Repensando as Drogas

'Ganhou, playboy!': O standard probatório no crime de tráfico de drogas

Autor

  • Cristiano Avila Maronna

    é advogado mestre e doutor em direito penal pela USP diretor da Plataforma Justa membro da Rede Reforma e do coletivo Repensando a Guerra às Drogas autor de "Lei de Drogas interpretada na perspectiva da liberdade" (Ed. Contracorrente 2022).

8 de setembro de 2023, 10h34

I. O voto do ministro Alexandre de Moraes no RE 635.659
Desde 2015, ao iniciar o julgamento do Recurso Extraordinário 635.659, o Supremo Tribunal Federal examina a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006).

ConJur
Diante da omissão do Congresso Nacional na construção de uma política de drogas baseada em evidências, resta à Suprema Corte, naquilo que lhe compete — o regular exercício da jurisdição constitucional com controle de constitucionalidade de normas jurídicas[1] —, enfrentar o tema, sem nenhuma invasão de competência de outro Poder, como fizeram as Cortes Supremas da Argentina, Colômbia, México e África do Sul.

Dos seis votos já proferidos até o momento em que o julgamento do RE foi interrompido por um pedido de vista dos autos na sessão do dia 24 de agosto de 2023, cinco deram provimento ao recurso, declarando inconstitucional o artigo 28 da Lei de Drogas: o relator, ministro Gilmar Mendes, e a ministra Rosa Weber em relação a todas as drogas ilegais. Os ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes apenas em relação à maconha. De outro lado, o ministro Cristiano Zanin votou pela constitucionalidade do referido dispositivo legal, negando provimento ao recurso.

O pedido de vista, do ministro André Mendonça, se deu na sequência de um movimentado agosto: Alexandre de Moraes apesentou voto surpreendente, Rosa Weber fez questão de antecipar seu voto, diante da iminência de sua aposentadoria, e, assim como o relator, Gilmar Mendes, reposicionou seu entendimento.

No esforço de construção de um consenso a respeito da matéria, buscou-se uma decisão per curiam, de modo que o relator do RE e a presidenta da Corte aderiram à tese proposta no voto do ministro Alexandre de Moraes, qual seja:

  • A fixação de um quantitativo baseado no peso da droga (maconha) como critério inicial de tipificação do crime de tráfico, “uma presunção diferenciadora entre o traficante e o usuário”, com o “intuito de garantir-se a aplicação isonômica da lei de drogas, em absoluto respeito ao Princípio da Igualdade consagrado na Constituição Federal, de maneira a diminuir a excessiva discricionariedade das autoridades públicas e evitar as distorções”.
  • Presunção relativa de que, aquele que porta “uma faixa fixada entre 25 a 60 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas”, será considerado usuário (finalidade de uso pessoal), salvo se presentes outros CRITÉRIOS CARACTERIZADORES DO TRÁFICO, tais como:
  • a) a forma como o entorpecente estava acondicionado;
  • b) diversidade de entorpecentes; 
  • c) apreensão de outros instrumentos como: 1) balança; 2) cadernos de anotação; e 3) celulares com contato de compra e venda (entrega delivery);
  • d) locais; e
  • e) circunstâncias de apreensão, “entre outras características que possam auxiliar na tipificação do tráfico”.

Neste artigo, retomo reflexão apresentada anteriormente a respeito da cegueira hermenêutica deliberada na tipificação do tráfico de drogas[2], reforçando a urgente necessidade de definição de um standard probatório em simetria com a regra do ônus da prova e com a garantia da presunção de inocência, com especial atenção à valoração judicial do depoimento policial e às provas a ele ancoradas.

É a partir desta ótica que dialogo com o voto do ministro Alexandre de Moraes, ao qual aderiram, além dos ministros Gilmar Mendes e Rosa Weber, também os ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. Não abordarei, por conta do limite de espaço, as teses, até aqui vencedoras, de (i) “administrativização” do artigo 28, aplicando-se as medidas nele previstas em procedimento cível; e (ii) declaração de inconstitucionalidade apenas em relação à maconha. Registro, contudo, minha discordância em relação a ambas as opções acolhidas pela provisória maioria do STF.

II. Sobre os critérios caracterizadores do tráfico e o não dito no voto do ministro Alexandre de Moraes
Os desafios de ontem seguem postos e sobre eles nada disse o ministro. Os critérios caracterizadores de tráfico enumerados acima, seguirão ancorados nos testemunhos policiais. Perde-se, neste recorte, a oportunidade de fixação de um standard probatório que respeite o ônus da prova e a presunção de inocência.

São os policiais responsáveis pela diligência (abordagem, busca, apreensão da droga, prisão em flagrante etc) que trazem aos processos judiciais todos os elementos relativos à forma de acondicionamento da droga, à diversidade de drogas, às circunstâncias da apreensão, á presença de balança, caderno com anotações sobre a contabilidade do tráfico, ao local, “entre outras características que possam auxiliar na tipificação do tráfico”.

Em um sistema processual penal acusatório, o depoimento policial, bem como as provas a ele ancoradas, não são suficientes, per se, para caracterizar o crime de tráfico. A prova a respeito da finalidade mercantil da posse de drogas deve ser robusta, segura, induvidosa, corroborada por fontes externas ao testemunho dos agentes do aparato repressivo estatal. A acusação de tráfico de drogas deveria estar lastreada em qualificada apuração pré-processual, mas, via de regra, a prova que embasa condenações por tráfico é frágil precária e está amparada exclusivamente no testemunho policial e nas provas a ele ancoradas.

O ministro Gilmar Mendes, relator do RE 635.659, afirma, em seu voto, que “a palavra e a avaliação dos policiais merecem crédito, mas a garantia do devido processual legal pressupõe a avaliação feita por um juiz ‘neutro e desinteressado’, sobrepondo a avaliação de um ‘policial envolvido no empreendimento muitas vezes competitivo de revelar o crime’ (Justice Robert H. Jackson, redator da opinion da Suprema Corte dos Estados Unidos, caso Johnson vs. United States 333 U.S. 10 (1948)”.

De acordo com Marcelo Semer, os tais critérios caraterizadores de tráfico são “elementos cumulativos, mas todos eles dependentes da mesma matriz, ou seja, o depoimento dos policiais. Muitas vezes, como vimos, essas provas ancoradas são usadas, de forma tautológica, para dar sustentação à credibilidade do depoimento do próprio policial. (…) A construção acaba sendo circular: a prova de que o policial fala a verdade é o próprio policial relatando determinado fato”[3]. O mesmo autor afirma que “os policiais são o conjunto probatório e estão consonantes com ele, sempre, mesmo quando em contradição. A credibilidade policial é, portanto, uma premissa, não uma consequência da instrução”[4].

Ao não abordar a questão da credibilidade do depoimento policial no processo penal, a tese do voto do ministro Alexandre de Moraes acaba por legitimar meras inferências como “uma espécie de ‘rainha das provas’, assumindo valor probatório quase absoluto, sob o argumento de que possui fé pública. Processo penal não combina com fé, mas com racionalidade, mais especificamente com persuasão racional e com o dever de motivação das decisões”[5].

III. O reconhecimento meramente formal do racismo estrutural e os desafios históricos que o STF tem diante de si, também no HC 208.240
Muito embora o voto do ministro Alexandre de Moraes formalmente reconheça o racismo estrutural no sistema de justiça, não há nele qualquer endereçamento concreto capaz de se opor à “política do enquadro”[6], validada judicialmente ao longo do tempo e atualmente em debate no STF, em razão do julgamento do HC 208.240[7], que trata do perfilamento racial na abordagem policial em ação penal por tráfico de drogas.

Racismo institucional é um modo de subordinar o direito e a democracia às necessidades do racismo, nas palavras de Jurema Werneck[8]. E ao Judiciário cumpre a tarefa de garantir direitos e de combater o racismo, em nome da democracia. Este seria o paradigma orientador esperado da Suprema Corte.

O valor probatório do testemunho policial e a fixação de parâmetros objetivos para definir a fundada suspeita (elementos concretos, fatos ou ações objetivamente verificáveis, reveladores da sua necessidade) são questões interligadas[9] e reforçam a importância do uso de câmeras corporais pelos agentes de segurança pública, a fim de que se possa aprimorar o controle ex post sobre a atividade policial, tanto para coibir práticas ilegais, quanto para preservar os bons policiais de injustas e levianas acusações de abuso.

Sobre a gravação audiovisual, o Pleno do STF, em consonância com o STJ, reconheceu a imprescindibilidade de tal forma de monitoração da atividade policial e determinou, entre outros pontos, que “o stado do Rio de Janeiro, no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, instale equipamentos de GPS e sistemas de gravação de áudio e vídeo nas viaturas policiais e nas fardas dos agentes de segurança, com o posterior armazenamento digital dos respectivos arquivos” (Embargos de Declaração na Medida Cautelar da ADPF 635 – “ADPF das Favelas”, 03/02/2022).

As body cams são preciosas para aumentar a transparência pública, qualificar as provas judiciais e administrativas, e potencialmente tornar as ocorrências menos letais para policiais e cidadãos, valores importantes na construção de uma democracia, conforme aponta Poliana Ferreira[10].

Tanto no RE 635.659, quanto no HC 208.240, o STF tem a chance de apontar diretrizes para novos padrões de policiamento, mais eficientes e democráticos, contemplando não apenas a aquisição de equipamentos e tecnologias, mas também grandes investimentos em educação em direitos humanos, controle e transparência.

Pensar a segurança pública como política de Estado implica repensar o papel do Estado em geral e o do Estado-jurisdição em particular. Em uma ordem jurídica democrática, não pode haver poder sem limites, nem ato de poder infenso a controle de legalidade. A polícia tem que agir dentro dos limites da lei e da Constituição, em especial no que diz com as garantias da presunção de inocência e ônus da prova.

IV. Sobre produção acadêmica acerca da centralidade do testemunho policial e das provas a ele ancoradas para a tipificação do tráfico de drogas
A centralidade do testemunho policial para a tipificação do tráfico de drogas é, há muito, atestada por consistente produção acadêmica.

A pesquisa “Tráfico e sentenças judiciais – uma análise das justificativas na aplicação de Lei de Drogas no Rio de Janeiro”, aponta que 53,73% das condenações de tráfico de drogas apresentam como única fundamentação decisória o testemunho dos policiais que participaram do flagrante. Em 65,85% das vezes em que o local da prisão é citado como fundamento para condenação por tráfico, há menção à ocorrência em favelas, morros ou comunidades[11].

Na mesma linha, em “Prisão provisória e Lei de Drogas — um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo”, produzido pelo NEV-USP[12], conclui-se que 74% dos processos analisados contavam apenas com o depoimento dos policiais e que 91% destes casos culminaram em condenação.

Marcelo Semer observa que “talvez em nenhum outro tipo penal, a prova seja tão modesta quanto no tráfico de drogas. A marca central é a importância suprema dos relatos das testemunhas policiais, nas quais se concentram praticamente todo o repositório das provas obtidas em juízo – ademais da importação dos elementos do inquérito, que, grosso modo, também se restringem aos policiais”[13]. O mesmo autor destaca que das “testemunhas arroladas pela acusação 90,46% são provenientes das forças de segurança, sendo 58,17% de policiais militares, 22,12% de policiais civis, 5,21% de policiais (militares ou civis, não discriminados), 1,86% de guardas metropolitanos, 1,55% de agentes penitenciários e o mesmo tanto de policiais federais (Tabela 26). No conjunto dos ‘agentes de segurança’, os PMs representam aproximadamente 2/3 das testemunhas”[14], acrescentando que as “sentenças não relatam exames periciais nos instrumentos apreendidos, embora balanças de precisão costumam ser brevemente descritas nos autos de apreensão. (…) Outros elementos de prova, a teor dos relatos indicados na sentença, não foram submetidos a perícia em regra – cadernos por exemplo, suspeitos de terem sido usados na contabilidade do comércio ilícito. Não há registro de perícias grafotécnicas para apurar a autoria, em que pese a ausência de outros dados indicadores dos fatos”[15].

Pesquisa realizada pelo Ipea, em parceria com a Senad[16], corrobora o protagonismo do depoimento policial na tipificação do tráfico:

“(…), verifica-se que em apenas 5% dos processos não houve testemunha ouvida na fase judicial. Em outras palavras, em 95% dos casos há pelo menos uma testemunha ouvida no processo. Em 7,6% dos casos apenas uma testemunha foi ouvida. Há evidente concentração no índice de duas testemunhas ouvidas, o que foi observado em 36,0% dos processos. Esse quadro parece ser reflexo do padrão processual observado, relativo à oitiva de dois policiais responsáveis pelo flagrante, inicialmente ouvidos na fase policial, arrolados na denúncia e, então, ouvidos em juízo. (…) Refletindo o esperado, a quase totalidade de processos (99,5%) conta com a presença de pelo menos um agente de segurança (…) A presença de policiais militares predomina, com 75%, face aos 27% da presença de policiais civis. Em 8,3% observa-se a presença de profissionais de outras instituições policiais, como Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal, além de agentes penitenciários. A soma dos percentuais supera 100%, pois não foi rara a atuação conjunta de policiais de diferentes instituições, quando do cumprimento de mandado de busca e apreensão, por exemplo”[17].

Em verdade, os critérios caracterizadores de tráfico enumerados acima[18], per se, não fazem prova de tráfico. Inferências nesse sentido não defluem da correta e equilibrada valoração judicial probatória em um processo de estrutura acusatória no qual vigoram a regra do ônus da prova e a garantia da presunção de inocência, mas de estereótipos e senso comum próprios de modelos inquisitoriais.

Com efeito, o “acondicionamento em embalagens distintas, antecedentes, entre outras inúmeras circunstâncias fáticas, podem revelar tanto situação de mercancia como de uso próprio – v.g., sujeito preso em flagrante com quantidade elevada de droga, disposta em recipientes distintos, gera apenas indício de comércio, não podendo ser descartada, de plano, a hipótese de porte para consumo, visto o fato de poder ter adquirido o produto exatamente nessas condições. O problema não está, frise-se, vez mais, nos dados externos da conduta, mas no aspecto cognitivo e volitivo do agir”[19]. No mesmo diapasão, é “necessário cuidado com a valoração sobre estar ou não a droga embalada para venda: é que assim como a droga é embalada pelo traficante, é comprada embalada pelo usuário, ou seja, a forma como está embalada pouco ou nada diz sobre a intenção do acusado”[20].

A presença de balança, por si, não possui força probatória suficiente para caracterizar tráfico ou associação para o tráfico:

“1. A apreensão isolada de uma balança não implica, per se, necessária subsunção da conduta ao tipo descrito no art. 34 da Lei n. 11.343/2006.

2. Provado nos autos que a balança se destinava à medida individual de porções destinadas ao consumo, e não à fabricação, produção ou preparo da substância entorpecente, afasta-se aquela imputação – art. 34 –, por atipicidade” (STJ, 6ª T., HC n. 153.322, 6ª T., rel. Celso Limongi, j. 16/12/10).

Marcelo Semer chama a atenção para o fato de que “sentenças não relatam exames periciais nos instrumentos apreendidos, embora balanças de precisão costumam ser brevemente descritas nos autos de apreensão. (…) Outros elementos de prova, a teor dos relatos indicados na sentença, não foram submetidos a perícia em regra – cadernos por exemplo, suspeitos de terem sido usados na contabilidade do comércio ilícito. Não há registro de perícias grafotécnicas para apurar a autoria, em que pese a ausência de outros dados indicadores dos fatos”[21].

Quanto ao local da apreensão da droga, não se extrai prova segura de finalidade mercantil dessa circunstância, por si só, “porque é exatamente nos locais conhecidos como ponto de venda de drogas que os usuários e dependentes frequentam assiduamente. Não parece lógico julgar uma pessoa como traficante baseado no fato de o local ser conhecido por alta incidência de traficância. Afinal, onde há traficantes, há usuários”[22]. De fato, “o usuário sempre adquire a droga e, nem por isso, deixa de ser usuário”[23]. Nesse sentido:

“Por último, cumpre acrescentar que apesar do réu residir em comunidade dominada por tráfico de entorpecente, que estivesse em local conhecido como ´boca de fumo´, não há como impor decreto condenatório tão somente com base em mera possibilidade. O sentido da regência do direito processual penal pelo princípio da verdade real destina-se à formação de verdadeiro e confiante convencimento do juízo” (processo nº 0201738-12.2015.8.19.0001, TJRJ)[24].

As informações extrajudiciais (rectius, confissão informal) jamais podem, isoladamente, comprovar tráfico, pois não possuem valor probatório, além de se tratar de prova ilícita, exceto se houver prova inequívoca de que foi o increpado advertido do seu direito de permanecer em silêncio e de não produzir prova contra si mesmo (aviso de Miranda):

“Acerca da suposta confissão do acusado no momento da prisão, é importante ressaltar que, se nem mesmo a confissão feita perante a autoridade policial durante o inquérito, devidamente documentada, é capaz de, sozinha, fulcrar uma condenação, por se tratar de mero indício, muito menos ainda a chamada ‘confissão informal’, decorrente de conversa no momento da abordagem, sem qualquer oportunidade de defesa, de documentação, ou mesmo da prévia advertência constitucional quanto à desobrigação da autoincriminação” (processo nº 0011534-02.2015.8.19.0004, TJRJ)[25].

O artigo 5º, XII, da Constituição, garante a inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. A Lei 9.296/96 exige prévia autorização judicial para que a comunicação telefônica seja utilizada como prova no processo penal. A Lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet), garante que o conteúdo das comunicações privadas somente poderá ser disponibilizado mediante ordem judicial. Desse modo, a colheita de dados no telefone celular de uma pessoa somente pode ocorrer com a prévia autorização judicial, sob pena de flagrante violação a normas constitucionais e infraconstitucionais.

Ou seja, a tese fixada no voto do ministro Alexandre de Moraes no RE 635.659, no que diz com o standard probatório necessário à caracterização do crime de tráfico de drogas, legitima o entendimento de que o testemunho policial e as provas a ele ancoradas são suficientes para a tipificação do crime previsto no artigo 33 da Lei de Drogas.

Calha relembrar o voto do ministro Luís Roberto Barroso, no referido RE 635.659, na parte em que reconhece a urgência em “diminuir a discricionariedade judicial e uniformizar a aplicação da lei”, para reduzir o “impacto discriminatório que é perceptível a olho nu”: “na prática, ricos são tratados como usuários e pobres como traficantes”.

A prevalecer a tese proposta pelo voto do ministro Alexandre de Moraes, jovens negros, pobres, sem instrução, continuarão a ser criminalizados e encarcerados por tráfico, mesmo quando flagrados com 60 gramas de maconha ou menos, graças ao racismo institucional, que legitima a apriorística presunção de veracidade do testemunho policial e das provas a ele ancoradas.

Na descriminalização ao modo Il Gattopardo, é preciso que algo mude para que tudo permaneça como está. Ricos continuarão sendo tratados como usuários e pobres como traficantes. Ganhou, playboy!

V. Propostas baseadas em práticas interpretativas na perspectiva da garantia de direitos
Resta agora suplicar aos céus, para que, na retomada dos julgamentos do RE 635.659 e do HC 208.240, o STF imponha a razão humanista sobre o senso comum majoritário, atuando como vanguarda iluminista que empurra a história e alavanca a civilização em nome de valores racionais, superando superstições e preconceitos e evitando a tirania da maioria e o paternalismo moralista[26].

Trata-se de rara oportunidade para a construção de uma política de drogas baseada em evidências, fixando-se teses, inclusive por meio da edição ex officio de súmula vinculante (Constituição, artigo 103-A., caput e parágrafos), para sanar controvérsia atual entre órgãos judiciários e conferir interpretação conforme a Constituição a respeito das seguintes matérias:

O crime de tráfico de drogas, em todas as suas modalidades (artigo 33, caput e parágrafo 1º, incisos I a IV, da Lei 11.343/06), pressupõe finalidade diversa do consumo pessoal, sendo ônus da acusação a prova do intento mercantil

O depoimento policial, bem como as provas a ele ancoradas, por si sós, não são suficientes para caracterizar o crime de tráfico de drogas, exigindo-se elementos de corroboração externos aos agentes estatais que atuam na repressão ao crime

Ordem judicial prévia é condição de validade da busca pessoal/domiciliar/veicular, sob pena de nulidade da prova obtida em desacordo com essa regra

Indispensável o aviso de Miranda em abordagem policial, sob pena de nulidade da prova obtida por meio da busca pessoal/domiciliar/veicular dela decorrente;

Captação de áudio e vídeo a partir de câmeras acopladas ao uniforme do policial é condição de validade da busca pessoal/domiciliar/veicular;

Exige-se prévia autorização judicial para acesso a celular, com a adequada preservação da cadeia de custódia, sob pena de nulidade da prova obtida em desacordo com essa regra;

Exige-se prova pericial em cadernos, balanças, celulares e outros instrumentos apreendidos, preservando-se a cadeia de custódia, sob pena de nulidade da prova obtida em desacordo com essa regra.

[1] José Afonso da Silva ensina que a supremacia constitucional implica conformidade das normas infraconstitucionais – como é o caso do art. 28 da Lei de Drogas – não apenas com a atuação positiva de acordo com os ditames constitucionais, exigindo mais, “pois omitir as providências necessárias à aplicação de normas constitucionais constitui também conduta desconforme com o princípio da supremacia” (SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 538).

[2] “Ensaio sobre a cegueira hermenêutica deliberada na tipificação do crime de tráfico”, Conjur, 26/07/2022, https://www.conjur.com.br/2022-jul-26/cristiano-maronna-cegueira-hermeneutica-deliberada.

[3] SEMER, Marcelo. “Sentenciando Tráfico: o papel dos juízes no grande encarceramento”, São Paulo, Tirant lo Blanche, 2019, p. 201.

[4] SEMER, Marcelo. “Sentenciando Tráfico: o papel dos juízes no grande encarceramento”, São Paulo, Tirant lo Blanche, 2019, p. 199.

[5] MARONNA, Cristiano Avila. “Lei de Drogas interpretada na perspectiva da liberdade”, São Paulo, Contracorrente, 2022, p. 959.

[6] MATA, Jéssica da. A política do enquadro, São Paulo, Thomson Reuters, 2021.

[7] O HC 208.240, no qual se pretende conferir interpretação conforme a Constituição aos arts. 240, § 2º; 241, caput, incisos I e II e 244, do Código de Processo Penal, também teve seu julgamento interrompido por pedido de vista dos autos no início de 2023.

[8] WERNECK, Jurema. Racismo institucional: uma abordagem conceitual, Geledés – Instituto da Mulher Negra, p. 18.

[9] No julgamento do RHC nº 158.580, rel. Min. Rogério Schietti j. 19/04/22, a 6ª Turma do STJ fixou a tese de que o standard probatório para busca pessoal ou veicular sem mandado judicial exige a existência de fundada suspeita (justa causa), baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto, de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência. O art. 244 do Código de Processo Penal não autoriza buscas pessoais praticadas como “rotina” ou “praxe” do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória (fishing expeditions), mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata. Nesse diapasão, a fundada suspeita, prevista nos arts. 240, § 2º, 241, caput, incisos I e II e 244, do CPP, deve ser compreendida como medida processual probatória excepcional, jamais como política pública de policiamento ostensivo.

[10] FERREIRA, Poliana. “(Re)vendo a PM que mata: bodycams e os desafios jurídicos da accountability no Processo Penal”, Boletim do IBCCRIM 354, maio/2022.

[11] Tráfico e Sentenças Judiciais – Uma Análise das Justificativas na Aplicação de Lei de Drogas no Rio de Janeiro

[12] JESUS, Maria Gorete Marques et al.. Prisão provisória e Lei de Drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo, SP, Brasil, 2011, 1 e‐book formato PDF, 154p., https://nev.prp.usp.br/wp-content/uploads/2015/01/down254.pdf.

[13] SEMER, Marcelo. “Sentenciando Tráfico: o papel dos juízes no grande encarceramento”, São Paulo, Tirant lo Blanche, 2019.

[14] SEMER, Marcelo. “Sentenciando Tráfico: o papel dos juízes no grande encarceramento”, São Paulo, Tirant lo Blanche, 2019, p. 187.

[15] SEMER, Marcelo. “Sentenciando Tráfico: o papel dos juízes no grande encarceramento”, São Paulo, Tirant lo Blanche, 2019, p. 186.

[16] Universo de 3583 processos criminais em tribunais de justiça estaduais com decisão terminativa no primeiro semestre de 2019, com 5121 réus indiciados, denunciados e/ou sentenciados por crimes de tráfico de drogas,

[17] Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), “Perfil do processado e produção de provas nas ações criminais por tráfico de drogas Relatório analítico nacional – Tribunais Estaduais de Justiça Comum”, Versão Preliminar sujeita a complementação e alteração, Brasília, outubro/2022, pp. 83/85. “Ainda a respeito da centralidade da prova nos testemunhos policiais, vale a consideração sobre o depoimento de usuários. Apenas 8,1% dos processos constam, entre as testemunhas arroladas, compradores de drogas. Isso significa, entre outras coisas, que a palavra do usuário para constatar a traficância do acusado está longe de ser uma prova de elevada importância ou de centralidade nos processos criminais de drogas. Isso não quer dizer que o combate à criminalidade do tráfico se dê à margem de qualquer participação dos usuários, mas apenas que ela não se faz presente nos processos, como era possível de se esperar. Hipóteses podem ser levantadas para essa ausência significativa, cujas respostas demandariam uma pesquisa de outra natureza. A primeira hipótese é relativa à confiança, credibilidade e eficácia que se espera das oitivas de usuários, afinal, há pouca expectativa de que haverá, por parte do usuário, a coragem ou a liberdade necessária para “delatar” o traficante e, portanto, confirmar a acusação. A segunda hipótese, de natureza processual, é no sentido de que, já que a palavra dos policiais detém a centralidade probatória a fim de subsidiar o decreto condenatório, não há necessidade ou utilidade de se produzir nova informação ou prova, o que vem com o risco de contradizer ou contrapor a narrativa dos responsáveis pelo flagrante. Isso explicaria também por que a palavra do usuário parece ser mais útil ao policial, na rua, para angariar informações aptas a alcançar o flagrante, do que propriamente para servir de material processual/probatório.” (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), “Perfil do processado e produção de provas nas ações criminais por tráfico de drogas Relatório analítico nacional – Tribunais Estaduais de Justiça Comum”, Versão Preliminar sujeita a complementação e alteração, Brasília, outubro/2022, pp. 125/128).

[18] Circunstâncias como: a) a forma como o entorpecente estava acondicionado; b) diversidade de entorpecentes; c) apreensão de outros instrumentos como: c1) balança; c2) cadernos de anotação; c3) celulares com contato de compra e venda (entrega delivery); d) locais e e) circunstâncias de apreensão.

[19] CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei n. 11.343/06. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, pp. 263, 270, 273 e 276/277.

[20] JUNQUEIRA, Gustavo O. Diniz; FULLER, Paulo Henrique Aranda. Legislação Penal Especial. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 233.

[21] SEMER, Marcelo. “Sentenciando Tráfico: o papel dos juízes no grande encarceramento”, São Paulo, Tirant lo Blanche, 2019, p. 186.

[22] MIRANDA, Rafael de Souza. Manual da Lei de Drogas: teoria e prática. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 49.

[23] STF, 1ª T., HC n. 107.448, rel. Ricardo Lewandowski, rel. para acórdão Marco Aurélio, j. 18.06.2013.

[24] In AZEREDO, Felipe F. P. e XAVIER, José R. F. O discurso judicial sobre o tráfico e uso de drogas: uma análise das sentençs do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Revista de Estudos Empíricos em Direito, V. 6, N 3, dez. 2019, p. 167.

[25] In AZEREDO, Felipe F. P. e XAVIER, José R. F. O discurso judicial sobre o tráfico e uso de drogas: uma análise das sentençs do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Revista de Estudos Empíricos em Direito, V. 6, N 3, dez. 2019, p. 168.

[26] BARROSO, Luis Roberto. Contramajoritário, Representativo e Iluminista: os papeis dos tribunais constitucionais nas democracias contemporâneas. Direito & Práxis, Rio de Janeiro, v. 9, N. 4, p. 2179-8966, 2018. ISSN 2179-8966.

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