Lavagem & Afins

Uma nova coluna na ConJur

Autores

  • Pierpaolo Cruz Bottini

    é advogado criminalista e professor de Direito Penal na USP (Universidade de São Paulo).

  • Felipe Campana

    é doutorando e mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Especialista em Direito Penal Econômico pela FGV. Bacharel em Direito pela FD da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado consultivo no escritório Heloísa Estellita Advogados.

  • Marina Brecht Fernandes

    é advogada criminalista e mestranda em Direito Penal pela USP (Universidade de São Paulo).

16 de outubro de 2023, 13h43

O tema da lavagem de dinheiro tem pautado debates nas mais variadas esferas. Dos jornais aos seminários acadêmicos, passando pelas bancadas de tribunais e reuniões internacionais, a ocultação de bens provenientes de infrações penais é objeto das mais vivas discussões. Na Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) foi criado um grupo de estudos para tratar do tema, assim como na Faculdade de Direito da FGV (Fundação Getulio Vargas) e em muitas outras, a revelar a candência acadêmica do tema.

A lei de lavagem de dinheiro brasileira foi aprovada em 1998, na esteira de muitas outras, de igual teor, que entraram em vigor naquele período pelo mundo. As inquietações jurisprudenciais e doutrinárias, apresentadas à época, sobre os contornos do crime, seus elementos estruturantes e relações com os institutos da Parte Geral não diminuíram com a passagem do tempo. Ao contrário, novos temas surgem a cada dia que desafiam intérpretes a aplicar a lei à luz de novas condutas e tecnologias de ocultação de capitais.

Spacca
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A própria definição de lavagem de dinheiro é fluida. As normas dos países que tratam do tema estão longe da harmonia e da uniformidade. Na Europa, a mera aquisição ou posse de recursos oriundos do crime é considerada lavagem de dinheiro, enquanto em países como o Brasil é necessário um ato ou uma intenção expressa de ocultação desses valores para a consumação do delito. Há legislações onde a lavagem de dinheiro na forma culposa é admissível, enquanto outras só a preveem na modalidade dolosa. Alguns países punem a autolavagem  quando aquele que oculta os bens é também o autor ou participe do crime antecedente — enquanto outros afastam expressamente a pena nesses casos. Em certos locais, aceita-se o dolo eventual para todas as modalidades de lavagem de dinheiro, enquanto outros o admitem apenas para atos específicos.

No âmbito interno, levada em conta apenas a lei brasileira, outras indagações se apresentam. Como tratar os casos em que o crime antecedente traz em sua redação típica um ato de ocultação similar àquele previsto no tipo penal da lavagem de dinheiro? É possível condenar alguém pela prática de ambos, em concurso, usando mais de uma vez o mesmo ato de ocultação, ou tal operação incidiria em um bis in idem vedado na seara penal? E nos casos em que o crime antecedente é um delito contra a ordem tributária, como definir o produto do crime e o momento de sua existência jurídica, diante das dificuldades específicas relacionadas a esses tipos penais?

Ainda no campo do produto do crime, dificuldades adicionais surgem quando os recursos ilícitos são misturados a bens lícitos e fungíveis, como dinheiro ou ativos digitais, ou quando o delito antecedente, por suas características, dificulta a identificação exata dos valores por ele produzidos, como é o caso de cartéis ou de crimes de licitação.

No âmbito subjetivo, intensos são os debates sobre as hipóteses de dolo eventual ou de cegueira deliberada, e no âmbito da natureza jurídica, também complexas as discussões sobre o caráter permanente ou instantâneo das várias modalidades do delito, bem como as hipóteses de cessação da permanência, nos casos em que se admite a extensão da consumação do crime no tempo.

A lei de lavagem de dinheiro brasileira, para além dos aspectos criminais, elenca um rol de profissionais que atuam em setores sensíveis à lavagem de dinheiro, obrigados a supervisionar as atividades de seus clientes e comunicar ao Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) atos suspeitos. Nessa seara, também existem inquietações pertinentes. A violação das normas de comunicação implica em omissão penalmente relevante do profissional, quando acompanhada de dolo eventual? A mera comunicação o autoriza a dar sequência nas operações suspeitas ou exige, em certos casos, a suspensão da relação com o cliente?

Na seara processual, questões como os critérios de prova do crime antecedente, as hipóteses de cautelares patrimoniais, bem como as medidas de cooperação internacional, também são objeto de vivo debate, nas cortes e nos bancos acadêmicos.

Assim, mesmo que regulada há décadas, e constantemente escrutinada, a lavagem de dinheiro está longe de ser um tema batido e pacífico. Há muitos aspectos a analisar, tarefa que exige reflexão cautelosa e técnica, apartada das paixões comuns nesse setor. Oportuna e justificada, portanto, a iniciativa desta ConJur de criar um espaço para debater o tema. Espera-se que juristas, advogados, juízes, promotores e professores somem esforços para construir uma dogmática da lavagem de dinheiro, ancorada nos preceitos constitucionais de um direito penal Democrático de Direito, capaz de orientar o intérprete diante de uma realidade sempre dinâmica e mutável.

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