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Reunião com jurados e quesitação levam STJ a manter nulidades no caso 'Boate Kiss'

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5 de setembro de 2023, 14h33

Por maioria de votos, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu manter a anulação do julgamento que levou à condenação de quatro pessoas pelas 242 mortes decorrentes do incêndio na Boate Kiss, ocorrido em Santa Maria (RS), em 2013.

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Incêndio em casa noturna de Santa Maria levou à morte de 242 pessoas em 2013

Elissandro Spohr, Mauro Hoffmann, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão foram condenados pelo Tribunal do Júri, em sentença que foi anulada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que identificou quatro causas de nulidade.

Coube à 6ª Turma julgar em recurso especial se o TJ-RS acertou na análise. Relator, o ministro Rogerio Schietti votou em junho por afastar as quatro causas de nulidade.

Nesta terça-feira, (5/9), os outros quatro integrantes do colegiado formaram maioria para manter duas delas, relacionadas à quesitação formulada e em relação a uma reunião a portas fechadas feita pelo juiz com os jurados.

Com o resultado, os quatro acusados terão de se submeter a um novo julgamento pelo Tribunal do Júri, ainda sem data para ocorrer. Conforme o TJ-RS já havia definido, a anulação da sentença, mantida pelo STJ, deixa os réus soltos.

Quesitação abusiva
A nulidade que mais sensibilizou os ministros diz respeito a dois dos quesitos formulados pelo juiz e apresentados aos jurados. Tratam-se das perguntas encaminhadas a eles sobre os fatos em julgamento e que servem para definir a condenação.

Elas são definidas na decisão de pronúncia e podem ser contestadas pelas defesas. No caso, elas interpuseram recurso em sentido estrito, que foi analisado pelo TJ-RS. A corte determinou a exclusão de parte das imputações aos réus.

Para Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, não foi admitida a imputação relacionada a supostamente terem ordenado a seguranças da boate que dificultassem a saúda das vítimas nos primeiros instantes do incêndio, para evitar que deixassem o local sem pagar o consumo.

Já nos casos de Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão, o TJ-RS mandou excluir a imputação de que eles teriam deixado o local sem alertar a todos sobre o fogo, mesmo tendo acesso ao sistema de som.

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Réus no caso 'Boate Kiss' foram condenados pelo Júri, mas julgamento foi anulado pelo TJ-RS, que reconheceu quatro nulidades

Ainda assim, esses pontos foram mantidos nos quesitos que levaram à condenação deles pelo Júri. Relator, o ministro Rogerio Schietti afastou a nulidade por entender que ele estava preclusa. Ou seja, as defesas teriam perdido o momento adequado de contesta-las.

Abriu a divergência o ministro Antonio Saldanha Palheiro, para quem o juiz da causa ofendeu o princípio da correlação entre a pronúncia e a sentença, além de ferir a hierarquia do julgamento colegiado pelo TJ-RS. Foi o único ponto acompanhado por quatro votos no julgamento.

O desembargador convocado Jesuíno Rissato afirmou que o juiz presidente do Júri jamais poderia ter transcrito nos quesitos qualquer imputação que tenha sido expressamente extirpada da pronúncia pelo TJ-RS, no julgamento do recurso em sentido estrito.

“Os limites da pronúncia foram definidos no acórdão que reformou a decisão de pronúncia, algo que o juiz e o Ministério Público não poderiam desconhecer ou ignorar”, ressaltou a ministra Laurita Vaz. Também votou com eles, nesse ponto, o ministro Sebastião Reis Júnior.

Reunião secreta
A segunda causa de nulidade a ter maioria no julgamento do STJ diz respeito a uma reunião a portas fechadas feita pelo juiz com os jurados. Também nesse ponto, o ministro Schietti apontou a preclusão, já que as defesas deveriam ter se insurgido durante a sessão de julgamento. Foi acompanhado pela ministra Laurita Vaz.

A divergência vencedora, por outro lado, entendeu que o recurso do Ministério Público do Rio Grande do Sul não poderia ser conhecido nesse ponto, já que o tema não foi devidamente enfrentado. Ainda assim, os três votos que mantiveram a nulidade teceram considerações sobre o caso.

O ministro Saldanha Palheiro destacou que, como o Júri é composto por leigos, pessoas comuns, o magistrado tem que ser cuidado para não influenciar o convencimento deles. Especialmente em um caso de ampla publicidade como o da Boate Kiss.

“O fato de o juiz se reunir reservadamente com jurados traz uma fundada preocupação de que pode ter ocorrido algum tipo de influência, ainda que não proposital ou expressa. Uma opinião indireta do magistrado traz influência que não tem como salvar o procedimento. A própria incomunicabilidade dos jurados fica comprometida”, destacou.

Votaram com a divergência o ministro Sebastião Reis Júnior e o desebargador convocado Jesuíno Rissato

Lucas Pricken/STJ
Relator, ministro Schietti votou por afastar as nulidades e manter as condenações
Lucas Pricken/STJ

Sorteio e inovação
Outras duas causas de nulidade só foram mantidas nos votos dos ministros Saldanha Palheiro e Sebastião Reis Júnior. A primeira delas diz respeito à forma como foram sorteados os jurados para o caso, de maneira a exceder o procedimento previsto no Código de Processo Penal.

Em regra, deveria ser promovido apenas um sorteio preliminar, com definição de 25 nomes, entre os quais posteriormente seriam sorteados sete para compor o Conselho de Sentença. defesa e acusação teriam a possibilidade de vetar um número limitado de nomes.

Por se tratar de um caso complicado e único, o MP-RS pediu e o juiz determinou o aumento do sorteio para 150 nomes. A justificativa foi a possibilidade de ocorrer o chamado estouro de urna — quando se torna impossível fazer o julgamento por ausência do número mínimo de jurados.

Ao fim e ao cabo, foram feitos três sorteios de jurados, sendo que um deles ocorreu apenas cinco dias antes do julgamento – a norma do artigo 433, parágrafo 1º do CPP exige que ocorra com pelo menos dez dias de antecedência.

Para o ministro Schietti, o caso realmente recomendava cautela. Prova é que, no dia do julgamento, dos 25 jurados originalmente selecionados, apenas seis estavam presentes. E dos outros 125 suplentes, 59 apareceram. Entre os sete que participaram do julgamento, nenhum deles foi incluído na lista pelo último sorteio, feito fora do prazo legal.

Esse ponto levou Jesuíno Rissato e Laurita Vaz a acompanharem o relator. Para os ministros Saldanha e Sebastião, no entanto, o rito ofendeu o direito de defesa, já que não houve tempo hábil para investigação dos jurados.

A última causa de nulidade reconhecida diz respeito à inovação da causação feita contra o réu Mauro Hoffmann. A imputação contra ele indicou que ele tinha ciência das condições de funcionamento da boate, com superlotação, espuma nos tetos e uso de fogos de artifício.

Durante o julgamento, a acusação levantou uma hipótese não prevista: a de que houve a chamada cegueira deliberada. Isso ocorre quando alguém tem a obrigação de saber algo, mas prefere fechar os olhos. Para o ministro Saldanha, a afirmação desbordou da acusação e acrescentou elemento não imputado ao réu.

Veja como ficou a votação final

Nulidades reconhecidas:
Excesso na quesitação – Saldanha Palheiro, Sebastião Reis Júnior, Jesuíno Rissato e Laurita Vaz
Reunião Secreta – Saldanha Palheiro, Sebastião Reis Júnior, Jesuíno Rissato
Sorteio dos jurados – Saldanha Palheiro, Sebastião Reis Júnior
Inovação da acusação contra Mauro Hoffmann – Saldanha Palheiro, Sebastião Reis Júnior

REsp 2.062.459

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