Fábrica de Leis

Formalismo procedimental e metafísica do processo legislativo

Autor

  • Roberta Simões Nascimento

    é professora adjunta na Universidade de Brasília (UnB) advogada do Senado Federal desde 2009 doutora em Direito pela Universidade de Alicante (Espanha) doutora e mestre em Direito pela UnB e professora do curso de especialização Bases para una Legislación Racional na Universidade de Girona (Espanha).

25 de outubro de 2022, 8h00

A coluna Fábrica de Leis abriu um espaço inédito voltado para apresentação de diagnósticos, reflexão e construção de um pensamento genuinamente brasileiro sobre a atuação dos parlamentos das três esferas da federação, de como vêm sendo empregadas as técnicas legislativas e de disseminação das práticas de como legislar melhor.

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O desejo de conferir maior racionalidade à produção legislativa por parte dos legisladores, no entanto, também precisa vir acompanhado de um tipo de postura por parte dos pesquisadores e estudiosos ou, pelo menos, que estes se abstenham de determinadas posturas. Esse é o assunto da coluna de hoje.

Existe um discurso ingênuo, ambíguo e contraditório por trás da maior parte da literatura brasileira sobre o processo legislativo: por um lado, alguns apelam para o estrito cumprimento dos regimentos internos — postura aqui chamada de "formalismo procedimental" —, e, ao mesmo tempo, por outro lado (e de forma contraditória), reivindicam o cumprimento de um pretendido "devido processo legislativo", como uma noção vaga composta por deveres quase estritamente éticos, morais, não previstos em quaisquer normas jurídicas escritas.

Com isso, está posta uma esquizofrenia legislativa: o formalismo procedimental como condição de possibilidade para o aperfeiçoamento (e para a constitucionalidade) da produção legislativa engessa o processo decisório e ignora que, por vezes, certas etapas são inúteis à tomada de decisão em determinados casos concretos.

Ilustrativa dessa postura foi a decisão monocrática tomada na medida cautelar do MS nº 34.530, que reputou inconstitucional a iniciativa de um parlamentar de "encampar" o projeto de iniciativa popular então em discussão, com vistas a facilitar o complexo trâmite de conferência das assinaturas. O ministro Luiz Fux entendeu que tal "assunção da titularidade amesquinharia a magnitude democrática e constitucional da iniciativa popular e representaria desprestígio ao instrumento democrático".

Além de desconsiderar o dado de que o conteúdo da iniciativa estava mantido (e que, seja qual fosse o procedimento, estaria sujeito ao emendamento por parte dos parlamentares), a referida decisão se apega à "forma pela forma", rejeitando o caráter instrumental das normas regimentais que disciplinam os ritos nas Casas Legislativas.

Por seu turno, a postura no sentido de que o processo legislativo deve ser regido rigorosamente pelas pautas oriundas das boas práticas para legislar melhor — elaboradas no âmbito da literatura sobre teoria da legislação, da legística, legisprudence, da noção de um modelo ideal de legislador prudente, racional, etc. — implica uma construção "metafísica", que condiciona a validade das leis a requisitos inacessíveis ex ante.

Isso porque o devido processo legislativo nesses termos acaba sendo fruto de princípios implícitos — não escritos no texto da Constituição ±, com "deveres" extraídos a partir de métodos duvidosos, subjetivos, pois a literatura aponta para várias direções quando o assunto é o aperfeiçoamento da elaboração legislativa.

Invariavelmente, essa ideia de devido processo legislativo acaba reconduzindo ao que foi afirmado em decisões judiciais, menosprezando a visão dos próprios legisladores sobre quais seriam as etapas indispensáveis para a aprovação de boas leis. Trata-se de uma visão que é enviesada, seja porque sequer existe um consenso mínimo na literatura, seja porque traz só a "versão judicial" do que seria a boa legislação.

As duas posturas acima mencionadas — o formalismo procedimental e a metafísica do devido processo legislativo — são ruins não só por ingênuas, ambíguas e contraditórias, mas também porque acarretam um resultado absolutamente indesejável, como será explicado mais adiante.

Não se desconhece a longa tradição de debates sobre o "formalismo" no âmbito da teoria do Direito. Embora a rigor não exista qualquer corrente ou doutrina metodológica que reivindique esse rótulo, é conhecida a carga pejorativa que acompanha essa etiqueta (que quase sempre é atribuída por outrem e dificilmente é autoproclamada pelos autores a si mesmos).

Para os fins do argumento deste texto, refere-se ao formalismo como a postura prática de distorcer a aplicação das regras regimentais, de forma desajustada dos propósitos e valores aos quais tais regras servem. A deformação do formalismo consiste em abusar de justificações formais ou da literalidade de certos textos, desconsiderando as verdadeiras razões que justificam o conteúdo dessas regras. Tal uso aparece como um vício de racionalidade, pois ignora o papel do Direito.

Em se tratando do processo legislativo, o formalismo procedimental faz passar por produto de "determinação lógico-formal-jurídica necessária" (a partir da rigidez das disposições dos regimentos internos) um rito que é muito mais um espaço relativamente indeterminado de deliberação política, conduzido de forma necessariamente coletiva e não linear. As normas regimentais devem servir precisamente para ajudar o processo de tomada de decisão, não torná-lo ainda mais difícil.

São vários os problemas que advêm da postura que insiste no formalismo procedimental. Um deles está no fato de que foi rejeitado pelo STF. Como sabido, a pretensão de um "controle de regimentalidade" das leis foi recusada por ocasião do julgamento do RE nº 1.297.884 (tema nº 1.120 da repercussão geral), quando se aprovou a seguinte tese:

"Em respeito ao princípio da separação dos poderes, previsto no art. 2º da Constituição Federal, quando não caracterizado o desrespeito às normas constitucionais pertinentes ao processo legislativo, é defeso ao Poder Judiciário exercer o controle jurisdicional em relação à interpretação do sentido e do alcance de normas meramente regimentais das Casas Legislativas, por se tratar de matéria interna corporis."

Ou seja, só se admite o controle jurisdicional do processo legislativo diante de violações com fundamento constitucional e a eventual violação das normas exclusivamente regimentais (que não são reprodução da Constituição) durante o processo legislativo não implica inconstitucionalidade.

Mas o problema do formalismo regimental não advém só do fato de ter sido recusado pelo STF. Também a partir da experiência prática é possível afirmar a ingenuidade de quem reclama o cumprimento estrito dos regimentos internos. Todo assessor parlamentar sabe que o argumento de que "determinada providência é antirregimental" — ou mesmo que é inconstitucional, em alguns casos — não é o mais persuasivo para dissuadir os membros do Congresso Nacional quanto a determinado procedimento. Alguns parlamentares chegam até a responder: "depois o STF cuida disso".

Além disso, na verdade, a ideia de que "um maior formalismo procedimental no processo legislativo poderia conduzir a um aperfeiçoamento da legislação" é uma intuição que ainda precisaria ser testada empiricamente. Para ficar em um só exemplo, comente-se sobre a realização de audiências públicas com entidades da sociedade civil no âmbito do Congresso Nacional.

Na literatura sobre o processo legislativo, é lugar comum encontrar reflexões no sentido de que as audiências públicas proporcionam a participação de diversos segmentos da sociedade, a partir de instituições, experts ou pessoas de reconhecida competência técnica no assunto a ser tratado pela lei a ser construída.

Além desse papel democrático, as audiências públicas também cumprem o papel de captar, submeter ao escrutínio de seus participantes e analisar estudos e os fatos ou "evidências" relacionadas às proposições legislativas. A um só tempo, as audiências permitiriam a ampliação da legitimidade e da base epistêmica das leis in fieri, oportunizando o acesso aos mais variados pontos de vista e a troca de razões em ambiente plural e transparente — já que as audiências são televisionadas, transmitidas nos canais oficiais do YouTube, e os cidadãos também podem participar enviando perguntas que podem ser selecionadas para resposta.

Nessa literatura, subjaz o pressuposto de que o objetivo básico das audiências públicas seria conferir maior racionalidade às decisões legislativas, a partir da lógica "mais debate + mais inclusão = melhores leis". No entanto, essa perspectiva acaba negligenciando o fato de que as audiências públicas também podem ser utilizadas com outras finalidades, por exemplo, como mera caixa de ressonância por parte dos parlamentares, ou seja, uma oportunidade para que possam verificar quem são os grupos de poder que apoiam ou que se opõem a uma determinada proposta legislativa.

Nesse sentido, as audiências públicas também proporcionam a verificação da força e do poder das convicções em jogo e, assim, também servem de instrumento para o "cálculo político" dos parlamentares (isto é, o balanço sobre as vantagens e desvantagens de um voto favorável ou contrário à aprovação da medida). Em resumo, as funções das audiências públicas não se limitam, unicamente, a proporcionar qualidade epistêmica e deliberativa à legislação.

Tampouco se pode menosprezar a realização de audiências públicas como um evento perfeitamente "manipulável", por parte dos decisores dentro do próprio parlamento. Ora, como sabido, os presidentes das comissões (onde são realizadas a grande maioria das audiências públicas) detêm grandes poderes de agenda para dirigir os trabalhos desses colegiados fracionários. A manipulação pode dizer respeito à escolha dos seus participantes (de modo enviesado para um dos lados, desequilibrando o debate), do momento ou dia da sua realização (eventualmente com outros assuntos mais ou igualmente importantes competindo em atenção), etc.

Assim, as audiências públicas podem perfeitamente ser utilizadas como um método através do qual aqueles grupos interessados que já estão empenhados em uma determinada medida legislativa dão a essa política uma aura de respeitabilidade bem fundamentada, fazendo parecer que a decisão foi tomada com base em fundamentos pretensamente racionais e inclusivos.

Em resumo, as audiências públicas até podem ser boas, sim, para o processo legislativo, mas estão longe de ser a panaceia. Não há como garantir que a simples realização de audiências públicas vá, em todos os casos, proporcionar leis melhores. Inclusive, não realizá-las em determinadas ocasiões pode ajudar a que os legisladores façam o "certo", não o que é "popular".

Estudos empíricos podem e devem ser realizados para confirmar a hipótese aqui levantada, revelando o perfil das audiências públicas realizadas no Congresso Nacional, dos seus participantes, assuntos tratados, quais foram as conclusões, bem como seu efetivo impacto na decisão legislativa tomada, ou seja, se os subsídios colhidos efetivamente foram utilizados durante os debates parlamentares posteriores e no processo de justificação legislativa. Daí, seria possível avaliar se essas leis (que contaram com audiências públicas) são melhores que outras (que não contaram com esse procedimento) e se isso se deve de fato à realização das audiências.

Para abreviar o argumento da coluna de hoje: argumentos normativos que sugerem soluções — como esse que defende uma maior procedimentalização da elaboração legislativa — precisam estar calcados em diagnósticos precisos sobre quais são causas e onde estão os problemas do processo legislativo. Será que as dificuldades do processo legislativo estão (só) na falta de cumprimento dos regimentos internos? Até que ponto a regimentalidade estrita solucionou a questão na experiência comparada?

Além disso, só será possível avançar na direção do aperfeiçoamento do processo brasileiro de elaboração das leis com uma discussão adequada sobre o que se quer do Congresso e qual Congresso que se quer: Um Congresso meramente seguidor de regras regimentais? Ou um que faça boas leis? Nem sempre esses dois objetivos podem ser alcançados simultaneamente e, por isso, alguma flexibilidade regimental é necessária.

Os estudiosos do processo legislativo precisam entender sobretudo que as ideias têm consequências. Até o momento, a defesa de um formalismo procedimental conduziu unicamente à judicialização precoce das proposições legislativas ainda em discussão, retirando dos parlamentos a decisão final e atribuindo exclusivamente nas mãos do STF os rumos das leis in fieri.

Tal preocupação aumenta agora com a emergência de um controle semiprocedimental no país, que se volta para a maneira como a legislação foi gestada, elaborada, deliberada e justificada, ou seja, uma revisão que alcança o chamado o processo legislativo "interno", não coberto pelas normas constitucionais (do contrário, o controle seria formal), regulado só por normas regimentais das Casas Legislativas ou sequer isso, como já indicado, a partir de meras pautas oriundas das boas práticas para legislar melhor.

Ocorre que tais iniciativas em geral voltadas para a melhoria da qualidade legislativa e regulatória — sejam as diretrizes da teoria da legislação, da legística, sejam programas como o Better Regulation, entre outros — jamais foram pensadas para serem objeto de judicialização.

O aumento da judicialização é o efeito (aqui considerado) indesejável das posturas ora criticadas oriundas de boa parte da literatura brasileira preocupada em aperfeiçoar a elaboração legislativa. Aqui, discorda-se de que o caminho para alcançar esse objetivo deva passar pelo STF. Essa rota, na verdade, pode tornar o trajeto até mesmo impossível.

Essa "coerção externa", no entanto, é absolutamente necessária para alguns autores como Frederick Schauer [1], por exemplo. Para ele, o Poder Judiciário desempenharia um papel semelhante aos dos personal trainers para as pessoas que os contratam quando desejam se exercitar regularmente — a metáfora é usada pelo próprio Schauer —, como se os legisladores também precisassem de agentes externos para tirá-los de seus instintos mais preguiçosos quando o assunto é a aplicação dos regimentos internos das Casas Legislativos.

Aqui caberia um parêntese para rebater que a analogia de Schauer é inadequada. Os legisladores não desejam nem "pagam" para que o Poder Judiciário exerça uma “coerção externa” sobre os primeiros, como se isso fosse ajudá-los a alcançar metas específicas. A ideia de cooperação inerente a um ajuste contratual entre uma pessoa que deseja se exercitar e o seu personal trainer não está presente no âmbito de um controle judicial do processo legislativo. Nos moldes em que se dá, a relação entre controlador e controlado é simplesmente imposta e o alinhamento de interesses entre ambos pode sequer existir. A soberania parlamentar só excepcionalmente deveria ficar sujeita a instituições externas.

Por isso, como já dito, os estudiosos interessados na elaboração das leis precisam ter clareza de que tanto o formalismo procedimental quanto a metafísica do devido processo legislativo acabam sendo instrumentalizadas contra si, servindo apenas aos grupos de perdedores do debate na arena parlamentar. Um devido processo legislativo eminentemente principiológico, que não cabe na Constituição (ou sequer nos regimentos internos) representa uma verdadeira "caixa preta", cujo acionamento pelo STF é impossível de prever.

Se o que se espera do Congresso é que seus membros tragam para o processo legislativo as opiniões, necessidades e desejos de seus eleitores; que proporcione um fórum no qual os interesses e demandas de todos os segmentos da sociedade sejam analisados; e que tome decisões aprovando boas leis (na medida de suas possibilidades), então melhor dar ao Congresso liberdade para isso, evitando a "parada obrigatória" no STF.

 


[1] SCHAUER, Frederick. Legislatures as Rule-Followers. In: BAUMAN, Richard W.; TAHANA, Tsvi (Eds.). The Least Examined Branch. The Role of Legislatures in the Constitutional State. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 468-479.

Autores

  • é advogada do Senado, professora voluntária na Universidade de Brasília, doutora em Direito pela Universidade de Alicante (Espanha) e doutora e mestre em Direito pela Universidade de Brasília.

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