Tribunal do Júri

Sparf e Hansen v. Estados Unidos e o papel do júri na administração da Justiça

Autor

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

28 de outubro de 2023, 8h00

Era uma noite escura e chuvosa. O relógio tangenciava a meia-noite quando Morris Fitzgerald, segundo imediato do Hesper, desapareceu no mar. A possível cena do crime mostrava respingos de sangue no convés do veleiro e uma mecha de cabelo.

O marinheiro que fazia a ronda noturna não soube explicar o que teria acontecido, mas especulava que Fitzgerald poderia tropeçado nas cordas da embarcação ou cometido suicídio. Desconfiando da explicação superficial e ponderando a ocorrência de um crime, o capitão se juntou ao primeiro imediato e, armados, levaram vários tripulantes sob custódia. Dentre eles, três foram posteriormente indiciados, condenados e sentenciados à morte pelo assassinato [1].

Spacca
Quando do julgamento, os acusados solicitaram que o magistrado instruísse os jurados quanto a possibilidade da prática de um crime culposo ou de lesão corporal seguida de morte. Porém, as instruções fornecidas pelo juiz estimulavam o reconhecimento do crime de homicídio doloso. Após duas horas de deliberação, não alcançando um denominador comum, os jurados requereram novas instruções do juiz-presidente, o qual dissuadiu fortemente o júri a proferir um veredicto culposo.

Jurado: Um crime cometido em alto mar deve ter sido homicídio [doloso] ou pode ser homicídio culposo?

Tribunal: Em tese pode ser homicídio [doloso] ou pode ser homicídio culposo, mas neste caso não pode ser propriamente homicídio culposo. Como já disse, se um crime de homicídio foi cometido, os fatos do caso não o reduzem abaixo do homicídio. Não me entendam dizer que foi cometido o delito de homicídio culposo ou doloso. Isso é para vocês, senhores, determinarem a partir do testemunho e das instruções que lhes dei.

Jurado: Nós temos que decidir entre um veredicto de homicídio culposo ou doloso?
Tribunal: Vocês não me entenderam. Eu não disse isso.

Jurado: Se proferirmos um veredicto de condenação, será imposta a pena de morte?
Tribunal: sim.

Jurado: Não existe outro veredicto que possa ser alcançado a não ser culpado ou não culpado?
Tribunal: Em uma situação específica, um veredicto de homicídio culposo pode ser proferido, como afirmou o promotor distrital; e mesmo neste caso, você tem o poder para fazê-lo. Mas como um dos tribunais do país, espera-se que um júri seja regido pela lei; e a lei que você deve receber do tribunal [2].

Os condenados recorreram para a Suprema Corte dos Estados Unidos. Argumentaram que as instruções do magistrado induziram o júri a afastar a tese de homicídio culposo e que as perguntas feitas por alguns dos membros do Conselho de Sentença evidenciavam que alguns deles entendiam que o homicídio culposo seria uma decisão apropriada. "O caso exigia que o tribunal enfrentasse diretamente a questão de saber se o júri deveria ser instruído sobre seu poder de proferir um veredicto misericordioso [clemência] contra a letra da lei" [3].

Em Sparf e Hansen v. Estados Unidos (1895), a Corte decidiu que nos tribunais federais um júri não tem o poder de decidir contrariamente à lei, eis que deve acatar o texto legal expresso nas instruções fornecidas pelo juiz-presidente. O entendimento sufragado destoava das premissas de Jefferson, para quem o júri era a "única âncora já imaginada pelo homem, pela qual um governo pode ser mantido nos princípios e sua constituição" [4].

Em uma decisão dividida, Justice Harlan, falando pela maioria, refutou ter o júri o direito de judge the law ou, até mesmo, que eles já tiveram essa prerrogativa:

"Qualquer outra regra além desta [obrigando o júri a seguir as instruções do tribunal] traria confusão e incerteza na administração do direito penal. Na verdade, se um júri pode legitimamente desconsiderar a orientação do tribunal em matéria de direito, e determinar por si próprio qual é a lei no caso particular que lhe é apresentado, é difícil perceber qualquer base jurídica sobre a qual um veredicto de condenação possa ser rejeitado pelo tribunal como sendo contra a lei. Se for função do júri decidir a lei, bem como os factos,  se a função do tribunal for apenas consultiva quanto à lei,  por que deveria o tribunal interferir na protecção do acusado contra o que considera um erro do júri em matéria de direito?
Tanto a segurança pública como a privada estariam em perigo se fosse estabelecido o princípio de que os júris em casos criminais podem, por direito, desconsiderar a lei tal como lhes é exposta pelo tribunal, e tornarem-se uma lei para si próprios. Sob tal sistema, a principal função do juiz seria presidir e manter a ordem enquanto os jurados, sem formação na lei, determinariam questões que afectassem a vida, a liberdade ou a propriedade de acordo com os princípios jurídicos que, na sua opinião, fossem aplicáveis ao caso particular sendo julgado..." [5].

Falando pela minoria, Justice Gray relembrou o papel histórico do júri de ser um anteparo entre o acusado e a injusta aplicação da lei. "Nesse caso, o júri deveria ter sido autorizado a interpor sua visão de justiça em favor do réu, e as instruções que lhes foram dadas impediram que o fizesse. Gray reconheceu o direito histórico dos jurados de melhorar a letra da lei, considerando o réu culpado em menor extensão [reconhecendo, no caso, o homicídio culposo], especialmente nos casos capitais" [6]. E, ao final, conclui que "negar o direito dos jurados de determinar a justiça da sentença que seu veredicto faria, privou o júri de seu legítimo lugar na administração da justiça…" [7].

No Brasil, a questão relacionada ao poder do júri de proferir um veredicto absolutório que, em tese, possa contrariar a prova (leia-se: decisão manifestamente contrária à prova), ganhou mais um capítulo junto ao Supremo Tribunal Federal. A 2ª Turma do STF, por maioria de votos, apreciando um agravo regimental em Habeas Corpus [8], restabeleceu a decisão do júri, discutindo, novamente, a absolvição pelo quesito genérico.

Após ressaltar a necessidade premente do julgamento da matéria pelo Plenário do STF [9] e colacionar precedentes da Corte, o ministro André Mendonça apontou que "a absolvição pelo Tribunal do Júri com amparo no quesito genérico não pode ser impugnada com fundamento no artigo 593, inciso III, al. 'd', do Código de Processo Penal, em razão de constituir afronta à soberania dos veredictos".

Trilhando a mesma senda, Nunes Marques aduziu que o quesito genérico absolutório deve ser sempre apreciado pelos jurados, mesmo respondendo afirmativamente aos quesitos previstos nos incisos I e II do artigo 483 do Código de Processo Penal:

"E isso porque, assegurado constitucionalmente aos membros do Conselho de Sentença o sigilo de suas votações e reconhecida a soberania de seus veredictos, não cabe aos juízes togados especular sobre os fundamentos e possíveis contradições na decisão proferida pelo Júri, nem mesmo alegar qualquer contrariedade à prova dos autos, eis que diversos são os fatores e teses  inclusive diversos daqueles apresentados pela defesa  que podem ter sido considerados pelos jurados para a absolvição do réu, como motivações extrajurídicas, por exemplo."

E, ao final, concluiu:

"Assim, em respeito à norma constitucional prevista no artigo 5º, XXXVIII, que prevê como garantias e direitos fundamentais do réu, no âmbito da instituição do Júri, a plenitude da defesa, o sigilo das votações e a soberania dos veredictos, entendo não ser cabível o recurso de apelação previsto no artigo 593, III, 'd', do CPP, como meio de impugnação às decisões absolutórias proferidas pelo Conselho de Sentença apoiadas no artigo 483, III e §2º, do Código de Processo Penal."

O poder que se busca outorgar (ou delimitar) ao Tribunal do Júri é dilema histórico que escapa ao mantra de que cabe ao júri apreciar os fatos e que é função do juiz aplicar o direito. Seja desrespeitando uma orientação do juiz-presidente; seja julgando de maneira manifestamente contrária à prova dos autos, o que se discute, é o papel que o júri deve desempenhar na vida em sociedade. Aguardemos a decisão do STF.

 


[1] MIDDLEBROOKS, Donald M. Reviving Thomas Jefferson’s Jury: Sparf and Hansen v. United States Reconsidered. In: American Journal of Legal History, Volume 46, Issue 4, October 2004, pp. 353–421.

[2] Sem grifo no original.

[3] CONRAD, Clay S. Jury Nullification. The Evolution of a Doctrine. Washginton: Cato Institute, 2014, Pos. 2721.

[4] JEFFERSON, Thomas. The writings of Thomas Jefferson: being his autobiography, correspondence, reports, messages, addresses, and other writings, official an private. Vol. 3. Miami: HardPress, 2017, pos. 1148.

[5] CONRAD, Clay S. op. cit., p. 2776.

[6] Id.

[7] Id.

[8] STF, HC n. 231.024.

[9]Estou certo de que o exame do ARE nº 1.225.185-RG/MG pelo Plenário contribuiria para a segurança jurídica e pacificação social sobre o tema. Com efeito, após as idas e vindas concernentes a sua pauta, considero que, nos processos que estão submetidos à minha relatoria, a análise da matéria tornou-se imperativa, sob pena de negar-se jurisdição, especialmente ante os múltiplos pronunciamentos da Segunda Turma, os quais apresentam orientação consolidada sobre a matéria”.

Autores

  • é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap), professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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