O pensamento antiparlamentar sobre o processo legislativo no Brasil e na Europa
26 de setembro de 2023, 8h00
Para o leitor que está chegando agora, convém alertar que este espaço na coluna Fábrica de Leis tem sido aproveitado para questionar, sobretudo, os rumos da literatura e da jurisprudência sobre processo legislativo no Brasil. Diversas críticas foram lançadas à compreensão predominante sobre as atividades legislativas, desde a perspectiva teórica até a perspectiva prática. Os textos passados podem ser resgatados a partir daqui. Dando sequência a essa tarefa, a contribuição de hoje aponta mais uma impostura consistente em uma certa inclinação que aqui se chama de "pensamento antiparlamentar".
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Do ponto de vista ético, os parlamentos são associados às ideias de disfuncionalidade, corrupção e captura por interesses privados. Consequentemente, o sistema representativo teria dificuldade de expressar efetivamente a vontade majoritária da população. Citando Luís Roberto Barroso em várias passagens, Samuel Sales Fonteles chama a atenção para a afirmação desse autor no sentido de que "a sociedade se identifica mais com seus juízes do que com seus parlamentares" [1].
Por seu turno, a autoridade dos parlamentos é retratada (ou enquadrada) a partir da supremacia judicial. Samuel Sales Fonteles transcreve trechos de pronunciamentos de autoridades e fragmentos de jurisprudência que refletem esse ranço ou desinteresse em relação aos parlamentares. Fica bem ilustrado esse senso comum teórico em torno do Poder Legislativo.
A provocação de Samuel Sales Fonteles é interessante e certeira, pois de fato nos últimos anos é possível observar toda uma série de teorias (e autores) que pretendem moderar e racionalizar o poder e a atuação dos parlamentos. A essa altura, o leitor já será capaz de entender — seguindo a linha de raciocínio dos textos passados — que essa é uma postura acadêmica que presta um desserviço à compreensão dos afazeres e à melhora das práticas legislativas.
O pensamento antiparlamentar não é exclusividade brasileira, como cuidarei de explicar adiante, mas precisa ser revelado a partir das penas de autores nacionais. Em coluna passada, preferi omitir os nomes. Dessa vez, tendo que recorrer à transcrição literal, isso já não será possível. Em todo caso, fica a advertência de que as críticas não são pessoais, mas, sim, à linha de pensamento que imprime uma inclinação antiparlamentar. Eis alguns exemplos.
Comentando sobre a iniciativa parlamentar, mais especificamente sobre as razões de por que os projetos de leis de iniciativa dos parlamentares — a despeito de serem numericamente superiores aos projetos de iniciativa governamental — dão origem a poucas das leis aprovadas, confira-se o que afirma José Afonso da Silva: "Isso [o fato de poucos projetos de leis de iniciativa parlamentar serem aprovados em leis] se explica porque o parlamentar tende a satisfazer primordialmente sua clientela eleitoral, os interesses de seu Colégio Eleitoral (…) a inclinação em satisfazer primacialmente os interesses do Distrito revela-se como um defeito fundamental da iniciativa parlamentar. Certo que, no mais das vezes, a iniciativa, aqui, visa tão só ao aspecto eleitoral, sem a preocupação da formação de leis – mas ainda assim ela surge como elemento perturbador do processo legislativo" [2].
A ideia de que os parlamentares atuam de forma "viciada" é revelada pela escolha das palavras destacadas aqui (mas não no texto original). O referido autor ainda afirma que muitas das iniciativas legislativas parlamentares, em todas as esferas da federação, "visam a amparar interesses irrelevantes e imerecidos de tutela legislativa" [3]. Daí a tendência contemporânea em restringir a iniciativa das leis conferida às Casas Legislativas.
Em contraste, a iniciativa governamental é apresentada com um resultado positivo, pois é o governo "o órgão mais apto a compreender as exigências globais da comunidade" e que dispõe "dos meios de informação e de relevo necessários a fim de propiciar à ordem social uma legislação adequada às necessidades coletivas" [4].
Outras passagens de José Afonso da Silva poderiam ser citadas, mas a referência é suficiente para o que se revela aqui: um incômodo com a dinâmica da atuação parlamentar. Nas entrelinhas, fica a impressão de que o autor acha melhor que os legisladores não representem o povo que o elegeu. Mas aí vem a pergunta: se não trabalhar pelos interesses da sua base eleitoral, vai trabalhar pelos interesses de quem? Tem-se aí uma contradição com a ideia rousseauniana de que a lei é a expressão da vontade geral.
Além disso, o autor ignora o papel da oposição ao governo que está presente no seio das Casas Legislativas. Sem sua atuação, a legislação periga ficar limitada ao programa político-administrativo, conformando nada mais além disso. Os parlamentos têm como uma de suas funções a de ser o espaço em que são alcançados compromissos entre os diferentes interesses. Parece desnecessário comentar que ideias que negam tal posição são o gérmen de orientações autoritárias, ditatoriais ou antidemocráticas.
Avança-se para outro autor. Em mais um exemplo desse viés antiparlamentar, veja-se o fragmento a seguir, em que o professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho relaciona o fenômeno da "crise da lei" — caracterizado pela multiplicação das leis, que se tornam desvalorizadas, transitórias e daninhas para a sociedade — à "falência" dos parlamentos, os quais já não dariam conta das necessidades legislativas dos Estados contemporâneos. Eis as suas próprias palavras: "[os parlamentos] não conseguem, a tempo e a hora, gerar as leis que os governos reclamam, que os grupos de pressão solicitam. As normas que tradicionalmente pautam o seu trabalho dão — é certo — ensejo a delongas, oportunidade a manobras e retardamentos. Com isso, os projetos se acumulam e atrasam" [5].
Logo o diagnóstico avança para afirmar a incapacidade dos parlamentos: "Nem estão os Parlamentos, por sua própria organização, em condições de desempenhar, lentamente, mas a contento, a função legislativa. O modo de escolha de seus membros torna-os pouco frequentados pela ponderação e pela cultura, mas extremamente sensíveis à demagogia e à advocacia em causa própria. Os interesses não têm dificuldade em encontrar porta-vozes eloquentes, o bem comum nem sempre os acha. Por outro lado, o seu modo de trabalhar também é inadequado às decisões que deve tomar. Como, por exemplo, estabelecer um planejamento por meio do debate parlamentar?" [6].
Aqui vale registrar que os dois últimos autores que acabam de ser citados continuam sendo as referências mais indicadas para estudantes da graduação e pós-graduação sobre o processo legislativo. Como se vê, o desafeto aos parlamentos acompanha logo as primeiras lições nas universidades.
Em outros escritos, isso acontece ao mesmo tempo em que se enaltecem os juízes, inclusive quando, além de aplicar a lei, exercem opções políticas. Não à toa o voto da ministra Rosa Weber sobre a descriminalização do aborto na ADPF nº 442 tece alongadas considerações preliminares para justificar a (suposta) competência do Supremo Tribunal Federal para tomar uma decisão sobre o assunto no lugar do Congresso Nacional.
O pensamento antiparlamentar nem sempre é revelado claramente como nos exemplos anteriores, tampouco aparece sob a forma de palavras manifestamente críticas ou agressivas com os parlamentos. Por vezes vem articulado de forma sofisticada, empacotada em sua série de teorias que, embora não ataquem diretamente a instituição do Legislativo, tem como claro efeito a redução de seu poder e protagonismo.
Por exemplo, não passa desapercebido que, em um artigo sobre técnica legislativa, logo após comentar a respeito das funções das normas jurídicas, Gilmar Mendes se preocupa em imediatamente tecer considerações sobre a subsidiariedade da atividade legislativa — que, com razão, deve ser pautada no princípio da necessidade, devendo ser reconhecida a inconstitucionalidade das normas que estabelecem restrições dispensáveis à liberdade de ação. Daí o autor já emenda considerações sobre a vinculação normativa do legislador. Ou seja, a preocupação com colocar limites na sua atuação.
A generalização em praticamente todos os Estados contemporâneos do controle judicial de constitucionalidade das leis é um exemplo de pensamento antiparlamentar, paralelamente à ideia de vinculação do legislador aos direitos fundamentais e diversos valores materiais. É dizer, o pensamento antiparlamentar também trouxe contribuições, hoje amplamente recepcionadas, mas cujos primeiros desenvolvimentos doutrinários tinham por objeto a crítica a um "absolutismo parlamentar".
Quando Peter Häberle publica sua tese de doutorado "A garantia do conteúdo essencial do art. 19.2 da Lei Fundamental. Uma contribuição à compreensão institucional dos direitos fundamentais à doutrina da reserva de lei (Die Wesensgehaltgarantie des Art. 19 Abs. 2 Grundgesetz: Zugleich ein Beitrag zum institutionellen Verständnis der Grundrechte und zur Lehre vom Gesetzesvorbehalt)" em 1962, o pano de fundo da Alemanha é a concepção de que o legislador era o principal inimigo dos direitos fundamentais, o que é afirmado textualmente pelo próprio autor.
Em Portugal, José Joaquim Gomes Canotilho também registra a influência da necessidade de vincular o legislador com seu Constituição dirigente e vinculação do legislador publicado em 1976.
Outras realizações que podem ser creditadas ao pensamento antiparlamentar são a nova posição da Constituição em relação às leis, os poderes do presidente da República como contrapeso ao Poder Legislativo, a ampla atividade da administração pública, o surgimento de ideias como a "reserva de Administração" (um espaço excluído da intervenção do legislador), etc. Todas essas aplicações práticas têm em alguma medida (embora não se devam exclusivamente a) uma inspiração antiparlamentar.
Na verdade, é o pensamento antiparlamentar que dá origem à formação de praticamente todo o Direito Público na Europa no final do século 19 e início do século 20, como aponta José Esteve Pardo [7]. No Brasil, como se vai vendo, não é muito diferente.
Por aqui, vemos contemporaneamente as projeções de um pensamento antiparlamentar, que pode ser associado à tendência de exigir maior procedimentalização como requisito para a validade da legislação, bem como à advocacia de espaços de "reserva de regulação", de atuação exclusiva das agências reguladoras, imunes à atuação do legislador.
Como já está acabando o espaço da coluna de hoje, esse ponto ficará para desenvolvimento em texto seguinte. Mas já é possível adiantar que subjaz à defesa de uma "reserva de regulação" a premissa de que agências reguladoras seriam necessariamente mais aptas para as matérias técnicas atinentes à regulação. Como se esses entes não contassem com seus próprios problemas institucionais, em especial o processo de tomada decisões envolvendo escolhas em matéria de política, moral e ideologia com elevados déficits de accountability.
A verdade é que não existem instituições perfeitas.
Agora, a postura acadêmica que vem permeando a literatura brasileira de só criticar os parlamentos, sem propostas mais construtivas, precisa ser melhor examinada. As premissas do pensamento antiparlamentar devem ser mais debatidas. Há toda uma agenda de pesquisa a ser construída para, por exemplo, procurar entender por que tais ideias críticas aos parlamentos não encontraram ressonância nos Estados Unidos (ao menos majoritariamente) ou no Reino Unido (onde a ideia de soberania parlamentar ainda se encontra relativamente forte). Ou para pensar reformas possíveis, em lugar de simplesmente alimentar o pensamento antiparlamentar no direito brasileiro e europeu continental. A ver como serão desenvolvidos os estudos nos próximos tempos e se haverá o resgate do ideal da dignidade da legislação.
[1] BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 5, Número Especial, p. 23-50, 2015, p. 39.
[2] SILVA, José Afonso. Processo constitucional de formação das leis. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 152-153.
[3] Idem, p. 153.
[4] Idem, ibidem.
[5] FERREIRA FILHO, Manoel. Do processo legislativo. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 36.
[6] Idem, p. 36-37.
[7] ESTEVE PARDO, José. El pensamiento antiparlamentario y la formación del Derecho Público en Europa. Madrid: Marcial Pons, 2019.
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