País dos golpes

Responsabilidade das plataformas por crimes patrimoniais precisa ser discutida

Autor

10 de setembro de 2023, 9h53

O debate sobre a responsabilização das plataformas digitais pelo conteúdo que publicam — tema do Projeto de Lei das Fake News (PL 2.630/2020) — não deve se limitar à disseminação de notícias falsas. É preciso também promover a discussão sobre a relação entre as redes sociais e os crimes patrimoniais cometidos em ambiente virtual, de acordo com os especialistas no assunto ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

Freepik
FreepikBrasil registrou, em média, 548 golpes virtuais por dia no ano passado

No ano passado, o Brasil registrou um aumento de 66,2% nos casos de golpes virtuais. Foram cerca de 200 mil ocorrências, o que dá uma média de 548 por dia. Em 2021, foram 120,4 mil casos. Os dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, um estudo feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

A legislação brasileira atual não prevê a responsabilização direta das plataformas por esses crimes. O Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), por exemplo, em seu artigo 19, determina apenas a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil de provedores de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros.

O PL 2.630/2020 institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet e pretende dar mais transparência aos provedores de internet que prestam serviços no Brasil e melhorar o controle da difusão de notícias falsas e discursos de ódio no ambiente virtual. A proposta já chegou a ser discutida no Plenário da Câmara dos Deputados, mas foi retirada de pauta em maio deste ano, em meio a conflitos entre sugestões de mudanças no texto. Ainda não há uma data marcada para a retomada da discussão, muito menos para a votação do projeto.

Para o presidente da Comissão de Privacidade, Proteção de Dados e Inteligência Artificial da seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), Solano de Camargo, a responsabilidade das plataformas digitais por golpes virtuais é uma questão complexa e que merece ser discutida. Ele destaca que os criminosos, quase sempre, aproveitam a falta de cuidado ou a inexperiência dos consumidores para aplicar os golpes, não havendo uma atuação direta das plataformas nas ocorrências.

No entanto, Camargo lembra que existem exceções. É o caso de plataformas que facilitam a prática de crimes, como sites de apostas ilegais e de venda de produtos falsificados ou proibidos. "Também ocorre a responsabilização das plataformas que não dispõem de uma boa governança quanto à privacidade e à proteção de dados dos consumidores, permitindo ou facilitando a ocorrência de crimes."

Solano de Camargo acredita que a possibilidade de ampliação do debate é importante, principalmente para os casos em que não há governança suficiente por parte das plataformas para conter a ação dos criminosos.

"Embora as plataformas não sejam responsáveis pelas ações de seus usuários, elas desempenham um papel importante ao facilitar a comunicação e interação entre eles", disse o advogado. "Por isso, elas devem ser responsabilizadas por não tomarem medidas para prevenir a prática de crimes através de seus recursos. Assim, por exemplo, quando as plataformas não deixam claro que os pagamentos devem ser realizados apenas e tão somente por intermédio de suas aplicações (e não diretamente entre os usuários), ou quando não há uma mediação no tipo de produto que é comercializado por seu intermédio (como no caso de produtos piratas ou proibidos), há uma maior exposição dos consumidores. Por outro lado, quando os clientes não se atentam às regras de uso dos serviços da plataforma, a responsabilidade não pode ser estendida."

O especialista acredita que o debate sobre o PL das Fake News representa uma oportunidade valiosa para se discutir a responsabilidade das plataformas por golpes virtuais. "No entanto, acredito que esse debate deva ser separado, pois as fake news são um tipo específico de ato ilícito, que requer abordagens específicas, e esse PL já tem penduricalhos e jabutis em demasia."

Presidente da Comissão Nacional de Cibercrimes da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim), Luiz Augusto Filizzola D'Urso aponta a falta de empenho das plataformas no combate aos crimes. Como exemplo, ele menciona a facilidade com que criminosos conseguem publicar anúncios para dar mais visibilidade a seus golpes.

"É evidente a falta de colaboração, inclusive pela falta de análise mais eficiente desses anúncios e a morosidade de qualquer denúncia que é feita pelos canais oficiais. Lamentavelmente, nota-se um desinteresse", afirmou ele. "Isso pode ser justificado em razão das leis. Hoje não há como trazer a responsabilidade por eventual coautoria ou por omissão dessas plataformas para esses golpes aplicados porque as leis afastam a responsabilidade. Na esfera cível, nós temos o Marco Civil da Internet afastando por completo a responsabilidade, no artigo 19, sobre conteúdo publicado por seus usuários, mesmo que ele seja ilícito, com a exceção da pornografia (artigo 21)."

D'Urso acredita que o avanço das discussões sobre a responsabilidade das plataformas na disseminação de notícias falsas pode fazer com que os legisladores alcancem um conhecimento maior sobre o envolvimento das redes nos crimes patrimoniais.

"Sem dúvida alguma, esse tema seria impactado. Não à toa, hoje, quando um criminoso invade um perfil em uma rede social, muitas vezes ele faz vendas falsas para vitimar os seguidores daquele usuário. O dono do perfil não consegue, de maneira célere, recuperar a conta. É um tema que depende de regulamentação, mais empenho e debate para que se possa contar com uma atenção maior dessas plataformas, ou sua responsabilização para ter um efeito pedagógico."

Especialista em Direito Digital e sócio do escritório Rayes e Fagundes Advogados Associados, Felipe Carteiro pondera que tanto o Código Civil quanto o Código de Defesa do Consumidor já oferecem uma estrutura legal sólida para lidar com tal cenário. Em contrapartida, conforme lembra o advogado, o Marco Civil da Internet não aborda a responsabilidade patrimonial das plataformas, já que o objetivo principal da norma é regular aspectos da dinâmica online e a conservação de registros e outras informações.

"A discussão sobre o gap na legislação que aborda a responsabilidade das plataformas digitais diante de danos de crimes patrimoniais é crucial. Enquanto a superregulamentação pode criar entraves e ambiguidades interpretativas, é inegável que uma clara responsabilização legal pode impulsionar plataformas a aprimorar suas medidas de segurança digital. Portanto, o debate deve buscar um equilíbrio entre proteger o consumidor e evitar burocracias desnecessárias, sempre com o olhar atento à realidade tecnológica e empresarial atual."

Para Carteiro, embora o PL das Fake News possa abrir precedentes para a discussão sobre responsabilidades das plataformas em vários âmbitos, seria mais produtivo e claro tratar da responsabilização por crimes patrimoniais de maneira separada. "Isso permitiria uma abordagem mais focada e detalhada, evitando a diluição ou confusão de temas tão distintos e igualmente importantes."

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!