Opinião

Nulidades no direito processual penal: um pouco de Machado e o caso Kiss

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4 de abril de 2024, 15h19

As nulidades no direito processual penal brasileiro são, até hoje, fonte inesgotável de críticas dos processualistas penais garantistas [1].

O artífice intelectual do CPP de 1941 (em vigor atualmente), o então ministro da Justiça Francisco Campos, numa visão extremamente autoritária, assim consignou sobre as nulidades, na exposição de motivos do código:

O projeto não deixa respiradouro para o frívolo curialismo, que se compraz em espiolhar nulidades. É consagrado o princípio geral de que nenhuma nulidade ocorre se não há prejuízo para a acusação ou a defesa. Não será declarada a nulidade de nenhum ato processual, quando este não haja influído concretamente na decisão da causa ou na apuração da verdade substancial. Somente em casos excepcionais é declarada insanável a nulidade.” [2].

O horror às nulidades e o método escolhido para minimizar este problema não foi outro senão adotar o conceito de prejuízo, segundo o qual a nulidade só ocorreria se o ato processual tido como ilegal causasse prejuízo à parte.

Essa ideia de prejuízo, em matéria de nulidades no âmbito do direito processual penal, tem como defensores Ada Pellegrine Grinover e outros:

“Sem ofensa ao sentido teleológico da norma não haverá prejuízo e, por isso, o reconhecimento da nulidade nessa hipótese constituiria consagração de um formalismo exagerado e inútil, que sacrificaria o objetivo maior da atividade jurisdicional” [3].

Voltando mais, o prejuízo, nota-se, vem como categoria adotada por aqueles que defendem a visão unitária de processo, no âmbito da teoria geral do processo, de modo que o processo penal e o não penal compartilhariam de conceitos comuns, dentre estes o prejuízo das nulidades.

É, exatamente, o que defende a mesma autora citada anteriormente e os demais coautores da magnum opus sobre a teoria geral do processo, no Brasil:

Tal princípio [pas de nullité sans grief], formulado legislativamente nesses mesmos termos no direito francês, está presente nos códigos brasileiros: a) mediante expressa referência ao prejuízo como requisito para anulação (CPP, ARTIGO 563 — CPC, artigo 249, § 1º (…)” [4].

Apesar de defenderem a ideia segundo a qual: “No processo penal nota-se a tendência a presumir o prejuízo sempre que a omissão interfira com o direito de defesa”, Aury Lopes Jr. menciona ser outra a realidade, criticando a adoção da categoria do prejuízo e afirmando ser no terreno das nulidades onde a adoção da teoria geral do processo cobra sua fatura mais alta:

Nulidade relativa. Essa é a fatura mais alta que a TGP cobra do processo penal: acabaram com a teoria das nulidades pela importação do pomposo pas de nullité sans grief. Tão pomposo quanto inadequado e danoso. Iniciemos por um princípio básico — desconhecido pela TGP, por elementar: forma é garantia. O ritual judiciário está constituído, essencialmente, por discursos e, no sistema acusatório, forma é garantia, pois processo penal é exercício de poder e todo poder tende a ser autoritário. Violou a forma? Como regra, violou uma garantia do cidadão. E o tal ‘prejuízo’? É uma cláusula genérica, de conteúdo vago, impreciso e indeterminado, que vai encontrar referencial naquilo que quiser o juiz (autoritarismo-decisionismo-espaços impróprios de discricionariedade, conforme Lenio Streck)” [5].

Quem produz nulidades

Fernando Frazão/Agência Brasil
Boate Kiss Santa Maria incêndio

Em regra, nulidades são produzidas pela acusação ou pelo próprio juiz, dificilmente pela defesa [6], e isso pode se dá pela maior ou menor importância que esses sujeitos dão à forma pela qual irá se desenvolver a apuração daquele fato tido, inicialmente, como criminoso.

Na literatura brasileira, Machado de Assis, por meio de seu icônico narrador-personagem Brás Cubas — que comenta sobre seu tio cônego —, demonstrou bem o pensamento que muitos atores processuais têm sobre as nulidades:

Bem diferente era o tio cônego. Esse tinha austeridade e pureza; tais dotes, contudo, não realçavam um espírito superior, apenas compensavam um espírito medíocre. Não era homem que visse a parte substancial da Igreja; via o lado externo, a hierarquia, as preeminências, as sobrepelizes, as circunflexões. Vinha antes da sacristia que do altar. Uma lacuna no ritual excitava-o mais que uma infração aos mandamentos.” [7].

Veja-se, a parte substancial não é outra coisa senão o suposto crime objeto de apuração no processo penal; já o chamado lado externo, a hierarquia, as preeminências, as sobrepelizes, as circunflexões seriam as “filigranas jurídicas”[8], para usar um termo que os críticos das nulidades gostam muito.

Apenas a título de exemplo, talvez esse posicionamento infenso às nulidades seja parte do móvel que levou, recentemente, o STF, pela lavra do ministro Dias Toffoli, a atribuir efeito suspensivo ao recurso do Ministério Público-RS e suspender o processo do caso da Boate Kiss, cancelando a sessão de julgamento — com data marcada: dia 26/02/2024 —, dando mostras que existem sérios riscos de desconsiderarem o posicionamento do STJ, que reconheceu diversas nulidades no caso [9].

Portanto, mesmo operando-se com um sistema de nulidade passível de muitas críticas, como é o brasileiro, se vê que a principal evolução deverá se realizar na mentalidade dos atores processuais.

 


[1] “Questão tormentosa para qualquer ator judiciário comprometido com a Constituição é o instituto das invalidades no processo penal, ou melhor, a prática de atos processuais defeituosos, cuja casuística dificulta sobremaneira o estabelecimento de uma estrutura teórica dotada de suficiência para dar conta de tamanha complexidade”: LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 935.

[2] In: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3689-3-outubro-1941-322206-exposicaodemotivos-149193-pe.html (acesso em 18/02/2024).

[3] GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 6. ed. rev., amp. e atual. 4. tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 26.

[4] ARAÚJO CINTRA, Antonio Carlos de; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrine. Teoria Geral do Processo. 30. ed. rev. amp. e aum. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 397.

[5] LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal. 6ª. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 74.

[6] “O sistema de nulidades está a serviço do réu”: LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 948.

[7] ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas; prefácio de Hélio Guimarães; notas de Maria Senna e Marcelo Diogo. 1ª ed. São Paulo: Pinguin Classics Companhia das Letras, 2014, pp. 64-65.

[8] Sobre isso: https://www.conjur.com.br/2021-dez-03/streck-enesima-vez-garantias-processuais-nao-sao-filigranas/ (acesso em 28/02/2024).

[9] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=526817&ori=1 (acesso em 28/02/2024.)

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