Opinião

A perspectiva do Trabalho Decente no sistema penitenciário

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4 de outubro de 2023, 10h15

É de se registrar a perfeita coerência entre a enunciação feita pelo ministro presidente do Supremo Tribunal Federal de busca de um foco humanista nas temáticas afetas à jurisdição constitucional e a ação de pautar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347.

Com efeito, a ADPF nº 347 permitiu uma verticalização nos estudos constitucionais sobre a teoria do estado de coisas inconstitucional, que fica patente diante das graves deficiências estruturais vivenciadas pelos estados em razão de uma crescente população carcerárias e a insuficiência dos mecanismos de saída e ressocialização de apenados.

Infelizmente, o sistema prisional é palco recorrente de múltiplas violações de direitos humanos e possui uma interface imediata com qualquer política de segurança pública. Vale ressaltar que o Brasil já foi objeto de condenações internacionais devido às condições precárias e violações de direitos humanos em suas prisões.

Dada esta relevância social da temática, são comuns as discussões sobre o ponto, muitas vezes com enfoques reduzidos e focadas apenas nos quantitativos de vagas, sem perceber que somente uma abordagem em diversos prismas, permitirá a superação desse problema, como que por corolário lógico de ser uma questão estrutural.

Invocando o já popular adágio do jornalista americano H.L. Mencken: "para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada". Assim, reducionismos de que a questão é só falta de investimento na criação de vagas, ou de políticas mais intensas de cobrança dos órgãos de segurança, tende a ser uma abordagem insuficiente para a extensão do desafio.

Em questões estruturais a ampliação de enfoques é necessária para a construção de soluções jurisdicionais efetivamente transformativas da sociedade. Este artigo almeja então lançar luz sobre um desses prismas e enfoques – a perspectiva do Trabalho Decente no Sistema Prisional.

Com efeito, desde as primeiras medidas da própria ADPF 347, bem como no nobre histórico de atuação firme do Conselho Nacional de Justiça, por intermédio do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF), sempre consideraram o acesso ao trabalho como um dos elementos a ser constantemente monitorado e aprimorado no sistema prisional.

Com efeito, inclusive a presença da seara trabalhista tem se ampliado na temática – termos de cooperação com o Ministério Público do Trabalho, participação de juízes do trabalho e mesmo atuação proativa de Conselheiros do CNJ oriundos do Tribunal Superior do Trabalho, notadamente a participação ativa do exmo. ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho nas inspeções nos mutirões carcerários conduzidos recentemente por todo o país.

A promoção da formação profissional para apenados e egressos do sistema prisional é uma medida estratégica não apenas para a reintegração destes indivíduos à sociedade, mas também como um mecanismo eficaz de prevenção da expansão de facções criminosas dentro dos presídios. Esta abordagem se alinha com uma visão mais ampla e integrada de segurança pública, que busca soluções sustentáveis para os desafios enfrentados pelo sistema prisional brasileiro.

A atual jurisprudência do STF sinaliza a possibilidade de decisões judiciais que estabeleçam programas contínuos de adequação desse estado de coisas. O tema foi tratado no julgamento do Recurso Extraordinário nº 684.612, com o Tema de Repercussão Geral nº 698. Dentre as teses fixas, são pertinentes para este artigo, os itens: "1. A intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, em caso de ausência ou deficiência grave do serviço, não viola o princípio da separação dos poderes. 2. A decisão judicial, como regra, em lugar de determinar medidas pontuais, deve apontar as finalidades a serem alcançadas e determinar à Administração Pública que apresente um plano e/ou os meios adequados para alcançar o resultado".

Assim, podemos firmar um posicionamento preliminar que, diante desse estado de coisas inconstitucional, poderá o Supremo Tribunal Federal efetivamente determinar medidas aos diversos órgãos públicos e o enfoque desses comandos deve ser propositivo, dialogal e apontar para que os próprios entes estabeleçam e apresentam programas, projetos e pautas claras, mensuráveis e acompanháveis pelo Judiciário num vetor de progressiva humanização do sistema prisional.

Logo, se as medidas a serem adotadas são de efetiva transformação ampla do estado de coisas irregular, parece ser essencial que o STF, ao apreciar em julgamento a ADPF 347, atente às questões trabalhistas, especialmente para a promoção do Trabalho Decente de apenados e egressos.

Dentro do histórico de atuação interinstitucional entre órgãos como o Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Nacional do Ministério Público, Justiça do Trabalho e Ministério Público do Trabalho, alguns caminhos já de mostraram promissores para uma efetiva transformação do sistema através do trabalho.

Dessa experiência concreta, é possível identificar alguns tópicos que podem ser considerados pelos entes públicos ou mesmo em eventual decisão jurisdicional que imponha a atenção concreta das propostas de solução que sejam construídas pelos gestores públicos.

É importante que os estados se comprometam com os Planos Estaduais da Política Nacional de Trabalho do Preso e Egresso, conforme estabelecido pelo Decreto 9.450/2018. Somente com o efetivo planejamento e integração das ações regionais com a Política Nacional, será possível assegurar que os recursos federais de melhorias do sistema prisional estão sendo destinados de forma racional e otimizada.

Também deve ser considerado um compromisso claro com investimento e com a instalação das Comissões Técnicas de Classificação (CTC). É crucial que os estados invistam em estruturas focadas na individualização da pena e designação do tratamento penal correto a cada apenado. Tais estruturais são até mesmo pressupostos lógicos da eficiência de políticas subsequentes, como a política de cotas em contratos públicos possam ser ultimadas.

Outro aspecto essencial é que qualquer política pública de atração de atividades produtivas empresariais para dentro do sistema prisional deve ser precedida de uma legislação clara e de uma infraestrutura normativa que ofereça segurança jurídica para empresas e entidades que desejam se instalar em unidades prisionais.

A construção dessa realidade e superação dos preconceitos em face de trabalhadores apenados e egressos perpassa uma comunicação social efetiva e a escuta da própria sociedade. Torna-se necessário indicar aos diversos entes públicos e da sociedade civil que o diálogo permanente é chave e os mecanismos de promoção do diálogo e articulação são essenciais.

Por exemplo, os estados devem, e até mesmo devem, promover consultas públicas e estabelecer diálogos com a iniciativa privada, especialmente com atores chave como as federações de indústrias, para identificar vocações econômicas que possam ser desenvolvidas no sistema prisional de cada região nacional.

Por fim, também é importante perceber que a preocupação com a crescente população carcerária e seus desafios devem ser vistos como um compromisso intergeracional, buscando soluções que beneficiem as gerações futuras.

Por exemplo, o investimento e a imposição da adoção de políticas publicas claras na atenção aos jovens do sistema socioeducativo é medida não apenas derivada do comando constitucional expresso de atenção à infância e a juventude, como é um claro investimento na prevenção de crimes futuros.

Nesse particular, reputa-se importante destacar que a administração pública, tanto em programas próprios, como através de cotas em contratos terceirizados representa um espaço valioso para o desenvolvimento de programas de aprendizagem voltados para os jovens inseridos no sistema socioeducativo.

A breve reflexão efetuada já demonstra a miríade de enfoques possíveis apenas sob a interface do prisma trabalhista com o sistema prisional. Assim, inegável que o julgamento da ADPF nº 347 será um grande marco na história nacional e na tomada de responsabilidade do Estado brasileiro em face da questão carcerária.

Independentemente dos futuros debates, encaminhamentos e soluções que o Supremo Tribunal Federal venha a adotar, é possível derivar a certeza de que a promoção do Trabalho Decente não é apenas uma necessidade, mas um imperativo moral e social. É através dela que podemos vislumbrar uma abordagem eficaz para o resgate da dignidade humana e a ressocialização de presos e egressos, garantindo um futuro mais justo e seguro para todos.

Autores

  • é ministro do TST (Tribunal Superior do Trabalho), doutorando em Direito (IDP), mestre em Direito (UCB, 2017), coordenador do Comitê Gestor Nacional do Programa Trabalho Seguro e observador na 111ª Conferência Internacional do Trabalho.

  • é procurador do Trabalho, doutor em Direito (Unifor), MBA em Direito Empresarial (FGV/Rio) e pós-graduado em Controle na Administração Pública (ESMPU).

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