Opinião

O STF quer legalizar o tráfico de drogas?

Autor

  • Lais Martins

    é advogada criminalista consultora jurídica membro da Comissão de Direito Penal de Petrópolis/RJ e pós-graduanda em Jurisprudência Penal.

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5 de outubro de 2023, 17h22

Atualmente com o julgamento do RE 635.659 no Supremo Tribunal Federal, surgem muitos comentários entre leigos, e também e em notícias jurídicas de que o STF quer legalizar o tráfico de drogas.

A Corte trata, na verdade, sobre o artigo 28 da Lei 11.343/06 que dispõe sobre o crime de porte e posse de drogas para consumo pessoal. O que se discute é que essa conduta ao ser considerada crime pela lei de drogas, analisando o artigo 28 à luz do artigo 5º, X da Constituição, viola o direito à liberdade individual do usuário, da intimidade e da vida privada.

Ainda no mesmo julgamento, se discute a possibilidade de estabelecer um limite mínimo de maconha para haver a clara diferenciação entre traficante e usuário, o que a nossa lei atual não prevê gerando grande confusão na prática e o encarceramento em massa de muitas pessoas que, mesmo sendo usuárias, são presas como se traficantes fossem.

Isso por não haver um parâmetro mínimo, correto estabelecido para definir concretamente quando uma pessoa apreendida com drogas será considerada usuária ou traficante.

O que o artigo 28 prevê é que o juiz irá, no caso concreto, verificar a natureza e a quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, as circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e aos antecedentes do agente.

Claramente fica a critério subjetivo do julgador separar o usuário do traficante.

A grande problematização aqui está na seletividade penal do nosso sistema.

O nosso sistema penal é seletivo, ele escolhe quem ele vai e a quem ele quer punir. A seletividade passa por cada um dos órgãos estatais e começa com a escolha realizada pelo policial quanto a quem abordar. Depois pelo delegado de quem indiciar, pelo MP em quem denunciar e consecutivamente a escolha do juiz sobre quem punir.

O ministro Alexandre de Moraes disse em seu voto que "o negro, analfabeto entre 18 e 20 anos, é considerado traficante com 24.5 gramas. O branco, com curso superior, mais de 30 anos só com 59 gramas. Isso em condições absolutamente iguais, em que a traficância é considerada só com base na droga apreendida".

Além de ser uma seletividade do nosso sistema, que claramente pune mais e quer punir mais, o negro e favelado, gera também uma insegurança jurídica. Duas pessoas, apreendidas nas mesmas circunstâncias, têm contra si aplicadas crimes completamente diversos, um que não há uma pena estabelecida (artigo 28) e outro com uma pena de cinco a 15 anos de reclusão (artigo 33).

Alexandre sugeriu os seguintes parâmetros objetivos: "presume-se como usuário o indivíduo que estiver em posse de até 60 gramas de maconha ou de seis plantas fêmeas sem prejuízo da relativização dessa presunção por decisão fundamentada do Delegado de Polícia, fundada em elementos objetivos que sinalizem o intuito de mercancia".

Essa quantidade mínima vindo a ser estabelecida é uma grande evolução, apesar de não ser o suficiente para tratar de tamanho problema.

Como sabemos o artigo 28 e o artigo 33 da lei de drogas tem muitos dos mesmos verbos o que também gera essa confusão entre traficante e usuário. Dessa forma, uma pessoa ao praticar, por exemplo, o verbo guardar ou ter em depósito pode ser enquadrada tanto no crime de tráfico quanto no crime de posse ou porte de drogas para consumo pessoal.

Justamente por isso precisamos de algo concreto que efetivamente os diferencie, pois gera imensa insegurança jurídica (além da anteriormente citada), o agente praticar um único verbo e poder incorrer em mais de um crime.

O poder punitivo precisa de limites para sua atuação, limites esses para que ele não viole completamente as garantias individuais do cidadão. A ausência de requisitos, de limites na lei de drogas, dá ao poder punitivo uma margem maior para enquadrar toda e qualquer pessoa apreendida com drogas no crime de tráfico.

Por fim, a tese que está sendo criada no STF vem para sanar uma falha, uma falha do sistema e do ser humano. Pois quando temos uma lei que estabelece uma regra, impõe limites concretos, ou uma jurisprudência consolidada, não haverá margens para uma punição totalitária e sem limites ao cidadão, pelo menos as chances de equívocos judiciários serão menores. É o primeiro passo necessário no caminho para essa evolução.

Autores

  • é advogada criminalista, consultora jurídica, membro da Comissão de Direito Penal de Petrópolis/RJ e pós-graduanda em Jurisprudência Penal.

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