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Sem previsão legal, CPI não tem poder para propor acordo de colaboração premiada

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16 de setembro de 2023, 8h51

Comissão Parlamentar de Inquérito do Congresso Nacional não pode propor acordo de colaboração premiada a depoentes. Isso porque a Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013) estabelece que apenas o Ministério Público e a polícia judiciária podem firmar esse compromisso. E, como o mecanismo é regido pelo princípio da legalidade, não se deve permitir que outros órgãos o celebrem sem autorização legislativa, de acordo com a opinião de especialistas no tema ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

Rodolfo Stuckert/Acervo Câmara dos Deputados
CPIs do Congresso Nacional não têm competência para firmar delação
Rodolfo Stuckert/Acervo Câmara dos Deputados

A questão foi levantada no dia 17 do mês passado, quando a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito do 8 de Janeiro ouviu o hacker Walter Delgatti Neto. Ele fez acusações contra o ex-presidente Jair Bolsonaro que não constavam de seus depoimentos à Polícia Federal, mas passou grande parte da audiência sem responder aos questionamentos dos parlamentares. Isso motivou a comissão a buscar o instrumento da colaboração premiada para obter mais informações.

A senadora Eliziane Gama (PSD-MA) questionou a Advocacia do Senado sobre o tema, e o órgão afirmou que CPIs podem propor acordos de colaboração premiada aos seus depoentes, desde que tenham a concordância do Ministério Público, que é o titular da ação penal. Caberia ao MP, então, apresentar o termo à Justiça, para homologação.

Em parecer, a Advocacia do Senado apontou que as CPIs têm "poderes de investigação próprios das autoridades judiciais", conforme o artigo 58, parágrafo 3º, da Constituição. Tal prerrogativa, de acordo com o órgão, é inerente a toda legislatura constituída e decorre da teoria dos poderes implícitos. O postulado, que se insere no sistema de freios e contrapesos, estabelece que, para poder legislar, "o Congresso deve ser capaz de reunir as informações necessárias para exercer essa função de modo eficiente".

"Como as Comissões Parlamentares de Inquéritos foram alçadas pela Constituição — até em relativa exceção ao princípio da separação dos poderes — em posição superior à dos demais órgãos de investigação, eis que dotadas de 'poderes de investigação próprios das autoridades judiciais' (artigo 58, parágrafo 3º, da Constituição), depreende-se da teoria dos poderes implícitos que têm a prerrogativa de protagonizar acordos de colaboração premiada", sustentou a Advocacia do Senado.

Na visão do órgão, se a Lei das Organizações Criminosas permite a celebração de acordo de colaboração premiada por delegado de polícia, desde que haja concordância do Ministério Público, tal medida também deve ser facultada às CPIs.

"Se a Constituição atribui determinada competência a entidade jurídica, deve ser reconhecida a essa entidade a possibilidade de se utilizar dos instrumentos jurídicos adequados e necessários para o regular exercício da competência que lhe foi atribuída. A realização de acordo de colaboração premiada enquanto meio de obtenção de prova trata-se de instrumento jurídico adequado e necessário para tanto, nos termos da definição esposada pelo STF", alega o órgão, citando decisão da Corte Suprema no Recurso Extraordinário 570.392.

O Projeto de Lei 4.137/2019, de autoria do senador Jorge Kajuru (PSB-GO), altera a Lei das Organizações Criminosas para permitir que CPIs negociem termos de colaboração premiada. A proposta está em tramitação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado.

E a Advocacia do Senado ainda concluiu que CPIs podem celebrar acordos de não persecução cível e participar de acordos de leniência.

Sem legitimidade
No entanto, os especialistas ouvidos pela ConJur discordam da conclusão do órgão. Eles afirmam que apenas o MP e a polícia judiciária podem firmar acordo de colaboração premiada.

A colaboração é um meio de obtenção de prova regido por um princípio da legalidade estrita, que, interpretado conforme critérios constitucionais, delimita os casos de sua incidência e os sujeitos que têm atribuição para celebrar tal negócio jurídico, conforme sustenta o ex-professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro Geraldo Prado, hoje investigador integrado ao Instituto Ratio Legis da Universidade Autónoma de Lisboa e consultor sênior do Justicia Latinoamérica (Chile).

"As CPIs são importantes, mas, justamente porque exercem poder, elas devem respeito rigoroso à legalidade. Seus membros não têm autorização legal para negociar, e uma inusitada iniciativa, não provocada pelo colaborador, pode ser interpretada como constrangimento que vicia a 'voluntariedade' da pessoa investigada", avalia Prado.

Segundo o pesquisador, é preciso ser cuidadoso na interpretação da cláusula de equiparação das CPIs aos "poderes de investigação próprios das autoridades judiciais". Para ele, a regra, que consta do artigo 58, parágrafo 3º, da Carta Magna, é um "contrabando inquisitório em uma Constituição que adotou o modelo acusatório".

"Para a democracia, é fundamental conter o desejo de um 'governo pela punição', ainda que se trate de um 'governo do Legislativo'. Os poderes de investigação da CPI devem ser empregados na busca de informações sem violar direitos e garantias das pessoas. A Constituição aceita um limite às informações sobre crimes como parte de seu compromisso ético de que os fins não justificam os meios. É assim na proibição da prova ilícita. Pela Constituição, as CPIs não estão autorizadas a participar de acordos de colaboração premiada."

Nessa mesma linha, Diogo Malan, professor de Direito Processual Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da UFRJ, destaca que a Lei das Organizações Criminosas não autoriza CPIs a firmarem delações.

"Embora Comissões Parlamentares de Inquérito tenham 'poderes de investigação próprios das autoridades judiciais' (artigo 58, parágrafo 3º, da Constituição), a colaboração premiada é meio de investigação sujeito a regime jurídico de legalidade estrita (nulla coatio sine lege praevia, stricta, scripta et clara), motivo pelo qual somente os dois órgãos públicos referidos pela Lei 12.850/2013 (Ministério Público e polícia judiciária) podem se utilizar desse meio excepcional."

O oferecimento de colaboração premiada por CPIs é um "golpe de cena", porque os acordos precisam de aval do MP, que é quem decide se vai denunciar ou não, e de homologação por juiz, segundo Aury Lopes Jr., professor de Direito Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Ele ressalta que a possibilidade de CPIs firmarem delações foi construída por analogia com outra sustentação fraca, que é a possibilidade de a polícia jurídica propor o acordo. "A polícia pode propor, a CPI até poderia propor, mas nada disso vai ter eficácia se não houver a concordância do Ministério Público e a homologação judicial. Isso significa dizer que nenhum efeito vai ser gerado na CPI. É algo muito mais simbólico do que efetivo", ressalta Lopes Jr..

Delação pela polícia
O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, homologou no último sábado (9/9) o acordo de colaboração premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens de Jair Bolsonaro na Presidência da República, com a Polícia Federal.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, manifestou sua discordância do compromisso em mensagem nas redes sociais. "A Procuradoria-Geral da República não é de Augusto Aras. É da República Federativa do Brasil e é pautada pela Constituição. A PGR, portanto, não aceita delações conduzidas pela Polícia Federal, como aquelas de Antonio Palocci e de Sérgio Cabral, por exemplo", disse ele, mencionando duas delações problemáticas.

A Lei das Organizações Criminosas permitiu que, além do Ministério Público, delegados de polícia façam acordos de delação premiada e peçam que o Judiciário diminua penas ou conceda perdão judicial a investigados. A PGR questionou tal regra no Supremo Tribunal Federal.

O STF, em junho de 2018, decidiu que a polícia pode firmar acordo de colaboração premiada com investigados. A corte, seguindo o voto do relator, ministro Marco Aurélio (hoje aposentado), considerou que a medida está de acordo com a Constituição e com as funções da polícia judiciária, especialmente porque é o Judiciário que decide se o compromisso de colaboração tem validade ou não. Para o ministro Gilmar Mendes, por exemplo, o juiz pode reconhecer a colaboração do réu até mesmo sem acordo com o MP ou com a polícia, já que cabe a ele conceder os favores da lei.

Entretanto, como o exercício da ação penal pública cabe ao Ministério Público, não há muitos benefícios que a polícia possa oferecer ao acusado. Dessa forma, esses compromissos seriam limitados e ineficazes, conforme avaliaram especialistas.

Sem poder mover ação penal pública, a polícia não participa da persecução penal. Assim, a instituição não tem o que negociar. Além disso, o MP não pode ser obrigado a aceitar os termos do compromisso firmado entre polícia e investigado que lhe impeçam de exercer seu poder de acusar, disseram os advogados.

Conforme procuradores da República, a polícia poderia apenas dispor de pontos dos quais é titular, como a organização do andamento da investigação (perícias, depoimentos e outros procedimentos), eventual condução coercitiva e indiciamento, entre outros, mas jamais dispor da ação penal, da atribuição de penas e da forma de cumprimento delas. Com informações da Agência Senado.

Clique aqui para ler o parecer da Advocacia do Senado

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