Repensando as Drogas

Legalização do uso da cannabis: medo e ajustes jurisprudenciais necessários

Autor

  • Antônio de Padova Marchi Júnior

    é procurador de Justiça do MP-MG (Ministério Público de Minas Gerais). Mestre e doutor em Direito pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Professor da Faculdade de Direito do Ibmec-BH. Membro do coletivo Repensando a Guerra às Drogas.

13 de outubro de 2023, 8h00

A publicização midiática do julgamento do Recurso Extraordinário nº 635.659, oportunidade em que o Supremo Tribunal Federal decidirá sobre a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei n.º 11.343/2006 (Lei de Drogas), favoreceu o amplo debate sobre o tema, especialmente nas redes sociais, muitas vezes com projeções alarmantes sobre as consequências que a eventual descriminalização da maconha promoverá no cotidiano brasileiro.

A disseminação a jato de desinformações desnudou a necessidade de uma melhor reflexão sobre o uso de drogas, sobre o estágio civilizacional adequado para se experimentar a nova perspectiva e sobre os princípios de justiça que o envolvem.

ConJur
A partir dos estudos lançados em ensaios anteriores desta coluna, se pretende aqui debater a respeito da inescapável "marcha do espírito" em favor da legalização do uso de drogas, do reconhecimento da maturidade social para o enfrentamento do fenômeno psicológico representado pelo medo e das estratégias empregadas pelo STF e pelo STJ para, paulatinamente, ajustar a interpretação da constituição, do direito e do processo penal à realidade mais recente que se consolida no horizonte. A conclusão conclama à perfeita delimitação da matéria a ser travada no âmbito do STF e aquela da competência infraconstitucional do STJ, evitando-se o contrassenso de eventuais divergências entre os dois tribunais máximos do país.

Confirmando a primeira hipótese, a exploração da maconha para fins medicinais bem demonstra o desbordo do plano meramente jurídico sobre o tema. Os pacientes simplesmente não podem ser alijados do tratamento canábico por mero capricho do legislador ou por imposições de ordem moral ou religiosa. Por outro lado, a indústria e o mercado igualmente estão reagindo às limitações da produção e cada vez mais pressionam para a normalização do plantio, da manipulação e do comércio da droga. A aceitação do uso recreativo em diversos países, como Estados Unidos, Canadá, Portugal, Espanha, Holanda, Argentina e Uruguai, não deixa dúvida sobre o caráter irrefreável da legalização da maconha.

O negócio já movimenta milhões de dólares e se sedimentou sem maiores rupturas nos países que a ele aderiram. Rápida pesquisa no âmbito do Google bem demonstra a fácil captura da planta pelo agro e a sua conformação com a indústria e o comércio.[1]

Além do reconhecido emprego medicinal, a cannabis e a sua variante, a fibra de cânhamo, são empregadas como matéria prima em mais de 5.000 (cinco mil) produtos de diferentes domínios da cadeia produtiva, como a indústria têxtil, a construção civil, o setor de combustíveis, entre outras. A sua regulamentação, tal como ocorrido nos EUA, onde já representa o quinto maior cultivo,[2] certamente abrirá espaço para o surgimento de outros mercados que ajudarão a desenvolver a economia.

Portanto, é uma realidade que não pode mais ser ignorada pelos poderes.

Ocorre que o discurso proibicionista ainda mantém o assunto como verdadeiro tabu, estigmatizando os usuários como corrompidos, amorais e perigosos, enfim, um risco para “as pessoas de bem”.

Conta muito com o medo decorrente dos falsos alarmes morais, a segunda premissa trabalhada neste artigo.

Para não se alongar o debate em demasia, tomam-se emprestadas as lúcidas conclusões do criminólogo Riccardo Cappi, professor da Uneb (Universidade do Estado da Bahia), ao estudar a influência imposta pelo medo para justificar o movimento em prol da redução da maioridade penal, que em tudo se aplica às drogas. Afirma o autor[3]:

A partir do medo, a percepção sobre o problema é reduzida. O meu medo faz com que eu esteja focado naquilo que pode me atingir, sem ver a complexidade, a circunstância, a história, as possibilidades e as alternativas. O medo e a dor são legítimos. Mas não podemos pautar políticas públicas com base no medo […]. Quando o estado e parlamentares apresentam uma saída distante da legalidade, essa solução mágica passa a ser atraente e a exclusão radical se apresenta como remédio. As entidades tomam a decisão de condenar o indivíduo à morte social. Na criminologia, a questão da periculosidade sempre foi um problema. É impossível fazer uma previsão absoluta e certeira. Há uma relativa incerteza com a qual temos que trabalhar.

Há o medo de a legalização das drogas determinar a piora do quadro e elevar o número de dependentes. Existe o caráter doloroso e amedrontador de que esse pesadelo possa fugir do controle e se tornar endêmico. Com base no discurso catastrófico, políticos reacionários se vestem com a capa da moralidade para obter ganhos junto ao eleitorado cristão-conservador. Tudo muito fora da racionalidade.

Daí a importância do debate sereno e equilibrado sobre a questão. A propósito, vale registrar o recente artigo assinado por David Pinter Cardoso aqui nesta coluna, quando projetou o círculo socialmente maduro alcançado pela sociedade brasileira a partir dos seguintes tópicos: (i) proibir drogas não reduz a oferta e nem a demanda de drogas ilícitas; (ii) regulamentar o uso não necessariamente aumenta o consumo; (iii) maior risco à saúde não guarda relação com drogas serem proibidas; (iv) uso de drogas não é problema de saúde; o problema é o uso abusivo de drogas; (v) a maconha não é porta de entrada para outras drogas; (vi) drogas não geram crimes; proibir drogas sim e (vii) mais prisões não necessariamente reduzem criminalidade.[4]

Apesar disso, o ambiente político atual não permite supor que a formalização da legalização do uso de drogas será enfrentada racionalmente por leis aprovadas pelo Legislativo ou por decisões do Executivo, ficando a problemática, mais uma vez, entregue ao Poder Judiciário.

A corte constitucional (STF) e a corte infraconstitucional (STJ) não fugiram do compromisso e passaram a enfrentar o tema, ambas com estratégias bem calculadas de não favorecer a ruptura brusca do modelo comportamental, indicativo claro de que também não se sentem imunes ao angustiante medo de não saber ao certo até onde a mudança alcançará.

Para a sorte de todos, embora nutrindo a tendência natural de se preocupar mais com os aspectos negativos em detrimento dos alcances positivos das decisões, as maiores instâncias do Poder Judiciário decidiram romper com a paralisia que se arrastava há anos sobre a sempre criticada criminalização do uso de drogas.

Desde a primeira edição do seu festejado "Introdução crítica ao direito penal brasileiro", em 1990, Nilo Batista já não aceitava a tipificação penal do usuário:[5]

As aplicações legislativas do princípio da lesividade também comparecem como fundamento parcial da impunibilidade do chamado crime impossível (art. 17 CP). O mesmo fundamento veda a punibilidade da autolesão, ou seja, a conduta extrema que, embora vulnerando formalmente um bem jurídico, não ultrapassa o âmbito do próprio autor, como, por exemplo, o suicídio, a automutilação e o uso de drogas. No Brasil, o artigo 16 da Lei 6368/76 incrimina o uso de drogas em franca oposição ao princípio da lesividade e as mais atuais recomendações político-criminais.

Ainda assim, mesmo tardiamente, deve-se louvar as posturas atuais das cortes superiores.

Esta coluna também já deixou registradas as principais críticas ao controle penal e ao contundente fracasso da política de guerra às drogas. Não existem mais ilusões a esse respeito. Portanto, é de se aplaudir o movimento jurisprudencial ocorrido tanto no STF como no STJ.

O primeiro, em seu papel maior de guardar a Constituição, corajosamente colocou em pauta e iniciou o julgamento do citado Recurso Extraordinário n.º 635.659, caminhando para confirmar a inconstitucionalidade da tipificação do uso de maconha.

Sem dúvida, empregou postura cautelosa e limitou bastante o alcance do julgado, o que não retira o mérito do enfrentamento da questão e da busca por critérios formais para distinguir o usuário do traficante.

No artigo publicado em 8 de setembro passado, Cristiano Maronna descortinou o desenvolver do julgamento e deixou assentados importantes apontamentos na esperança de contribuir para que, ao final, o STF estabeleça parâmetros de produção e validade dos indícios, afastando-se da centralidade do testemunho policial e das provas a ele ancoradas para a tipificação do tráfico de drogas. [6]

Em acréscimo, considera-se fundamental a convalidação pelo STF da interpretação da legislação infraconstitucional adotada pelo STJ a partir de um sem-número de julgados sobre a matéria.

Controle da constitucionalidade pelo STF; controle da legalidade pelo STJ.

A jurisprudência atual do STJ passou a atacar o instrumento mais perverso da política de guerra às drogas, qual seja, o paulatino rebaixamento do standard probatório para fundamentar o decreto de prisões preventivas e a prolação de sentenças condenatórias.

Entre outros julgados, cuidou (i) de restabelecer a observância dos rigores legais para a validade das buscas domiciliares (HCs 598.051/SP e 766.654/SP), (ii) de considerar insuficientes para a condenação os conjuntos probatórios calcados somente em elementos informativos do inquérito ou em testemunhos indiretos para a sentença condenatória (AgRg no REsp 2.026.690/BA), (iii) de resgatar as formalidades exigidas pelo art. 226 do CPP para o reconhecimento de pessoas (HC nº 598.886/SC) e (iv) de elevar o standard probatório exigível para a busca pessoal ou veicular, sem mandado judicial (RHC 158.580/BA).

Recuperou, dessa forma, a vitalidade das normas infraconstitucionais encarregadas de dar efetividade aos postulados de garantia insertos na CF/88, favorecendo, rapidamente, melhores índices no enfrentamento da superlotação carcerária.

Contudo, conforme informado por esta ConJur, recente julgado do STF, sob o fundamento de violação do Tema 280 de Repercussão Geral, derrubou um acórdão do STJ que reconheceu a nulidade do flagrante em razão da violação de domicílio e, por conseguinte, das provas decorrentes do ato.

Vale destacar o seguinte trecho do voto condutor:[7]

[…] o Superior Tribunal de Justiça, no caso concreto ora sob análise, após aplicar o Tema 280 de Repercussão Geral dessa SUPREMA CORTE, foi mais longe, alegando que, não obstante os agentes de segurança pública tenham recebido denúncia anônima acerca do tráfico de drogas no local e o suspeito tenha empreendido fuga para dentro do imóvel ao perceber a presença dos policiais, tais fatos não constituiriam fundamentos hábeis a permitir o ingresso no domicílio do acusado, haja vista que não houve nenhuma diligência investigativa prévia apta a evidenciar elementos mais robustos da ocorrência do tráfico naquele endereço […].
Nesse ponto, não agiu com o costumeiro acerto o Superior Tribunal de Justiça, pois acrescentou requisitos inexistentes no inciso XI, do artigo 5º da Constituição Federal, desrespeitando, dessa maneira, os parâmetros definidos no Tema 280 de Repercussão Geral por essa SUPREMA CORTE.
A decisão, portanto, não merece prosperar.
Na presente hipótese, o Tribunal da Cidadania extrapolou sua competência jurisdicional, pois sua decisão, não só desrespeitou os requisitos constitucionais previstos no inciso XI, do artigo 5º da Constituição, restringindo as exceções à inviolabilidade domiciliar, como também, inovando em matéria constitucional, criou uma nova exigência — diligência investigatória prévia — para a plena efetividade dessa garantia individual, desrespeitando o decidido por essa Suprema Corte
no Tema 280 de Repercussão Geral […].
Incabível, portanto, ao Poder Judiciário determinar ao Poder Executivo a imposição de providências administrativas como medida obrigatória para os casos de busca domiciliar, sob o argumento de serem necessárias para evitar eventuais abusos, além de suspeitas e dúvidas sobre a legalidade da diligência, em que pese inexistir tais requisitos no inciso XI, do artigo 5º da Constituição, nem tampouco no Tema 280 de Repercussão Geral julgado por essa SUPREMA CORTE
.

O embaraço criado com a decisão acima não traz nenhum benefício para a segurança jurídica e representa grave retrocesso no avanço jurisprudencial iniciado pelo STJ em favor da maior racionalidade na aplicação da lei antidrogas.

Com a devida licença, tanto o objeto do Tema 280 como as circunstâncias fáticas que envolveram o caso concreto dizem muito mais respeito à legalidade do que à constitucionalidade, ou seja, a matéria é predominantemente de ordem infraconstitucional, da competência do STJ e não do STF.

O principal instrumento de garantia do indivíduo frente ao poder punitivo estatal é o princípio da legalidade, cuja origem histórica remonta à luta contra o arbítrio e a opressão impostos pelo sistema penal do final do século 18. Portanto, mais do que favorecer a igualdade de todos perante a lei, a busca pela uniformização da interpretação da lei penal e processual penal visa à proteção da liberdade individual, somente alcançável através da estrita observância do princípio da legalidade.

Decidir acerca da regularidade da prisão em flagrante determinada por busca domiciliar sem mandado judicial é tarefa exclusiva do STJ, pois, afinal, todo o procedimento está descrito e limitado em lei federal. Desse modo, é dele a competência para "promover a interpretação condizente do tipo com o espírito do ordenamento imposto pelo Estado Democrático de Direito, adequando o seu alcance até o limite permitido pelo princípio da legalidade". [8]

A função de zelar pela uniformização da lei federal não pode e nem deve ser repartida com o STF, sob pena de o STJ se transformar em mera instância de passagem. As decisões do Superior Tribunal de Justiça, tratando-se de matéria infraconstitucional, "hão de ser finais, irrecorríveis, com autoridade de coisa julgada". [9]

Nesse instante crucial da tão esperada travessia jurisprudencial para o enfrentamento mais efetivo, mais inteligente e mais humanitário do tráfico de drogas e das organizações criminosas que gravitam ao seu redor, avultam as singulares missões de guarda da Constituição pelo STF e de uniformização da interpretação da lei federal pelo STJ.

Espera-se, serenamente, que saibam divisar e respeitar reciprocamente a elevada competência de cada um.

 


[3] Cappi, Ricardo. A maioridade penal nos debates parlamentares: motivos do controle e figuras de perigo. São Paulo: Editora Casa do Direito, 2017.

[4] CARDOSO, David Pinter. O básico sobre a criminalização de drogas. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-set-29/repensando-drogas-basico-criminalizacao-drogas; Acesso em 11.10.2023.

[5] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 92-3.

[6] MARONNA, Cristiano.  Ganhou, playboy!: o standard probatório no crime de tráfico de drogas. Disponível em < https://www.conjur.com.br/2023-set-08/ganhou-playboy-standard-probatorio-trafico-drogas>. Acesso em 11.10.2023.

[8] MARCHI JÚNIOR, Antônio de Padova. Princípio da legalidade penal: proteção pelo STJ e parâmetros de interpretação. Belo Horizonte: Del Rey. 2016, p. 178.

[9] NAVES. Nilson Vital. O Superior Tribunal e a Questão Constitucional. Revistra dos Tribunais. São Paulo: RT, v. 797, p. 28-42, mar. 2002.

Autores

  • é procurador de Justiça do MP-MG (Ministério Público de Minas Gerais). Mestre e doutor em Direito pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Professor da Faculdade de Direito do Ibmec-BH. Membro do coletivo Repensando a Guerra às Drogas.

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