Opinião

Fim da regra do licenciamento trifásico: fusão da LP com LI e simplificação

Autores

  • Talden Farias

    é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

  • Rafael Lima Daudt D'Oliveira

    é advogado procurador do Estado do Rio de Janeiro e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade de Coimbra/Portugal especialista em Direito Ambiental pela PUC/RJ e autor de A simplificação no Direito Administrativo e Ambiental (Lumen Juris 2020).

19 de outubro de 2023, 11h12

O modelo trifásico é a regra no licenciamento ambiental brasileiro, segundo o artigo 19 do Decreto 99.274/1990 e o artigo 8º da Resolução 237/1997 do Conama, estando o mesmo dividido nas etapas de Licença Prévia (LP), Licença de Instalação (LI) e Licença de Operação (LO). É na primeira fase que se aprova a localização e a concepção da atividade, atestando assim a sua viabilidade ambiental, sendo por isso considerada a mais importante de todas.

A despeito disso, o fato é que se cuida de uma licença de concepção, pois a princípio não ocorre qualquer alteração no mundo dos fatos. Por isso, nada impede a sua incorporação em uma fase preliminar da licença de instalação, como acontecia em alguns Estados antes da edição do Decreto 88.351/1983 (o primeiro a regulamentar a Lei 6.938/1981), o que poderia se dar na forma de uma certidão ou relatório técnico aprovado pela autoridade competente. Isso poderá contribuir para a diminuição da burocracia sem causar prejuízo à qualidade do controle ambiental.

Conforme pesquisa realizada, identificamos que o Brasil talvez seja o único país do mundo, ou um dos únicos, que temos notícia que adota o modelo trifásico [1]. Esse modelo, em realidade, foi criado pelo Estado do Rio de Janeiro, que previa, em seu Decreto Estadual 1.633/1977, os três instrumentos de controle do Sistema de Licenciamento de Atividades Poluidoras (Slap), sendo eles a LP, a LI e a LO, segundo o artigo 4º do referido decreto. Desse modo, o decreto inaugurou em nosso ordenamento jurídico o modelo trifásico, que foi posteriormente adotado pelos demais estados brasileiros, bem como pelo próprio ente central, o que foi feito inicialmente por meio do Decreto Federal 88.351/1983, que regulamentava a Política Nacional do Meio Ambiente, e depois pelo Decreto Federal 99.274/1990 (que revogou aquele) e pela Resolução 237/1997 do Conama.

Interessante lembrar que, além do modelo trifásico, o Estado do Rio de Janeiro dispôs pioneiramente no Decreto-Lei 134/1975 sobre a prevenção e o controle da poluição, dando início ao próprio licenciamento ambiental no país.

Diante disso, após mais de quatro décadas de adoção do modelo trifásico, e no intuito de tentar tornar o licenciamento ambiental menos burocrático e, ao mesmo tempo, mais célere e eficiente, faz-se necessária uma reflexão acerca da conveniência e oportunidade de manutenção do referido modelo. Resta saber se a possibilidade de fusão da LP com a LI, gerando a simplificação do procedimento, poderia ser feita sem diminuir a eficiência do licenciamento ambiental. A respeito do assunto, Rafael Daudt D'Oliveira pondera que:

"O licenciamento trifásico deve deixar de ser a regra, substituído pelo licenciamento bifásico ou único, conforme a gradação de riscos e impactos adversos. É perfeitamente possível que, pelo menos, as fases prévia e de instalação possam ser fundidas num único procedimento. Isso porque, para se atestar a viabilidade ambiental e locacional das atividades, é também preciso que se defina onde se pode e onde não se pode construir. A diferença é que o projeto executivo e final de determinado empreendimento será moldado ao longo do procedimento unificado, depois da análise e decisão acerca das opções locacionais e tecnológicas." [2]

Conforme entendimento nosso, a regra geral e obrigatória a ser adotada no sistema de licenciamento ambiental poderia muito bem ser a do modelo bifásico para todas as atividades, inclusive aquelas consideradas efetiva ou potencialmente causadoras de significativa degradação do meio ambiente, e que, portanto, dependem de EIA/Rima. A nosso ver, a fusão da LP à LI  tornando, assim, o modelo bifásico a regra geral de fato e de direito [3]  deverá contribuir para redução de custos do processo, desburocratização, celeridade e eficiência, sem causar prejuízo à proteção do meio ambiente. Como defende Talden Farias, "não parece que a extinção da licença prévia possa comprometer a qualidade do controle ambiental, desde que haja uma fase de avaliação geral da concepção do empreendimento" [4].

Com o fim da regra do licenciamento trifásico, o licenciamento torna-se a rigor bifásico, e, excepcionalmente, monofásico, situação esta aplicada a atividades de menor potencial poluidor ou a atividades que não operem propriamente, como é o caso de empreendimentos imobiliários ou de infraestrutura urbana [5]. Mesmo em se tratando de uma atividade de alto ou significativo impacto entendemos que o controle ambiental não resta diminuído. Pensamos que a fusão da fase de concepção e viabilidade da atividade com aquela destinada à sua instalação não compromete a proteção do meio ambiente. Trata-se na verdade de abandonar uma burocracia procedimental desnecessária que nada contribui para a tutela ambiental. Reforça este argumento o fato de que não se tem notícia de que o modelo trifásico seja adotado em qualquer parte do mundo.

Essa solução foi adotada pelo Estado do Rio de Janeiro para o licenciamento de atividades de alto e significativo impacto ambiental. Com efeito, o Decreto 46.890/2019, alterado pelo Decreto Estadual 47.550/2021, que dispõe sobre o Sistema Estadual de Licenciamento e demais Procedimentos de Controle Ambiental (Selca), estabelece o seguinte:

"Artigo 23. A Licença Ambiental Integrada (LAI) é concedida antes de se iniciar a implantação do empreendimento ou atividade e o órgão ambiental, em única fase, atesta a viabilidade ambiental, locacional e autoriza a instalação de empreendimentos ou atividades, estabelecendo as condições e medidas de controle ambiental.
§1º A LAI é aplicável para os empreendimentos e atividades de baixo a significativo impacto ambiental.
§2º Dentro de seu prazo de vigência, a LAI poderá autorizar a pré-operação pelo prazo máximo de 6 (seis) meses, visando à obtenção de dados e elementos de desempenho necessários para subsidiar a concessão da Licença de Operação.
§3º Nos casos em que a implementação e a operação comportem mais de uma fase, o prazo disposto no parágrafo anterior aplica-se para cada fase do empreendimento ou atividade.
§4º O prazo de vigência da LAI é, no mínimo, o estabelecido no cronograma de instalação e, no máximo, de oito anos.
§5º Caso seja do interesse do empreendedor, ele poderá optar pelo licenciamento trifásico."

Interessante observar a possibilidade de o empreendedor optar pelo modelo trifásico. Isso porque às vezes para ele poderá mais interessante economicamente obter uma LP para poder atrair investidores para o seu negócio. A LP comprovaria a viabilidade do projeto, funcionando nesse caso como uma espécie de salvo conduto ambiental. Pela mesma razão, a LP também tem um papel relevante nas obras públicas e nas licitações.

Com relação às atividades de menor porte ou de menor potencial ofensivo, o órgão ambiental deverá estabelecer um procedimento simplificado para essas atividades, independentemente da fase em que se encontrarem, tendo em vista o §1º do artigo 12 da Resolução 237/1997 do Conama prever que "poderão ser estabelecidos procedimentos simplificados para as atividades e empreendimentos de pequeno potencial de impacto ambiental, que deverão ser aprovados pelos respectivos Conselhos de Meio Ambiente".

Realmente, não faz sentido submeter um lava-jato, por exemplo, ou qualquer outro empreendimento de menor potencial poluidor ao licenciamento trifásico, posto que isso implica perda de tempo e de dinheiro para o cidadão e para a Administração Pública [6]. Logo, faz-se necessário justificar tecnicamente para, em seguida, regulamentar as situações em que o licenciamento ambiental simplificado é pertinente.

Diversos países do mundo utilizam o modelo monofásico de licenciamento. Nos EUA, o sistema de licenciamento (permiting) conta geralmente com apenas uma fase. A Itália instituiu a Autorização Única Ambiental (AUA) para atividades de pequeno e médio porte (Decreto Presidencial 59/2013, editado com base na Lei 35/2012). Isso trouxe novas regras destinadas a simplificar a carga administrativa imposta às pequenas e médias empresas, através da aplicação de um critério de proporcionalidade em relação às formalidades administrativas exigíveis em relação ao tamanho do negócio, ao campo de atividade em causa e à natureza dos interesses públicos envolvidos. A AUA tem a intenção de absorver e substituir em um único procedimento alguns atos administrativos de autorização para atividades de relevância ambiental [7].

O já referido Decreto 46.890/2019 do Rio de Janeiro, entre outras hipóteses, estabelece uma licença monofásica para atividades de baixo e médio impacto ambiental:

"Artigo 28. A Licença Ambiental Unificada (LAU) é concedida antes de iniciar-se a implantação do empreendimento ou atividade e, em uma única fase, atesta a viabilidade ambiental, aprova a localização e autoriza a implantação e a operação de empreendimento ou atividade classificado como de baixo impacto, nos casos em que não for aplicável a LAC, e de médio impacto ambiental, com base nos critérios definidos no Anexo II deste Decreto, estabelecendo as condições e medidas de controle ambiental.
§1º O prazo de vigência da LAU é, no mínimo, de seis anos e, no máximo, de 12 (doze) anos.
§2º A LAU não se aplica às atividades e empreendimentos que já tenham iniciado a sua implantação ou operação, mesmo que classificados como de baixo ou médio impacto ambiental.
§3º O Inea realizará vistoria prévia para empreendimentos e atividades sujeitos à LAU, salvo nas hipóteses previstas em regulamento."

Essa simplificação tanto do direito administrativo quanto do direito ambiental é uma tendência que pode ser observada em diversos países do mundo [8]. Se for bem planejada e implementada, deverá ser benéfica para a proteção do meio ambiente, desenvolvimento das atividades econômicas, geração de empregos e redução da pobreza, contribuindo, assim, para as dimensões ecológica, social e econômica da sustentabilidade.

Isso tende a aumentar a eficiência dos órgãos ambientais, que vão poder otimizar o seu tempo e os seus recursos humanos e financeiros. Obviamente, para tanto bastaria apenas alterar o Decreto 99.274/1990, pois não existe lei federal exigindo o procedimento trifásico. De toda sorte, sugere-se uma discussão pública prévia a fim de se prestigiar o princípio da participação. A fusão da LP com a LI deve ajudar na simplificação do licenciamento, contribuindo para desafogar a Administração Pública ambiental. Contudo, é óbvio que isso por si só não basta, pois é preciso equipar e prestigiar os órgãos ambientais.

É importante registrar que quando falamos de simplificação não estamos nos referindo à simplificação ou não observância das normas de direito material. Isso seria contrário ao caput do artigo 225 da Constituição Federal de 1988. Portanto, ao falamos de simplificação estamos a tratar apenas da simplificação de procedimentos, conforme já tivemos a oportunidade de registrar [9]. Afinal de contas, a simplificação no direito ambiental é muito bem-vinda conquanto não prejudique a qualidade do controle ambiental, como é exatamente o caso que defendemos aqui.

 

 


[1] Banco Mundial, 2008, Licenciamento Ambiental de Empreendimentos Hidrelétricos no Brasil – Uma Contribuição para o Debate, Relatório Síntese, p. 15; Ibama, 2016, Avaliação de Impacto Ambiental: Caminhos para o Fortalecimento do Licenciamento Ambiental Federal, Resumo Executivo, p. 22; documentos disponíveis em http://pnla.mma.gov.br/publicacoes-diversas, acesso em 13/05/2019; e FERREIRA, Paulo, 2010, O Sistema de Licenciamento Ambiental e o Desafio Econômico – Proposta para o Estado de São Paulo, Tese de Doutorado, Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, p. 209.

[2] DAUDT D’OLIVEIRA, Rafael Lima. A simplificação no direito administrativo e Ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 130.

[3] Importa esclarecer que em alguns órgãos ambientais o procedimento mais adotado é o licenciamento ambiental monofásico ou mesmo bifásico, não obstante o trifásico tenha sido o único modelo previsto pelo Decreto Federal 99.274/1990 e pelo revogado Decreto Federal 88.351/1983.

[4] FARIAS, Talden. Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos. 8. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p.  81. Em igual sentido: BELLINI, Felipe. Licenciamento ambiental e avaliação de impacto no Brasil: uma abordagem crítica à aplicação prática de seus conceitos. Dissertação (Mestrado em Direito Ambiental) – Escola Superior Dom Helder Câmara – ESDHC, Belo Horizonte, 2022, COSTA, Mateus Stallivieri. O licenciamento ambiental e o dever fundamental de proteção ao ambiente. Dissertação (Mestrado em Direito) – UFSC, Florianópolis, 2020 e GONÇALVES, Daniel dos Santos. A necessidade de imposição de limites à simplificação do licenciamento ambiental no Brasil. Dissertação (Mestrado em Direito Ambiental) – Escola Superior Dom Helder Câmara – ESDHC, Belo Horizonte, 2022.

[5] Os loteamentos, por exemplo, quando muito, vão precisar de uma LO apenas se possuírem uma Estação de Tratamento de Esgoto.

[6] Na ADI 6808/DF, o STF vedou o procedimento automático no licenciamento ambiental para as atividades econômicas de risco médio. A respeito do assunto, segue o artigo "O entendimento do STF quanto à simplificação do licenciamento ambiental". (https://www.conjur.com.br/2022-set-05/farias-stallivieri-andrade-licenciamento-pauta-stf2), da autoria de Talden Farias, Mateus Stallivieri da Costa e Jaqueline de Andrade. 

[7] Dell’anno, Paolo. Diritto Dell’Ambiente: commento sistematico al d. lgs. 152/2006, integrato com le nuove norme sul SISTRI, sull’autorizzazione unica ambientale e sul danno ambientale. 3. ed. CEDAM, 2014, pp. 259-261.

[8] Cf. DAUDT D’OLIVEIRA, Rafael Lima. A simplificação no direito administrativo e Ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.

[9] DAUDT D’OLIVEIRA, Rafael Lima, FARIAS, Talden. "Simplificação do licenciamento ambiental". In: MILARÉ, Édis (org.). Quarenta Anos da Lei da Política Nacional de Meio Ambiente: reminiscências, realidade e perspectivas. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2021, pp. 769-792.

Autores

  • é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE, pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

  • é advogado, procurador do Estado do Rio de Janeiro e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade de Coimbra/Portugal, especialista em Direito Ambiental pela PUC/RJ e autor de A simplificação no Direito Administrativo e Ambiental (Lumen Juris, 2020).

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