:~:text=O%20Projeto%20de%20Lei%203124,tramita%20na%20C%C3%A2mara%20dos%20Deputados. Acesso em: 30 Mar. 2024.

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