Público & Pragmático

Administração Pública e endowments: debate para economia de impacto

Autor

  • Carolina Filipini Ferreira

    é especialista em Direito Administrativo pela PUC-SP. Membro efetivo da Comissão ESG do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial e professora da Faculdade Unità. Advogada do escritório Curi & Dametto Advogados.

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29 de outubro de 2023, 8h00

Este artigo objetiva tecer ponderações sobre a regulação dos fundos patrimoniais endowments com a Administração Pública, em caráter não exaustivo. A pretensão é fomentar a discussão sobre a matéria, ainda incipiente na doutrina publicista brasileira, embora constitua uma realidade, conforme dado extraído do Monitor de Fundos Patrimoniais no Brasil elaborado e atualizado pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social.

Em acesso ao monitor, verifica-se a existência de 62 endowments no Brasil, que conjuntamente totalizam o patrimônio aproximado em mais de R$ 78 bilhões, sendo que, desses 62 endowments, 15 estão estruturados de acordo com a regulação promovida pela Lei Federal nº 13.800/2019 e podem estabelecer parcerias com a Administração Pública [1].

A definição e a utilização dos endowments no Brasil era um debate atrelado ao terceiro setor como um mecanismo ligado ao alcance de sustentabilidade financeira pela captação de recursos advinda de doações [2]. Muito em razão de ser um modelo sedimentado na experiência internacional para o setor não lucrativo. A maior disseminação e compreensão da matéria dá-se nos Estados Unidos da América, no contexto das universidades, o que indica mais ainda uma setorização específica do assunto. Todavia, precisa ser expandida, principalmente em virtude de como a matéria foi normatizada pelo sistema brasileiro.

David Frederick Swensen, um dos maiores gestores americanos de endowment, que administrou por mais de 30 anos o endowment da Universidade de Yale, cujo valor totalizava $41,4B em 30 de junho de 2022 [3], para conseguir explicar uma das principais características do endowment, citava uma frase de Benjamin Franklin, segundo a qual "you can't get away from death and taxes, but endowments can" [4].

Apesar da ironia contida na frase, a intenção era identificar o caráter de perpetuidade conferido ao endowment, que poderia até mesmo não sofrer tributação, o que, contudo, não mais ocorre, pois, em 2017, o Congresso Americano editou lei de taxação de endowment, a partir de certo valor, em decorrência de críticas quanto às expressivas quantias alcançadas [5].

Para o direito americano, um endowment pode ser considerado como um patrimônio formado por meio de doações, cujo montante original é preservado. A parcela passível de ser gasta pelo donatário é o rendimento auferido pela aplicação financeira daquele montante, conforme sintetiza Paula Volent: "we protect the original value of the gift, and then you can spend returns" [6].

A experiência estadunidense foi um parâmetro para a regulamentação da matéria no Brasil, que, para além do contexto das universidades e do Terceiro Setor, estabeleceu-se como previsão normativa para a Administração Pública; ao menos, até o presente momento, com a ressalva de que há críticas quanto à ausência de regulamentação dos endowments fora do contexto da Administração Pública [7].

Em razão de relevância e de urgência decorrentes do incêndio do Museu Nacional gerido pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), editou-se a Medida Provisória nº 851, de 11 de setembro de 2018, por sua vez, convertida na Lei Federal nº 13.800, de 4 de janeiro de 2019. O governo federal começou a receber doações privadas e de Estados estrangeiros para a reconstrução do museu e, com isso, regulamentou uma maneira para que essas doações fossem recepcionadas pela Administração Pública e ainda pudessem garantir sustentabilidade financeira, por isso, o modelo dos endowments.

A regulação normativa brasileira difundiu os endowments como fundos patrimoniais. De acordo com o artigo 2º, inciso VII cumulado com o artigo 18 da Lei Federal nº 13800/19, a Administração Pública será uma instituição apoiada que poderá celebrar um instrumento de parceria com uma organização gestora de fundo patrimonial, em que ficará estabelecido um vínculo de cooperação entre partes e o interesse público que será perseguido. Esse instrumento de parceria é condição para que seja celebrado um termo de execução, que deverá ser pactuado para cada projeto que será financiado por meio de recursos destinados pela organização gestora através dos rendimentos do endowment, nos termos do artigo 2º, inciso VIII cumulado com o artigo 21 da referida lei.

A organização gestora, segundo a lei, tem que ser criada ou pela forma jurídica de associação civil ou de fundação. Os principais propósitos da organização gestora são captar e gerir as doações mediante a constituição do fundo patrimonial, sendo responsável, inclusive, pela política de investimento, conforme prevê o artigo 2ª, inciso II cumulado com o artigo 3º da Lei Federal nº 13800/19.

Observa-se que a relação jurídica estabelecida pela Administração Pública com o fundo patrimonial acontecerá mediante a celebração de parcerias com a organização gestora para o vínculo de cooperação. Na doutrina administrativista, a função que promove e regula o estabelecimento desses regimes cooperativos pode ser enquadrada no fomento [8].

O interessante na parceria a ser firmada com o endowment é o objetivo de destinação de recursos financeiros para a Administração Pública e não ao contrário, já que é proibida a doação de recursos públicos aos fundos patrimoniais, conforme o artigo 17 da Lei Federal nº 13800/19.

A mobilização de recursos pela Administração Pública para além do orçamento público está entre os objetivos, as metas e as ações do Plano Decenal 2023-2032 da Estratégia Nacional de Economia de Impacto (Enimpacto), prevista no Decreto Federal nº 11646/23 [9].

Em análise preliminar do plano, verifica-se que os fundos patrimoniais aparecem no Eixo VI – Promoção de Ambiente Institucional e Normativo Favorável aos Investimentos e Negócios de Impacto mediante a ação 100  Avançar na discussão da regulamentação tributária dos fundos patrimoniais filantrópicos (endowment) (Temas: Imunidade tributária de Institutos e Fundações).

Porém, a parceria da Administração Pública com os fundos patrimoniais pode estar inserida também no Eixo I denominado ampliação da oferta de capital para economia de impacto, destacando-se a ação 7, a ação 8 e a ação 10, que pretendem identificar investimentos financeiros por meio de fundos, institutos ou fundações. Isso porque já existe a normatização prevista na Lei Federal nº 13800/19, cabendo a promoção quanto ao estabelecimento dessas parcerias com os fundos patrimoniais.

Um caminho interessante é a possibilidade de atrelá-la ao "S" do ESG, em que a doação para um fundo patrimonial seja uma ação social. Além disso, destaca-se o apontamento feito por Paula Maria de Jancso Fabiani e Helio Nogueira da Cruz de desenvolvimento econômico. Como a lógica dos fundos patrimoniais é auferir renda por meio do investimento dos valores das doações, que precisam ser preservados, a política de investimento da organização gestora do endowment pode definir a aplicação em modalidades de venture capital e private equity, bem como em fundos de investimentos de negócios com impacto socioambiental [10].

Certo é que a referida norma é recente, complexa e suscita diversas dúvidas sobre sua aplicação, por exemplo, qual seria a instituição pública apoiada, se de maneira ampla e orgânica para qualquer órgão ou entidade da Administração Pública. Ou, ainda, qual seria o órgão de controle responsável por fiscalizar externamente as parcerias firmadas com os fundos patrimoniais. Tais questões precisam ser pesquisadas e aprofundadas, em especial pela finalidade que esse modelo propõe de sustentabilidade financeira e alinhamento com a Economia de Impacto, que tanto se mostra necessária para enfrentar os problemas socioambientais.

 

__________________________

[1] MONITOR IDIS. Monitor IDIS de Fundos Patrimoniais no Brasil. Disponível em: <https://www.idis.org.br/monitor-de-fundos-patrimoniais-no-brasil/> Acesso em 15 ago. 2023.

[2] Nesse sentido: SOTTO-MAIOR, Felipe Linetzky. Endowments no Brasil: a importação de uma estratégia de sustentabilidade. Revista de Direito do Terceiro Setor. Belo Horizonte, nº 10, p. 32/55, jul/dez. 2011

[3] YALE. The Yale Investments Office. Disponível em <https://investments.yale.edu/> Acesso em 06 ago. 2023.

[4] SWENSEN, David Frederick apud VOLENT, Paula. Endowments. In: How to invest: masters on the craft by David M. Rubenstein. New York: Simon & Schuster, 2022. p. 145.

[5] VOLENT, Paula. Endowments. In: How to invest: masters on the craft by David M. Rubenstein. New York: Simon & Schuster, 2022. p. 145.

[6] Idem, p. 145.

[7] HIRATA, Augusto Jorge; GRAZZIOLI, Raquel; DONNINI, Thiago. Fundos patrimoniais e organizações da sociedade civil. Coordenação SOUZA, Aline Gonçalves; VIOTTO, Aline; PANNUNZIO, Eduardo. São Paulo: GIFE, FGV Direito, 2019.

[8] Nesse sentido: "Essa harmonização, do impositivo e cogente, para o Estado, com o indicativo e facultativo, para a sociedade, permite que os instrumentos e mecanismos administrativos do fomento público rendam melhores resultados, exatamente em razão das possibilidades abertas pela livre coordenação de esforços, tanto através da cooperação, quanto da colaboração, sobretudo pela implícita indução da solidariedade e pela promoção da integração social, que entre ambos produz". (NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial. 16. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2014, 784p).

[9] O Plano Decenal 2023-2032 da Estratégia Nacional de Economia de Impacto (Enimpacto) está disponível em: https://www.gov.br/participamaisbrasil/plano-decenal-2023-2032-da-estrategia-nacional-de-economia-de-impacto-enimpacto e está aberta consulta pública para contribuições até a data de 19/11/2023.

[10] FABIANI, Paula Maria de Jancso; CRUZ, Helio Nogueira da. Fundos patrimoniais: caminho para a sustentabilidade de longo prazo. REPATS – Revista de Estudos e Pesquisas Avançadas do Terceiro Setor. Brasília, v. 4, nº 2, p. 186-203, Jul-Dez, 2017.

Autores

  • é mestre Interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas pela FCA/Unicamp, especialista em Direito Administrativo pela PUC-SP e professora de Direito Administrativo da Faculdade Unità. Advogada e consultora.

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