Opinião

Sol de primavera: o avanço da regulamentação da cannabis medicinal

Autor

  • Claudia de Lucca Mano

    é advogada consultora empresarial especialista na área de vigilância sanitária e assuntos regulatórios fundadora da banca DLM e responsável pelo jurídico da associação Farmacann.

17 de setembro de 2023, 10h10

A cannabis medicinal continua atraindo a atenção no Brasil devido aos seus potenciais benefícios terapêuticos. À medida que o interesse cresce, também surgem mudanças significativas nas regulamentações que governam o acesso e o uso desses produtos.

A Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 327 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é o documento fundamental que rege a autorização sanitária de produtos derivados de cannabis medicinal no Brasil. Atualmente existem 30 produtos regularizados sob essa norma. A norma foi aprovada em 2019, com validade inicialmente determinada para o final de 2022.

Ela permite que produtos sejam regularizados através de uma rota simplificada, ou seja, com menos exigências do que as que são feitas para registro de medicamentos propriamente ditos. Nos primeiros três anos de vigência, as empresas fabricantes e importadoras foram dispensadas de apresentar Certificado de Boas Práticas de Fabricação, sendo aceito documento equivalente emitido por autoridades sanitárias de países reconhecidos pela Anvisa. O prazo para que as empresas apresentassem o CBPF expirou em dezembro de 2022.

A norma também prevê que em cinco anos, ou seja, dezembro de 2024, as empresas detentoras de autorização sanitária deverão pleitear registro como medicamento, o que na prática significa oferecer estudos clínicos que comprovem a eficácia e segurança desses produtos.

No final de 2022, a Anvisa iniciou o processo de revisão por meio de questionário do E-Participa. O relatório foi divulgado em fevereiro de 2023, mas ainda não há um texto de consulta pública. A agência argumenta que, em razão da pandemia de Covid-19, o avanço do conhecimento científico não ocorreu na velocidade esperada. O tema faz parte da agenda regulatória ciclo 2021-2023.

Atualmente, a agência confirmou que cumpre a fase de análise de impacto regulatório (AIR), etapa crucial para avaliar o impacto das mudanças propostas na regulamentação. Após a conclusão da AIR, a Anvisa planeja publicar o texto da consulta pública, dando à comunidade médica, pacientes, associações e empresas interessadas a oportunidade de revisar e comentar as mudanças propostas.

Dentre as mudanças esperadas pelo setor farmacêutico está a permissão para que farmácias de manipulação sejam contempladas. Hoje, elas são proibidas de manipular e revender produtos derivados cannabis, ficando à deriva do mercado que hoje é composto primordialmente por produtos importados.

Além disso, pautas como publicidade, importação, teor de THC e perfil de canabinoides, formas farmacêuticas, vias de administração, controle de qualidade e fiscalização foram levantadas no questionário de participação social.

Em outra frente, em agosto de 2023 a Anvisa anunciou a seleção de um consultor técnico farmacêutico para atuar na área de produtos controlados, visando aprimorar a regulamentação e supervisão de produtos à base de cannabis, no mercado brasileiro. O consultor desempenhará um papel fundamental na orientação das decisões da Agência nos próximos 270 dias, contribuindo para garantir a segurança e a eficácia desses produtos, fornecendo subsídios para critérios de controle aplicáveis ao cultivo da planta Cannabis spp. para fins de ensino e pesquisa, além de apoiar a fundamentação técnica para a avaliação de substâncias para sua classificação nas Listas de Substâncias e Plantas sujeitas a controle especial da Portaria SVS/MS 344/98.

A iniciativa demonstra que a Anvisa endossa a importância dos atores farmacêuticos na jornada de conhecimento da cannabis medicinal no Brasil, seja para o melhor manejo das listas da Portaria 344/98, seja para padrões de qualidade no campo do cultivo ensino e pesquisa cientifica.

Está ainda prevista para ocorrer nas próximas semanas uma alteração há muito esperada: a inclusão de Produtos Veterinários como adendo da Portaria 344/98. A Portaria 344/98 regula substâncias controladas no Brasil, definindo o que é droga lícita ou ilícita.

Há muito tempo o Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (Mapa) vem sendo cobrado para contemplar a cannabis medicinal em seu arcabouço regulatório.

Embora existam projetos de lei em tramitação para o uso de produtos de cannabis em animais, a falta de regulamentação específica gera insegurança jurídica. Vale registrar que médicos veterinários não estão proibidos de prescrever cannabis medicinal, muito embora não exista uma regulamentação clara por parte do Conselho Federal de Medicina Veterinária neste sentido. Na prática isso já ocorre, com fundamento na própria Portaria 344/98, que define que medicamentos sob controle especial podem ser prescritos por médicos, veterinários ou odontólogos, dentro dos seus campos de atuação.

A RDC 327, que aparentemente proibia a prescrição veterinária é voltada para produtos de cannabis para uso humano, já que não é competência da Anvisa regulamentar a área veterinária. Isso cabe ao Mapa. A agência, porém, é a responsável por manejar a lista de produtos controlados da Portaria 344, sob o manto do Ministério da Saúde.

Em recente plenária promovida pelo Conselho Regional de Farmácia de São Paulo, Isabel Ávila, da Coordenação de Produtos Veterinários (CPV Mapa) expressou seu apoio ao uso veterinário medicinal da cannabis. Ela afirmou que "conversas estão em andamento com a Anvisa para elaborar um adendo específico à Portaria 344/98 que contemple o uso veterinário da cannabis medicinal". O tema deve ser pautado na próxima reunião da diretoria colegiada da agência.

Se por um lado a Anvisa parece avançar no sentido de uma regulamentação mais robusta da cannabis medicinal, por outro segue defendendo a proibição de importação de flores de cannabis, tornada pública através da Nota Técnica 35/2023, em julho. O assunto está em discussão no Judiciário, não havendo qualquer perspectiva concreta de solução. Até o momento, não existe decisão judicial que revogue ou suspenda a proibição de importação de flores por pacientes medicinais. Em 20 de setembro, pessoas que utilizam flores da cannabis, na forma vaporizada, para tratar as mais diversas condições de saúde, estarão desassistidas.

A grande reviravolta parece ser o julgamento do porte de drogas no STF, atualmente paralisado por pedido de vistas do ministro André Mendonça, ocorrido na sessão plenária do Supremo, em 24/08/2023.  Após divergência de Zanin, e voto favorável de Rosa Weber, o placar é de 5×1 pela descriminalização do porte de determinadas quantidades de maconha, desde que para uso pessoal.

Portanto, as atualizações regulatórias em curso ecoam como os primeiros brotos de uma promissora primavera na indústria da cannabis medicinal no Brasil. Essas mudanças têm o potencial de florescer, trazendo renovação e crescimento para a comunidade de pacientes e empresas. Além disso, a decisão pendente do STF sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal age como uma brisa suave de mudança, trazendo esperança para uma abordagem mais compassiva e eficaz em relação à posse de cannabis medicinal, livre da repressão do Estado. À medida que a primavera traz vida nova à natureza, o último trimestre de 2023 promete trazer novas perspectivas e oportunidades para a comunidade da cannabis medicinal brasileira, nutrindo o desejo por tratamentos alternativos e eficazes para o bem-estar dos pacientes.

Autores

  • é advogada, sócia fundadora da banca De Lucca Mano Consultoria, consultora empresarial atuando desde 1994 na área de vigilância sanitária e assuntos regulatórios.

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