Território Aduaneiro

Lei nº 14.689/2023: o que queremos? (versão aduaneira)

Autor

  • Rosaldo Trevisan

    é doutor em Direito (UFPR) professor assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA) do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI) auditor-fiscal da Receita Federal membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

26 de setembro de 2023, 8h00

O leitor certamente conhece memes, essas verdadeiras manifestações "artísticas" espontâneas da modernidade líquida, descrita por Zygmunt Bauman. E provavelmente também já teve contato com a sequência de "…o que queremos" e "…como queremos". É possível que tenha se divertido nos momentos de procrastinação ao telefone celular com frases do tipo "…o que queremos? Emagrecer"; "…como queremos? Comendo pizza, churrasco, brigadeiro, cachorro quente e tomando cerveja". Ou "…o que queremos? Ficar ricos"; "…como queremos? Vendo idiotices na internet".

Spacca
Nossa conversa de hoje tangenciará o tema desses memes, com olhar aduaneiro sobre a Lei 14.689/2023, publicada na última quinta-feira, dia 21 de setembro, com alguns vetos presidenciais ao texto que constava no Projeto de Lei 2.384/2023, que ficou conhecido como PL do Carf.

O PL se origina do texto da Medida Provisória 1.160, publicada em 12/1/2023, prorrogada em 30/3/2023, e que perdeu sua eficácia em 1/6/2023, tendo se esgotado em 31/7/2023 o prazo para que o Congresso Nacional disciplinasse as relações jurídicas dela decorrentes. E a MP 1.160/2023, por seu turno, objetivou retornar ao cenário anterior à Lei 13.988/2020, que resultou de conversão da MP 899/2019.

O que queria a Lei 13.988/2020? Reduzir o contencioso por meio da transação. E como ela queria? Permitindo a transação no curso do contencioso, e até no processo de cobrança de Dívida Ativa. E criando critério de desempate que incentivava o litígio administrativo.

O PL do Carf, assim como a MP 1.160/2023, tinha cinco artigos, afora o referente à vigência. Dois deles (artigos 1º e 5º) apresentavam a mesma finalidade: retomar o voto de qualidade, revogando a sistemática de "desempate pró contribuinte", inaugurada pelo legislador de 2020. Outros dois (artigos 3º e 4º) tratavam de conformidade e autorregularização (havendo distinções entre as disposições da MP e do PL). E o artigo 4º tratou de aplicar procedimento simplificado a "contencioso administrativo fiscal de baixa complexidade, assim compreendido aquele cujo lançamento fiscal ou controvérsia não supere mil salários mínimos".

O que queriam a MP 1.160/2023 e o PL do Carf? Reduzir a litigância administrativa (e aumentar a arrecadação) [1]. E como eles queriam? Retirando um incentivo à litigância (o critério de desempate acima referido) e reduzindo o estoque de processos no Carf (com filtro de admissibilidade aumentado de 60 para 1.000 salários mínimos).

O leitor que decidir comparar esse PL ao texto resultante do processo legislativo que culminou na Lei 14.689/2023 vai perceber o acréscimo de outros 12 artigos (inclusive tratando de temas como "tecnologia de transgenia ou de licença de cultivares" e "parcela da produção que não seja objeto de repasse ao cooperado", e a exclusão de um artigo (exatamente o referente a "contencioso administrativo fiscal de baixa complexidade") [2].

A quase totalidade dos críticos desse dispositivo entendeu como cerceador do direito de defesa o montante de mil salários mínimos (explicitamente inspirado em igual limite previsto no CPC, artigo 496, § 3º, I), silenciando quanto ao limite que ainda persiste de sessenta salários mínimos, no artigo 23 da Lei 13.988/2020. Ao que parece, não se está discutindo, de fato, cerceamento do direito de defesa, mas apenas qual o valor adequado de corte para definir um contencioso de "pequeno valor" [3].

De fato, o tempo médio de julgamento administrativo, no Carf, de cerca de quatro anos, período que deve ser somado a outros três anos no âmbito das DRJ [4], primeira instância administrativa, caracteriza preocupante morosidade, com descumprimento sistemático do artigo 24 da Lei 11.457/2007: "É obrigatório que seja proferida decisão administrativa no prazo máximo de 360 dias a contar do protocolo de petições, defesas ou recursos administrativos do contribuinte".

Essa ausência de julgamento em prazos razoáveis não é apanágio da administração. Também o Poder Judiciário tem estatísticas preocupantes de duração do contencioso tributário. Um estudo conduzido pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (Etco), em parceria com Consultoria privada, indicou, a partir dos dados abertos do Carf, e de relatórios do CNJ (Justiça em Números), que o tempo de demora na esfera judicial é ainda maior que na administrativa, e "…a conclusão de um processo tributário no Brasil leva em média 18 anos e 11 meses, na soma das etapas administrativas e judiciais" [5].

No caso do contencioso administrativo, em que há norma determinando o prazo máximo de julgamento, o referido artigo 24 da Lei 11.457/2007, é frequente a invocação de tutela judicial (mormente nos casos de pedidos de restituição e compensação) para que o Carf seja compelido a julgar imediatamente processos que se encontram há mais de 360 dias pendentes de decisão.

Ocorre que a quase totalidade dos 88 mil processos do acervo do Carf está nesta situação! Se todos os contribuintes que tivessem processos no CARF há mais de 360 dias postulassem em juízo o julgamento imediato de seus processos, o Carf finalmente seria compelido a uma reforma efetivamente estrutural (voltada ao aumento do número de contenciosos julgados e diminuição das entradas de novos contenciosos, o que implica revisão do número de julgadores e turmas, e busca de mecanismos de atratividade de pessoal qualificado, e redução do índice de rotatividade de julgadores, entre outros fatores), que são muito mais importantes que reformas pontuais seletivas.

E como os artigos inseridos pelo parlamento ao texto do PL buscam a redução do acervo do contencioso administrativo e a manutenção do nível arrecadatório (seja porque esse era o objetivo inicial da MP, seja porque toda despesa criada deve ser acompanhada de indicação de fontes de receita)? É isso que veremos, em algumas das medidas, citadas aqui a título exemplificativo, pelas limitações de espaço desta coluna. Demos preferência, por certo, às medidas com maior impacto em temas aduaneiros.

A primeira delas já foi tratada por Liziane Angelotti Meira em coluna do "Território Aduaneiro" [6], e abre verdadeira "caixa de Pandora" ao mesclar o contencioso entre fisco e contribuinte com eventual contencioso entre órgãos da administração pública, tratado sob sistemática distinta. Na área aduaneira, o artigo 14-B, que seria introduzido no Decreto 70.235/1972, e que foi (a nosso ver, corretamente) vetado, é ainda mais inadequado, porque há elevada gama de atividades previamente autorizadas por órgão reguladores, que atuam dentro de suas competências, administrando atos concessórios de regimes (v.g., Secex), emitindo licenças (v.g., Anvisa), que não se confundem com atividades tratadas no contencioso previsto no Decreto 70.235/1972. Em outras palavras, o contencioso do Decreto 70.235 jamais trata de recursos a indeferimentos de atos concessórios a serem emitidos pela Secex ou de não concessão de licença por órgãos reguladores [7].

Outro artigo com forte impacto na área aduaneira se encontra ao final do texto, e também foi vetado, para o bem do controle aduaneiro. Trata-se do artigo 14, inserido no processo legislativo, que mais parece Exposição de Motivos, ao afirmar textualmente na norma que o entendimento ali externado é "…referendado por decisões do Supremo Tribunal Federal". Caso o texto esteja a tratar tão-somente de multas por falta de pagamento de tributos (descumprimento da obrigação principal), faria sentido limitar os lançamentos a 100% do valor do tributo, o que, diga-se, é bem razoável e está, de fato, em linha com o entendimento da Suprema Corte brasileira (aliás, é exatamente assim que sempre esteve no texto do Decreto-Lei 37/1966, artigo 108, que prevê multas de 50% e 100% do tributo devido). Ainda assim, o texto estaria em flagrante contradição com o artigo 8º do PL (esse sim presente na Lei 14.689/2023), que agrega ao § 1º do artigo 44 da Lei 9.430/1996 um inciso VII, expressamente mencionando multa de 150% dos tributos devidos, nos casos que especifica.

Mas se o artigo 14 tem pretensões de abranger (e isso não está nem um pouco claro em seu texto!) obrigações acessórias tributárias (inclusive as atreladas à zona de intersecção com a área aduaneira, como as aplicadas por omissão ou incorreção em prestações de informações por transportadores), presta desserviço ao controle aduaneiro, pois vinculará, por exemplo, penalidades por falta de licença de importação, e multas substitutivas de perdimento [8], a teto que tem chancela do STF apenas para multas por falta de pagamento de tributos.

Esse é um claro exemplo de "…o que queremos? Aplicar teto a multas por falta de pagamento de tributos, seguindo entendimento externado no âmbito do STF"; e "…como queremos?: Anulando penalidades por descumprimento de obrigações acessórias e multas relativas ao controle aduaneiro nos casos em que não haja tributos a pagar".

Outro exemplo no qual percebemos que o legislador, tendo em mente uma causa igualmente nobre, a proporcionalidade na aplicação das penalidades, acabou gerando texto aberto que aumentaria substancialmente a litigância e a complexidade do contencioso administrativo (inclusive no que se refere a temas aduaneiros), é o artigo 7º, que prevê redução de multa de ofício em "pelo menos 1/3", como incentivo à conformidade. Ou seja, a redução de um terço já estaria garantida, sem qualquer condição exigida objetivamente pela lei, e sem indicação de critério de dosimetria para o que exceda ao "pelo menos".

A inclusão dos temas da conformidade e da autorregularização é um dos avanços que merecem ser destacados na Lei 14.689/2023, e que tem potencial de redução do contencioso. Na área aduaneira, os programas de conformidade já existem há mais de uma década, no âmbito nacional e internacional. E agora o Direito Tributário brasileiro começa a despertar para o assunto, o que merece encômios.

Há ainda outro artigo (artigo 8º) tratando de redução de multas, igualmente com boa intenção, agregando parágrafos ao artigo 44 da Lei 9.430/1996, mas com texto excessivamente alargado, que ocasionaria, caso não tivesse havido veto, um dos maiores incentivos à litigância dos últimos tempos. Veja-se, por exemplo, o texto do § 6º, que reduziria "para 1/3" a multa de ofício (institucionalizando o percentual de 25%), nos casos de "…divergência na interpretação da legislação que disponha sobre a obrigação tributária". Convido o leitor a imaginar o restrito universo de lançamentos em que não haja tal divergência.

E a redução da multa a 1/3 se aplicaria ainda aos casos em que "…tiver o sujeito passivo agido de acordo com as práticas reiteradas adotadas pela Administração ou pelo segmento de mercado em que estiver inserido". No caso de práticas reiteradas da administração, a lei está piorando a situação do contribuinte, que hoje teria 100% da penalidade afastada, conforme o parágrafo único do artigo 100 do CTN. No caso de práticas do segmento de mercado, a ideia parece boa (evitando que a tributação opere como um fator de violação da livre concorrência), mas demandaria que se aclarasse em que momento e por quem deve ser feita a demonstração de que existe uma "prática de mercado". Nos contenciosos em andamento, seria temerária tal apuração (ainda que com auxílio de diligências), pois haveria necessidade de retroceder ao tempo da autuação, e verificar práticas de mercado então existentes, caso a caso. Tampouco seria plausível, nos contenciosos em curso, avaliar a relevação de penalidades "…de acordo com o histórico de conformidade do contribuinte ou do responsável tributário". Essas medidas ocasionariam enxurrada de solicitações de diligência para investigar o histórico à época dos lançamentos, o que apenas contribuiria para aumentar a morosidade e a complexidade do contencioso administrativo. Mais adequado seria estabelecer um marco temporal para que se certificasse que as novas autuações já tomariam em conta os fatores propostos apenas em 2023, que, diga-se, são relevantes (no que se refere à proporcionalidade e à manutenção da livre concorrência). No entanto, o texto, tal qual foi proposto no PL, tem potencial de aumentar significativamente o já excessivo tempo demandado para julgamentos, pois o leitor certamente compreende que as demandas de redução das multas serão apresentadas na quase totalidade dos 88 mil processos do acervo do Carf.

A conversa poderia seguir adiante, tratando ainda de outros artigos do PL, mas estamos próximos ao limite de caracteres da coluna. Assim, retomo o parágrafo inicial, que remete aos memes, para externar preocupação com a análise dos vetos (principalmente dos aqui apresentados).

Pode ser que nosso meme do contencioso administrativo venha a ser: "…o que queremos? Reduzir o acervo de processos do contencioso administrativo e dar mais celeridade ao julgamento"; e "…como queremos? Incentivando a litigância e tornando o processo mais moroso".


[1] Embora na Exposição de Motivos da MP 1.160 se argumente, com base em estatísticas de julgamentos do Carf, que a retomada do voto de qualidade teria potencial arrecadatório estimado em R$ 59 bilhões por ano, parece-nos que o argumento jurídico mais relevante é o externado por Heleno Taveira Tôrres (disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mar-31/consultor-tributario-stf-voto-qualidade-processo-administrativo-fiscal), de que o fim do voto de qualidade "…cria preferência contrária ao princípio da prevalência do interesse público sobre o privado" e "…desequilibra a relação processual", afrontando "…o princípio da prevalência do interesse público sobre o privado, que afirma a indisponibilidade do tributo".

[2] Nesse aspecto, há que se reconhecer a inadequação terminológica utilizada, pois contencioso "de baixa complexidade" (que se desejava agregar ao artigo 27-B da Lei 13.988/2020, e definir como aquele até mil salários mínimos) não se confunde com "contencioso de baixo valor" (já tratado no art. 23 da mesma Lei 13.988/2020, e definido como aquele até sessenta salários mínimos).

[3] Nesse aspecto, bastaria encontrar um meio termo, que já reduziria o acervo do Carf, que hoje é de 88 mil processos. Adriana Gomes Rêgo publicou estudo, em 2020, estimando a redução do quantitativo e do tempo do contencioso, caso o limite fosse de 60, 120, 500 e 1000 salários mínimos (disponível em: https://repositorio.esg.br/bitstream/123456789/1124/1/ADRIANA%20GOMES%20R%C3%8AGO%20-%20TCC%20CAED%202020.pdf). O estudo seria passível de fácil atualização, com base nos dados abertos do Carf, disponíveis em: http://carf.economia.gov.br/dados-abertos/dados-abertos-2023/dados-abertos-202308-final.pdf.

[4] Trouxemos esses dados em nossa última coluna, para demonstrar a inviabilidade de incluir a pena de perdimento de mercadorias no rito moroso do Decreto 70.235/1972 (https://www.conjur.com.br/2023-ago-22/territorio-aduaneiro-processo-perdimento-here-go-again). De 2017 a 2020, o tempo médio de julgamento nas DRJ variou de 32,4 meses a 30,8 meses, mantendo-se sempre acima de 30 meses (aproximadamente 900 dias). E, no Carf, variou de 43,7 meses a 42,3 meses, mantendo-se sempre acima de 40 meses (aproximadamente 1200 dias), conforme SERPA, Sandro de Vargas. Uma análise econômica do contencioso tributário brasileiro. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília (UnB), 2021, p. 29. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/42310/1/2021_SandrodeVargasSerpa.pdf.

[5] Apresentação disponível em: https://www.jota.info/wp-content/uploads/2019/11/974910b10d67c5d378e5d4d950d5b0b4.pdf. Os dados analisados foram de 2017, mas a realidade persiste, o que pode ser verificado a partir dos últimos relatórios do CNJ.

[7] A quem ainda imagina que outros órgãos que não a RFB possuem competência normativa, v.g., para classificar mercadorias em código criado para fins aduaneiros pela "Organização Mundial das Aduanas" (OMA), o "Sistema Harmonizado" (SH), que é um tratado internacional vigente e aplicável no Brasil, destaco que quem elaborou o SH e quem o revisa e atualiza é a OMA, com participação das Aduanas de mais de 150 países. Recomendo ainda, além do texto de Liziane Meira, nossa coluna anterior, em que tratamos do tema: https://www.conjur.com.br/2023-jul-18/territorio-aduaneiro-febeapa-materia-classificacao-mercadorias.

[8] Uma mercadoria importada, sujeita a alíquota zero, em entendimento alargado, não poderia ser objeto de penalidade alguma, pois não há tributo a recolher, ainda que essa mercadoria fosse importada sem licença do órgão competente, ou de forma fraudulenta (por exemplo, com prestação de informações falsas ou ocultação de pessoas).

Autores

  • é doutor em Direito (UFPR), professor, assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA), do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), auditor-Fiscal da RFB, membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

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