Prática Trabalhista

Direito do Trabalho no agronegócio: transporte de carga acima do peso

Autores

  • Ricardo Calcini

    é professor advogado parecerista e consultor trabalhista. Atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs TST e STF). Coordenador trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP) do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • Leandro Bocchi de Moraes

    é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD) pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-graduado em Diretos Humanos e Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (IGC/Ius Gentium Coninbrigae) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo (NTADT/USP).

19 de outubro de 2023, 8h00

Um assunto bastante sensível e polêmico que atinge o setor logístico de transporte no agronegócio se refere à problemática do excesso de peso da carga transportada por caminhões nas rodovias brasileiras. Tal discussão tem sido enfrentada recorrentemente junto ao Poder Judiciário, sendo que, por vezes, o debate é igualmente travado na Justiça do Trabalho.

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Dito isso, surgem alguns questionamentos de ordem prática, tais como: a Justiça Trabalhista seria materialmente competente para discutir essas questões, vez que o sobrepeso da carga é aspecto atinente às normas de trânsito? Qual é o entendimento jurisprudencial atualmente sobre esse assunto? E, mais, a matéria é correlata ao meio ambiente laboral?

Por certo, esta questão é bastante relevante para toda a sociedade, sobretudo no denominado Direito do Trabalho no Agronegócio, tanto que o assunto foi indicado por você, leitor(a), para o artigo da semana na coluna  Prática Trabalhista, da revista eletrônica Consultor Jurídico (ConJur) [1], razão pela qual agradecemos o contato.

Com efeito, é sabido que a logística do transporte possui um papel fundamental para o êxito na operação do agronegócio em nosso país. Aliás, de acordo com as expectativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pode haver safra recorde de 318 milhões de toneladas para 2023, podendo superar em 20,9% a marca registrada no ano anterior[2].

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Do ponto de vista normativo, a Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 [3], que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro, dispõe sobre o limite de tolerância permitido no transporte de cargas. E o artigo 99 da referida norma estipula que "somente poderá transitar pelas vias terrestres o veículo cujo peso e dimensões atenderem aos limites estabelecidos pelo Contran".

Já a Norma Regulamentadora 31 (NR 31) [4] "tem por objetivo estabelecer os preceitos a serem observados na organização e no ambiente de trabalho rural, de forma a tornar compatível o planejamento e o desenvolvimento das atividades do setor com a prevenção de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho rural".

Frise-se que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em seu artigo 157 [5], dispõe sobre as normas de saúde e segurança do trabalhador. No mesmo sentido, caminha o artigo 170, inciso VI, da Constituição [6].

A propósito do assunto, oportunos são os ensinamentos de Jair Aparecido Cardoso, Marina Calanca Servo e Sebastião Sérgio da Silveira a respeito da relevância do meio ambiente do trabalho saudável [7]:

"O meio ambiente do trabalho, como uma das espécies do gênero meio ambiente, abrange o local no qual as pessoas desempenham suas atividades laborais, remuneradas ou não, cujo equilíbrio se baseia na salubridade, ou seja, na ausência de agentes que comprometam a incolumidade psicofísica e interfiram na qualidade de vida dos trabalhadores.

A Constituição consagra a garantia fundamental à redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança".

Neste contexto, instaura-se a polêmica controvérsia no tocante à (in)competência da Justiça do Trabalho para dirimir os conflitos envolvendo os casos em que há constatação do excesso de peso transportado. E a partir de estudos de jurimetria, infere-se que a solução ainda não se encontra pacificada nos tribunais, sendo possível encontrar decisões no âmbito da Justiça Federal [8] e da Justiça do Trabalho.

No Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 15ª Região, por exemplo, uma empresa teve uma decisão pela incompetência da Justiça do Trabalho para processar ações envolvendo o excesso de peso transportado, a qual, segundo o Regional, seria da Justiça Federal [9]. Na mesma linha de raciocínio, o TRT-15, ao julgar um outro caso semelhante, entendeu que nos casos travados entre órgãos de fiscalização de trânsito e as respectivas empresas, a Justiça do Trabalho é incompetente para o julgamento da lide [10].

Em seu voto, a desembargadora relatora, ao analisar a petição inicial proposta pelo Ministério Público do Trabalho, ponderou:

"A leitura dos trechos dos pedidos acima sublinhados demonstra que a pretensão do D. Ministério Público do Trabalho é que a empresa requerida seja condenada à adequação do sistema de transporte de cargas ao que determina a legislação de trânsito (Código de Trânsito Brasileiro e normativos infraconstitucionais emitidos pelo Contran e Detran), sendo apenas incidental a questão relativa à segurança dos trabalhadores e de suas condições de trabalho, matéria esta secundária aos pedidos formulados, o que se mostra insuficiente para a fixação da competência desta Justiça Especializada para dirimir o conflito em tela".

Contudo, em sentido contrário, o próprio TRT-15 já emitiu condenação contra uma empresa por danos morais coletivos, em razão de se adotar a prática do transporte de carga acima do peso permitido pela legislação [11]. No mesmo sentido, outra empresa foi também condenada perante a Justiça Laboral, agora no âmbito do TRT-MG da 3ª Região, ao fundamento de que a prática do transporte acima do limite de peso suportado pelo caminhão gera riscos ao próprio motorista trabalhador e a terceiros [12].

Diante da constatação de tal divergência jurisprudência nos TRTs, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) já foi provocado a emitir juízo de valor sobre o tema, no qual decidiu que a problemática em epígrafe, por envolver temática em torno do meio ambiente de trabalho, seria da competência material da Justiça do Trabalho, e não da Justiça Comum Federal.

Em seu voto, o ministro relator ponderou [13]:

"No caso das pessoas que atuam na condução de veículos, não se pode negar que o desatendimento das normas que regulam o limite de cargas, conquanto possa representar, de proêmio, violação das regras do Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.504/1997), põe em risco uma infinidade de indivíduos, mas também representa, de modo direto e específico, risco mais acentuado de acidentes para aquele que se encontra na direção, maior interessado na preservação de sua saúde física e mental. Trata-se de verdadeira interseção de normas, pois o limite fixado pela lei de trânsito se vincula à capacidade do veículo, à segurança do motorista e das demais pessoas que trafegarem nas rodovias por ele percorridas, como também de toda a sociedade, seja pelo risco em si, seja pela conservação das rodovias, seja pelo custeio do sistema previdenciário, em caso de concessão de benefícios etc."

Entrementes, impende destacar que a Suprema Corte, quando do julgamento da ADC 48 [14], reputou constitucional a Lei nº 11.442/2007, que regula a atividade do transportador autônomo de carga. Segundo tal decisão, uma vez preenchidos os requisitos da referida normatização, se estará diante de uma relação comercial de natureza civil, e não trabalhista, o que, por sua vez, impacta na definição das regras de competência.

A par de todo o exposto, certo é que o assunto ainda está longe de se encontrar sedimentado em nossos tribunais. Afinal, se, por um lado, há uma corrente interpretativa no sentido de que, ao se falar em meio ambiente do trabalho e de normas de segurança, a competência seria da Justiça do Trabalho; lado outro, há corrente jurisprudencial divergente que, pautada na formulação de pedidos visando o cumprimento das exigências de normas de trânsito, defende que tal relação jurídica escaparia da esfera trabalhista.

 


[1] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.

[5] Art. 157 – Cabe às empresas: I – cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho; II – instruir os empregados, através de ordens de serviço, quanto às precauções a tomar no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais; III – adotar as medidas que lhes sejam determinadas pelo órgão regional competente; IV – facilitar o exercício da fiscalização pela autoridade competente.

[6] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (…).VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;

[7] Meio ambiente do trabalho em tempos de pandemia / organizadores Guilherme Guimarães Feliciano, Raimundo Simão de Melo – Campinas, SP: Lacier Editora, 2021, página 182 e 183

Autores

  • é professor sócio consultor de Chiode e Minicucci Advogados | Littler Global. Parecerista e advogado na Área Empresarial Trabalhista Estratégica. Atuação especializada nos Tribunais (TRTs, TST e STF). Docente da pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Coordenador Trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP e da Ceilo Laboral.

  • é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito, pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela PUC-SP, pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho, da USP.

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